Articulário: Tropeços que mudam destinos
Noah Buscher/ Unsplash

Tropeços que mudam destinos

“Existem diferentes razões que nos levam a fazer algo. Algumas tão fortes que não apenas guiam: mudam por completo o sentido a ser percorrido.”

Mishael Mendes, Interrompido – A curva no vale da sombra da morte

Amadores amarão

Nossas paixões nos movem, levam a diferentes direções fazendo alcançar metas, ultrapassar barreiras e viver realizações seja qual for o objetivo. Essas inclinações são as responsáveis por guiar na quantidade de tempo e recursos gastos em obter o que desejamos – como falado por aqui. Conforme é possível ver com amadores, apesar do conceito negativo atual, sua etimologia mostra o oposto, amador vem do latim amator, “aquele que ama, que gosta de”, de amare, “amar, gostar de”, afinal, sua dedicação se dá por seu apreço por uma atividade. Quase todas as descobertas até a década de 1800 foram feitas por amadores, onde poucos tinham meios pra se dedicar de forma integral ou quem lhes bancasse. Gregor Mendel, por exemplo, foi um frade que mesmo sem muitos recursos possibilitou o nascimento da genética clássica através de seus estudos com ervilhas. Em 1865, ele apresentou as leis que regem a transmissão das características hereditárias.

Segundo Albert Einstein, “o amor é um professor melhor que o senso de dever”, conforme rabiscou numa carta, em 1940, a Philipp Frank, que acabou por se tornar biólogo. Isso acontece porque a educação formal foi feita pra obter o controle, de acordo com John Taylor Gatto em “Emburrecimento Programado” (“Dumbing Us Down“, de 1991), além de não ser funcional pra todos, como ensinou Paulo Freire com métodos que revolucionaram a educação, e levou a surgimento da pedagogia crítica que busca ensinar a ver além do superficial, despertando um senso crítico e cujo livro “Pedagogia da Autonomia“, de 1996, foca numa educação construtivista, já que cada um absorve a sua maneira – existem pelo menos sete formas de aprendizagem. Assim, a falta dos estudos acadêmicos acaba por permitir seguir caminhos nunca traçados e encontrar alternativas ainda não imaginadas, onde a pessoa é guiada pela percepção, como pode ser comprovado com David H. Levy, formado em inglês, que descobriu cometas do quintal de sua casa.

Caindo de quatro

Apesar de pulsar as fontes da vida [Provérbios 4.23], não é possível conhecer o coração, sendo mais perverso que todas as coisas, é capaz de causar engano [Jeremias 17.9], fazendo a gente atribuir mais valor ao que não é tão importante e ir na direção mortal por causa de decisões erradas – conforme vimos aqui – que causam espanto, como o fim do casamento de Gisele Bündchen e Tom Brady. Segundo Thomas Hobbes, em “Leviatã” (“Leviathan“, de 1651), o desejo humano desconhece limites, assim, nunca estamos realmente satisfeitos; nossa existência seria definida pela ganância. A essência do ser humano é ser ganancioso. Nosso conceito de felicidade estaria atribuído em na contínua obtenção de bens, o que levaria a um descontentamento, já que “a própria vida é apenas movimento, e nunca pode ser sem desejo, nem sem medo, não mais do que sem sentido”.

Isso acontece por duas principais razões: um conceito de sucesso difícil de alcançar ou impossível de satisfazer e pelo fracasso em alcançar obter sucesso que reduz a autoestima a transformando em inveja e infelicidade. Segundo Gandhi, “à Terra fornece o suficiente pra satisfazer a necessidade humana, não a ganância de cada um”. Assim, nossas paixões podem se tornar perigosas e nos prender a um único objetivo enquanto nos cega pra os demais. Razão pela qual o que deve balizar nossas decisões deve ser a Verdade, viva e poderosa, mais afiada que espada de duas lâminas a ponto de chegar na parte mais oculta, entre a divisão da alma e do espírito, revelando o que move os pensamentos e desejos mais íntimos [Hebreus 4.12].

Se perdendo nas intenções

Ainda que a gente se perca, é importante lembrar que tendo o que comer e vestir devemos estar contentes, afinal, não trouxemos nada quando viemos pra essa dimensão, nem vamos levar coisa alguma. Por isso a gente deve se contentar com as coisas que nos fazem feliz, ao invés de buscar enriquecer e cair em tentações e armadilhas dos desejos irracionais e nocivos, que apenas levam à ruína e destruição. Pegando apego na raiz que leva a todo mal, fazendo desviar dos valores a trazer sobre si muitos sofrimentos. A forma de fugir dessas coisas é buscar a justiça, a devoção, também a fé, o amor, a perseverança e a mansidão. Lutando o combate da integridade, pra nos apegar ao propósito confessado, assim não poderemos ser acusados de coisa alguma [1 Timóteo 6.7-14].

Ainda assim nosso cuidado pode cegar – como abordado por aqui – impedindo ver a direção seguida, é quando mudanças bruscas surgem como forma de nos podar pra perceber crescermos na direção errada, levando a uma conversão que nos faz recalcular a rota. Conversão vem do latim conversio, de convertere, “virar, fazer dar uma volta, transformar”, de com, “junto”, mais vertere, “virar, torcer”, com o sentido de mudar a direção; que leva a quebrar o ciclo e fazer uma mudança radical, ao apontar pro que realmente importa. O processo costuma ser traumatizante e nos deixar quebrados por inteiro, como uma queda de cabeça a três metros de altura que fez Kirk Franklin ficar mais apaixonado por D-s ou as mudanças causadas em Reinaldo Gianecchini, narradas em “Giane – Vida, arte e luta“, de 2012; infelizmente nem sempre a pessoa muda, mas desde que o espírito continue intacto, a transformação acontece.

Caindo do cavalo

O maior exemplo de transformação surgido devido a um acontecimento foi o de Paulo, que de perseguidor feroz dos que seguiam a seita Caminho [Atos 24.14] – nomeados mais tarde como Cristianismo [Atos 11.26] – após um encontro que o fez cair. Mas, diferente do que se propaga, o apóstolo não caiu do cavalo. Segundo o doutor Taylor Marshall, uma das razões dele estar a pé é que o horário que aconteceu o encontro coincidia com um dos momentos de oração [Salmo 55.16-17], respeitado pelos fariseus, Paulo como cumpridor da lei que era [Filipenses 3.5] quando caiu devia estar desmontado.

Embora a distância entre Jerusalém e Damasco fizesse mais sentido ser percorrida de cavalo, já que realizada a pé levava quase dois dias, tempo esse reduzido pra sete horas sem o cavalo precisar fazer paradas, ainda mais com uma missão importante daquelas. Porém, o trajeto não aconteceu a cavalo porque na época os animais eram mais usados na guerra pra puxar carruagens não pra ser montados, além disso, ter um cavalo era sinal de riqueza a ponto de aproximar seus donos da realeza, porque além de caros, mantê-los custava uma grana absurda. Nessa viagem, se quer foi usado outro animal, como jumento, burro, camelo, no relato consta apenas que Paulo caiu no chão ao ver a luz [Atos 9.3-4, 22.6-7, 26.12-14].

Homens que correm com cavalos

Emocionado como Paulo estava pra pegar os crentes, ele e seus companheiros não teriam se importado de ir a pé, ainda mais porque o planejado era fazer a limpa por lá [Atos 9.2], além disso, após saber a quem pertencia à voz, recebe a ordem de apenas entrar na cidade [Atos 9.6] pra qual é conduzido pela mão logo que levanta e se percebe cego [Atos 9.8, 22.11]. Caso estivesse montado em algum animal, teria sido colocado de volta em seu lombo e ambos guiados. Seus companheiros também estavam a pé já que ao ouvir a voz apenas ficaram calados, não há menção alguma que pararam devido ao susto.

Esse entendimento surgiu na Idade Média, o registro mais antigo que se tem notícia é o quadro “Saint Paul sur la route de Damas, miniature extraite des Heures d’Étienne Chevalier” (em livre pt-BR: “São Paulo a caminho de Damasco, miniatura das Horas de Etienne Chevalier”, surgida entre 1452-1460), de Jean Fouquet, onde o pintor usou a licença poética dos cavalos pra enfatizar e dar maior nível de drama a queda de Paulo, como cavalo era um meio de transporte popular na idade média, a escolha se mostrou certeira já que ele queria atingir seus contemporâneos. A partir daí o efeito Mandela se consolidou e a queda de Paulo passou a ser retratada com cavalo por outros artistas, como Michelangelo entre 1542-1545, porém, ninguém adicionou mais emoção a cena que Caravaggio com “A conversão de São Paulo” (“La Conversione di San Paolo/ Conversione di Saulo”, de 1600-1601). Onde o destaque ao cavalo levou os críticos a chamar o quadro ironicamente de “A conversão do cavalo”, já que a regra era não botar um animal ou elemento secundário no centro pra não chamar muita atenção.

Mudança 180º

Segundo Maurizio Calvesi, em “Realtà Del Caravaggio” (em livre pt-BR: “A realidade de Caravaggio”, de 1990), a ênfase dada pelo pintor ao equino se deu pra destacar a irracionalidade do pecado, onde o escudeiro seria a razão, e a luz, a graça divina que rompe na escuridão do pecado, cujas cores escuras dão ainda mais volume aos personagens, principalmente ao cavalo. Algo replicado com sucesso e com mais tragédia no pouco conhecido “Conversione sulla via di Damasco” (em livre pt-BR: “Conversão no caminho de Damasco”). Tamanha foi essa influência que até mesmo Calvino, que por volta de 1550, transcreveu palavra por palavra de Atos, o comentando versículo a versículo ainda viu Paulo caindo do cavalo. Mesmo essa queda de um animal não sendo literal, a visão que derrubou Paulo é um dos fatos maravilhosos em sua vida, algo que ele fez questão de destacar que ela aconteceu ao meio-dia [Atos 22.6, Atos 26.13], deixando claro que sua queda não se deu por falta de visibilidade ou que a luz se tratava de alguma aparição ou ilusão de ótica. Segundo Calvino, às vezes surgiam relâmpagos a noite, devido às exalações quentes da terra, por isso o apóstolo frisou o horário pra mostrar não se tratar de uma visão fantasmagórica ou de um transe que lhe roubou a razão, até porque a visão foi acompanhada de uma voz que lhe falou com clareza.

Entretanto, ainda mais incrível na vida de Paulo é como um empolgado por exterminar os seguidores do Caminho [Atos 9.1-2] experimentou uma mudança que o tornou dedicado a ponto de considerar tudo como perda comparado a suprema grandeza do conhecimento que obteve. Renegando sua instrução, a qual antes lhe era motivo de orgulho e a considerar esterco [Filipenses 3.8], bem como ignorar sua cidadania romana que lhe dava regalias [Atos 22.25-29], tudo isso pra sofrer açoites, prisões, perseguições, fome e estresse [2 Coríntios 11.23-20] pela propagação da seita a qual tentou exterminar com tanta dedicação, chegando a dizer que seu viver era Cristo e a morte era lucro [Filipenses 1.21].

No fundo do poço

A queda costuma estar associada a momentos de redenção, já que as dificuldades nos lembram de nossa proximidade com o chão, que somos apenas pó [Gênesis 3.19, Gênesis 18.27, Salmos 103.14, Eclesiastes 3.19-20]. Dessa forma somos expurgados de todo orgulho, como Paulo, de nossa segurança e recursos, como aconteceu com Jó, ao qual mesmo dedicado vivia na cegueira da religião, após perder tudo e em meio ao sofrimento conseguiu dizer “eu sei que o meu Redentor vive, e que por fim se levantará sobre à terra” [Jó 19.25], cuja experiência o fez perceber conhecer a D-s apenas de ouvir falar [Jó 42.5]. Também pode trazer amadurecimento, como aconteceu com José após ser lançado no fundo do poço e vendido pelos próprios irmãos pra se tornar escravo, até comandar a maior potência mundial daqueles tempos.

Ela também pode levar a humildade e um caráter transformado, como aconteceu com Nabucodonosor, que precisou enlouquecer e viver como um bicho do mato pra reconhecer a soberania de D-s, cujo controle é sobre tudo e nenhum governo escapa de suas mãos, diante do qual ele se humilhou voluntariamente. Mudanças bruscas são dolorosas, mas permitem atentar pra essência, alteram a visão e fazem ouvir a voz que transforma nosso caráter.

Sou dias de sol, mas já fui temporal

Uma experiência de quase morte, tragédia ou perda pode mudar tudo, porque nos força a alterar nossa percepção da vida, como aconteceu com John Newton, que trabalhava com o comércio de escravos por mar até

1748 uma feroz tempestade fazer seu navio bater violentamente e encalhar, onde no meio da tormenta encontrou Deus e acabou se convertendo até abandonar o trabalho anos depois, se dedicando a estudar teologia e se tornando reverendo, cujas experiências como tripulante de um navio de escravos e sua conversão – até a influência sobre William Wilberforce e sua luta pela abolição da escravatura na Inglaterra que aparece no filme “Jornada pela liberdade” (“Amazing Grace”, de 2006), baseado no livro “Amazing Grace – William Wilberforce and the Heroic Campaign to End Slavery” (“Graça maravilhosa – William Wilberforce e sua heroica campanha pra acabar com a escravidão”, de 2007). Sua conversão, que lhe fez provar as profundezas da misericórdia de D-s o levou a compor a poesia “Graça maravilhosa” (“Amazing Grace”, de 1772), que acabou musicada anos depois, regravada por Aretha Franklin após duzentos anos, em 1972, durante um show ao vivo que rendeu o documentário “Amazing Grace”, de 2018, que só foi lançado quase 40 anos depois.

Contextualizando

A frase que originou essa reflexão faz parte de “Interrompido – A curva no vale da sombra da morte“, uma minissérie que mostra que nossa humanidade é que nos leva a viver os desejos mais profundos e a cometer os erros mais insanos. Ela surge após Socorro, que nunca se imaginou enfermeira, entrar pra área, onde servia de referência por seu profissionalismo e dedicação aos pacientes.

Artigo publicado originalmente no LinkedIn, também está disponível no Medium.


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Ósculos e amplexos,

Mishael Mendes Assinatura
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