Interrompido – Peso imobilizante (Episódio 13)

Interrompido – Peso imobilizante (Episódio 13)

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Marcos encontra a esposa aos prantos e sem fala ao avistar algo pior que um pesadelo e mesmo após a situação ser remediada, ela continuou incomodada devido a uma falha cometida que a vinha fazendo se sentir uma péssima mãe.

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Uma dor profunda pode fazer o tempo se arrastar, ao trazer consigo um peso imobilizante capaz de sugar forças, assim a espera de Lourdes se prolongou num looping interminável até doutor Pedro Gonzaga sair do quarto 705. A passos contados, ele se aproximou do casal, respirando fundo porque a tensão consumia o ar disponível ali, enquanto liberava um odor desagradável de apreensão.

— A rápida melhora do Cadu foi surpreendente, mas um trauma na cabeça, tão pequeno que parecia insignificante, acabou intensificando e danificou uma importante região do cérebro, o deixando em coma.

O diagnóstico saiu completo e preciso, fazendo parecer que bastou abrir a boca pras sentenças se formarem automaticamente, porém antes de proferi-lo o médico precisou repensar as palavras, lapidando-as – por isso os passos arrastados – pra causar o menor impacto possível a uma mãe sensibilizada, só que a reação dela foi adversa. Diferentemente do que se esperaria naquele momento, ela se negou a aceitar a situação, dizendo que logo Cadu ia acordar.

Tentando evitar ilusões e manter a expectativa mais próxima das possibilidades, o médico alertou que a recuperação podia acontecer, mas não era possível mensurar o tempo ou se o garoto retornaria com as faculdades mentais intactas; a escala Glasgow apontava demência como sequela.

“Uma dor profunda pode fazer o tempo se arrastar, ao trazer consigo um peso imobilizante capaz de sugar forças.”

— Doutor, isso não vai acontecer! – Diante da afirmação, foi o médico quem se espantou. – D-s vai curar o Cadu. – Ela foi ousada nas palavras e na fé [2 Timóteo 1.7]. Diante disso, o especialista assentiu e se afastou, torcendo pra que a certeza dela fosse suficiente pra fazer o garoto despertar quanto antes, restabelecido.

Cadu se recuperara de um prognóstico de tetraplegia e por mais medo que isso metesse medo, ainda era melhor que demência. Deixando as previsões negativas de lado – ainda que os resultados atestassem isso – o médico esperou por uma melhora no quadro do paciente.

Devido às proporções do desastre, a notícia continuou a repercutir na mídia, focando Nandinho Baladas, um dos maiores empreendedores do ramo de entretenimento que sofreu um trágico acidente. Isso foi gerando asco em Lourdes, a simples menção do nome do garoto lhe revirava o estômago, fazendo-o soltar bílis que a deixava amarga – por essa razão Marcos passou a evitar telejornais em casa.

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O tempo foi passando e nada do garoto despertar, os novos exames só fizeram atestar que a condição podia se estender por anos e pior: sem perspectiva de recuperação. Com menos vontade de dormir, Lourdes só ia pra cama quando Marcos ressonava, preocupado pelo descanso insuficiente, ele conversou com a esposa, entretanto seus apelos não surtiram efeito. Tentando dar jeito, a conduziu ao quarto e ela resistiu dizendo ainda estar esperta.

— Neguinho, pode ir! – E lhe deu um beijo. – Se eu for agora vou ficar me mexendo na cama, daí é você que não vai conseguir dormir.

— Mas você tá bem mesmo, amor? – Preocupado, ele ainda insistiu.

— Estou sim e, graças à D-s, cheia de encomendas! Agora vai lá, você precisa descansar. – O marido deu um sorriso com toques de cansaço, a beijou e deixou-lhe. Apesar da apreensão, ele sabia que Lourdes estava certa, o melhor era se acostumar ao novo ritmo.

“No fim, o que conta é a intensidade com que se vive os milagres diários não as possibilidades que se deixou de experimentar ou nem chegaram a vingar.”

Numa proporção assustadora os pedidos aumentaram, se antes Lourdes tinha 12 encomendas por semana, agora passava de 30 e aumentando – a tragédia ajudou a propagar seus dotes culinários. Tamanha ocupação acabava lhe servia de terapia, ao cozinhar ela entrava em flow, daí suas receitas saíam mais caprichadas e apetitosas.

Dessa vez, recebeu uma encomenda incomum, bolo de prestígio vegano, então foi separando cada ingrediente, menos o bicarbonato de sódio que não encontrava – às vezes ela organizava a própria bagunça de um jeito que nem ela mesma achava algo – então lembrou de o ter guardado na parte de cima do armário, próximo à geladeira. Ao abri-lo, um pacotinho de miojo se jogou no precipício, rápida Lourdes conseguiu o resgatar.

— O Cadu vivia dizendo que faço armadilha, mas olha só ele aprontando também.

O filho brincava que ela não organizava as coisas nas prateleiras, criava armadilhas. Como Lourdes vivia apressada, costumava sair enfiando os itens de qualquer jeito, assim alguns acabavam se precipitando pra cima de quem ousasse abrir a porta do armário.

Saindo do estado de concentração plena, Lourdes lembrou da situação de Cadu, no mesmo instante olhou pras mãos, aquele era o alimento preferido do filho, então os flashes dele preparando o lamén gourmet na noite anterior ao acidente e tudo o que passou até ali, lhe tomou a mente.

Lembranças de Cadu a elogiando se misturaram a essas memórias, ele fazia questão de dizer o quanto a comidinha da mãe era gostosa e que não a trocava por nenhuma outra, principalmente lanche; modesta, Lourdes dia não ser nada de mais, como se isso diminuísse a qualidade do que preparava com carinho e dedicação. Ah! Se soubesse o tempo restante pra ouvir os afetos do filho, nunca teria interrompido qualquer elogio.

Esperando pra comer

Também esperaria um pouco mais pra comerem juntos, o arrastando pra cozinha ou indo pro quarto dele, podia ser qualquer coisa, só pra aproveitar a companhia de Cadu – no fim, o que conta é a intensidade com que se vive os milagres diários não as possibilidades que se deixou de experimentar ou nem chegaram a vingar.

Mesmo sem comentar, toda vez que ela e o marido faziam alguma refeição a lembrança do filho lhe vinha a mente. Apesar de Marcos amá-la profundamente, a vivência tornou comum o preparo de refeições apetitosas e ele foi esquecendo de elogiar, Cadu é quem puxava a fila.

Lourdes só se deu conta de que chorava quando as lágrimas começaram a pingar no pacote de miojo, então o abraçou como se fosse Cadu, seu neném, agora distante de um jeito que nem podia lhe dar o abraço mais aconchegante do mundo.

Era alta madrugada quando Marcos desperta, meio grogue, virou pro lado da esposa e esticou o braço pra trazê-la pra perto, só pra perceber ser o vazio quem lhe fazia companhia na cama. Abrindo os olhos com dificuldade, levantou, botou o hobby e saiu decido a trazer a companheira, nem que fosse nos braços, pra dormir um pouco.

Lourdes também precisava de descanso, por mais que estivesse cheia de encomenda não era saudável varar a madrugada trampando. Andando pelo corredor, o olfato foi tomado por odores deliciosos, porém, ao chegar na cozinha não tinha coisa nenhuma da esposa lá. Diferente da outra vez, dessa, ele não se assustou porque sabia onde encontrá-la.

— Cadu, mamãe e papai te amam demais, volta logo pra gente, você ainda tem muito o que viver. – Apesar do intenso desejo de vê-lo melhor, o conflito de emoções experimentadas naquele momento umedeceu seu rosto, enquanto permanecia na poltrona, segurando a mão do filho. A experiência de estar diante de Cadu presente apenas fisicamente, lhe deu segurança suficiente pra tocar num assunto que a machucou demais.

“O cuidado também pode ser inconsequente, quando a medida é o bem maior do ser amado.”

Pouco após o nascimento de Cadu, Lourdes foi ao doutor Alexandre com suspeita de estar grávida, como sentira o prazer de ser mãe estava radiante pela oportunidade de dar um irmãozinho à Cadu. Qual não foi a surpresa quando o médico constatou que nela se gerava a evolução do cisto, aumentando a ponto do útero precisar ser removido antes de uma metástase. Eliminado, assim, qualquer possibilidade de conceber de novo.

O ocorrido trouxe bastante tristeza, mas a fez valorizar mais o anjinho que tinha, ainda mais depois de uma gravidez de risco – por essa razão ela se tornou cuidadosa, chegando a beirar a mania.

— Quando mamãe casou não queria filhos, daí você chegou e mudou tudo. Cadu, você foi a melhor coisa que me aconteceu.

— A melhor coisa que nos aconteceu, querida!

— Não me arrependo um só dia de nosso bebê, Marcos! – Ela olhou pro marido que a abraçou com carinho.

Marcos segurou as mãos de Lourdes, que tinha as de Cadu, beijou-as, os dois ficaram ali até ela ser vencida pelo cansaço e adormecer. Quando o corpo estava descansado o suficiente, ela despertou, reparando no marido parado, junto ao leito do filho.

— Amor, você ficou aí enquanto eu dormia?

— Sim! Em casa deu pra descansar bem.  – Ele sorriu ao ver o aspecto dela melhor.

— Neguinho, quanto tempo que você ficou me espiando falar com o Cadu?

— Cheguei logo que você começou a desabafar, mas não quis atrapalhar. Você precisava de espaço.

Assim que Marcos chegou, pelo vidro do quarto, viu a esposa segurando a mão de Cadu, numa conversa intimista, então abriu a porta devagarinho pra não interferir no momento ímpar e ficou hipnotizado vendo-a falar com ímpeto, enquanto expressava suas alegrias e medos, tristezas e devaneios vindos do íntimo da alma. Sabendo o quanto externar aquilo servia de cura pra uma dor a qual Lourdes trazia a tempo demais, ele não interrompeu.

“Coma é o modo de segurança do corpo, ativado quando há um trauma grave, na tentativa de se recuperar.”

O comentário de Marcou provocou riso em Lourdes sorriu, fazendo seu rosto esboçar leveza que evidenciou que a aflição a qual tentou ocultar por anos, não tinha mais poder de dor sobre si.

— Amor, o que a gente tá passando é difícil, mas você não devia sair assim! Pensei que a já tivéssemos conversado sobre isso. – Vendo-a calma, aproveitou pra lhe puxar a orelha.

— Sim, neguinho, perdão! Foi no impulso. – O cuidado também pode ser inconsequente, quando a medida é o bem maior do ser amado.

— Você precisa descansar, querida, se não seu corpo não vai aguentar.

Bastou ouvir isso e ela deu um pulo dizendo estar renovada, tanto que Marcos estava liberado pra ir trabalhar, que ela ficaria cuidando de Cadu.

— Só depois que você me prometer que vai se alimentar direitinho, amor.

— Pode deixar, neguinho! Fica em paz, tô sentindo que logo vai ficar tudo bem.

No momento que Marcos abriu a porta, doutor Pedro Gonzaga quase caiu no chão do quarto.

— Perdão, doutor, não sabia que o senhor estava na porta.

— Tudo bem! – O médico se recompôs. – Vim chamá-los pra uma conversar. Vamos até minha sala, por favor.

Os dois assentiram e acompanharam o médico.

— Sei que vocês não gostariam de receber essa notícia, acreditem eu não a queria dar: fizemos tudo ao nosso alcance, mas nossa dedicação não impediu o estado do Cadu de se agravar. – O médico mal terminou de falar e dos olhos de Lourdes lágrimas escorreram em abundância. – A previsão é que ele sofra morte encefálica.

Tamanha foi o impacto em Lourdes que o médico se espantou, parecia que ela se desfaria em prantos e o que mais lhe perturbou foi o fato dela não nada dizer, teria sido menos agonizante se ela expresse sua dor como antes, brigando com ele.

— Claro que isso ainda não é uma certeza, coma é o modo de segurança do corpo, ativado quando há um trauma grave, na tentativa de se recuperar. Apesar do que os exames apontam, dona Lourdes, posso dizer que sua fé enche a gente de esperança. – Ele tentou consertar, mas era tarde pra isso.

— Tudo bem, doutor! – Ela falou pela primeira vez e foi se levantando. – Podemos ir? – E tentou enxugar o rosto, sem resultado algum.

— Podem sim! – Sem esperar pela reação, ele se levantou meio sem jeito. A dor daquela mãe e a forma abrupta que saiu o constrangeram, apesar de atencioso, a ética o impedia de se envolver com pacientes e familiares pra não prejudicar seu julgamento ou cuidados, mas aquele caso em particular, vinha lhe provocando sentimentos dicotômicos.

Quanto Cadu deu entrada no hospital os paramédicos informaram que Marcos o havia removido e, como se não fosse suficiente pra um pai ver o filho naquele estado, a esposa ainda estava desacordada, considerando isso, o médico achou por bem não comentar que a atitude tomada pra tentar salvar o filho acabou agravando o nível do trauma, foi aí que o garoto melhorou de forma “milagrosa”.

A recuperação do paciente 237, rápida demais até mesmo pras melhores previsões, causou espanto, ainda assim o médico se negou a crer em intervenção sobrenatural, os estudos o ensinaram a crer apenas no que podia ser explicado através da ótica da ciência. Entretanto, a cena de Lourdes orando por Cadu, antes dele despertar, presenciada enquanto passava pelo corredor, ficava voltando em sua mente. Mas, se houve mesmo intervenção divina, como o garoto caíra num estado pior que antes?

Em seus passeios

Em seus passeios pelo corredor, doutor Pedro Gonzaga chegou a ouvir os risos que saíam do quarto 705 – uma felicidade tão real que o contagiou fazendo-lhe sorrir. O misto de lembranças, o fizeram questionar como algo intensamente bom podia se dissolver daquela forma, fazendo o motivo de comemoração desaparecer num curto e ignorado instante?

Assim, mesmo não crendo em D-s, o médico se pegou pensando que, caso esse ser sobrenatural existisse, foi injusto ao possibilitar imensa alegria só pra tomá-la com violência, mesmo dona Lourdes continuar crendo – conforme a ouviu proferir esperança, antes de Marcos abrir a porta e ele perder o suporte por onde escutava a conversa.

Ante essas lembranças e indagações, seus olhos marejaram até a porta se abrir sem ele esperar, o obrigando a secar os olhos com pressa, só pra se espantar com a visão de quem lhe interrompeu as reflexões.


#proximoepisodio

Após ser surpreendido, doutor Pedro Gonzaga recebe uma proposta improvável e como o número de propostas por episódio não havia atingido seu limite ele também faz a sua que gera repulsa. Não satisfeito, o médico assedia Lourdes pra aceitar sua sugestão, a obrigando a denunciá-lo ao conselho hospitalar.

Conheça a história com acontecimentos inéditos e um episódio extra!

Ósculos e amplexos,

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