Articulário: Temperando com pedacinhos de nós
Kyle Austin/ Unsplash

Temperando com pedacinhos de nós

“Não importa a quantidade do que é feito, mas o quanto de si, é posto em cada coisa.”

Mishael Mendes [Efésios 6.7-8]

Caminho pra lugar nenhum

Talvez o fato mais nonsense do lugar descrito em “Alice no País das Maravilhas” (“Alice’s Adventures in Wonderland“, de 1865), nem seja as esquisitices que acontecem por lá, mas de Caroll o chamar País das Maravilhas (Wonderland) – Alice que o diga. Após cair de paraquedas num local estranho, com gente esquisita e passar uns apertos, a garota decide dar o fora e pergunta ao Gato de Cheshire qual caminho seguir pra longe daquela zona.

Como ela não soube dizer pra onde queria ir, o Gato lhe responde que quando não se sabe aonde vai, qualquer caminho leva até lá. O que pode ser o mesmo que nada, Henry Kissinger disse “se você não sabe pra onde está indo, todas as estradas te levarão a lugar nenhum”, algo confirmado séculos antes por Sêneca: “quando não se sabe aonde vai, nenhum vento é favorável”. Assim, pra ir de um lugar ao outro – onde o ponto inicial é nossa localização atual e o de destino aquilo que desejamos – é preciso ter claro esse objetivo, assim será possível calcular uma rota pra alcançá-lo.

Estrada de tijolos amarelos

Porém, entender o que será preciso é só o começo da caminhada por uma estrada de tijolos amarelos a se estender quilômetros a frente, mas contar com a força de vontade pra isso é um erro. Segundo estudos conduzidos pelo psicólogo social Roy F. Baumeister, existe um estoque finito de energia mental que podemos utilizar. Conforme tomamos decisões ao longo do dia, entramos em esgotamento do ego – ou fadiga de decisão – assim nossa força de vontade acaba.

Pra se manter engajado é necessário depender de algo mais consistente que nos faça acordar dispostos e lavar o rosto pra enxergar a beleza do dia, mantendo “foco no progresso, martelo no prego”, como poetizou MC Paulin da Capital, em “Mil motivos”. Saber esse porquê pode ser a diferença entre apenas querer e conseguir na real. É aí que entra a motivação.

Não para, não para, não para não

Motivação é a iniciativa, com as razões e desejos que nos orientam, dando motivo pra continuar empenhado, se desgastando a cada dia. Ela pode ser interna (intrínseca) ou externa (extrínseca), mas as pessoas mais bem-sucedidas são as que se comprometem independentemente de fatores externos ou de como esteja o ambiente – como abordado aqui. Como Geraldo Rufino, que se tornou empresário de sucesso e referência, catando lixo e se reinventou mesmo em meio a uma crise – uma bela experiência de vida a qual ele compartilha em “O catador de sonhos“, de 2015.

A motivação é a força energética que orienta e nos projeta pra fazer as coisas, traçando planos e caminhos. Apesar de nos despertar pro que deve ser feito pra alcançar o objetivo, é o trabalho duro quem conduz pela caminhada da realização. Mas, o que seria esse termo pesado?

No suor do teu rosto

A gente costuma ter uma ideia errada sobre esse conceito, graças ao preconceito espanado com a fábula da “Cigarra e da Formiga“, de Esopo, do século VI a.C., que já deu muito babado e confusão ao longo das décadas, como mostra a crônica “Polêmica, pra não chamar de barraqueira“. Trabalho duro é o mesmo que dedicação, conforme mostra “Cigarra e Formiga – Como você nunca viu”, uma versão atual e tupiniquim da fábula. Esse traço positivo é que leva a grandes conquistas e a uma vida bem-sucedida – como vimos por aqui. Sendo uma força poderosa, ele molda e nos impulsiona a alcançar cada objetivo. Pra Bear Bryant, jogador e treinador de futebol americano universitário, “não é a vontade de vencer, mas a vontade de se preparar pra ganhar que faz a diferença”, ou seja, ter motivação não basta, a menos que haja comprometimento em alcançar esse objetivo.

Segundo Thomas Edison, a “genialidade é 1% inspiração e 99% transpiração”, ele sabia o quanto a persistência é o que permite aperfeiçoar o processo e conduzir a resultados; foram suas tentativas e erros que o levaram a criação da lâmpada e do fonógrafo, além de diversas outras invenções.

Vale mais que cem

Mesmo assim, a dedicação só é possível acontecer com motivação, afinal, precisa existir um motivo pra direcionar nosso empenho. A etimologia da palavra dedicar vem do latim dedicare, “consagrar, afirmar, colocar à parte, proclamar”, já motivação vem do latim tardio motivus, “deslocar, fazer mudar de lugar”, com a ideia de movimento.

Enquanto motivação é o que dá significado pra nos mover em busca daquilo que desejamos, dedicação é o compromisso em adotar atitudes e ações constantes que nos levarão a concretizá-los. Uma precisa da outra, porque enquanto a dedicação é a força motriz da ação, ela se alimenta da motivação pra continuar impulsionando a agir em constância até a disciplina se tornar hábito.

Alimentando sanguessuga

Pra que tanto a motivação e a dedicação continuem ardendo é preciso agir de forma consciente, algo que surge ao nos responsabilizarmos com o objetivo e nos mover diariamente em direção a ele. O que não significa se matar de trabalho, como se costuma pensar, nem sair correndo sem nunca parar até mesmo pra respirar, como compartilha Jack Kerouac em Pé na estrada (On the Road, de 1976). É fazer as tarefas de forma inteligente, aprimorar processos, manter a concentração no que é importante, eliminando distrações e atividades desnecessárias pra aumentar a produtividade e seguir com consistência.

Até porque se sobrecarregar não significa ir na direção correta, o Gato de Cheshire disse ser possível chegar em qualquer lugar “desde que ande o bastante”. Assim, além de não chegar aonde queremos, atirar pra todo lado ainda pode causar burnout que minará toda motivação e a dedicação.

Assobiando e chupando cana

Na composição própria “Assobiar ou chupar cana”, de 1975, Benito de Paula usou a expressão pop, pra reforçar que tentar se dedicar a mais de uma coisa não é possível. Você pode nunca ter tido razão pra fazer isso, mas existe quem tentou e vale o play pra dar umas risadas. Embora seja uma tarefa impossível de realizar, a gente acaba fazendo isso cada vez mais sem nem se dar conta de a estar fazendo, e ainda achamos isso uma questão de sofisticação. Pra nomear o boi, esse modo é chamado multitarefa, que consiste em tentar fazer mais de uma coisa ao mesmo tempo, seja alternando rapidamente entre elas ou as executando rapidamente uma após a outra.

Só que diferentemente do que possa parecer, o modo multitarefa não é uma habilidade dos mais evoluídos, ela existe entre animais selvagens – que precisam estar atentos enquanto comem pra não serem devorados, nem perder sua prole. Esse conceito se quer existe, conforme explica o neurologista Leandro Teles, em entrevista a Gama Revista, “a verdadeira multitarefa seria a capacidade de fazer várias coisas em simultâneo, com a mesma competência que você faria separadamente.”

Ou isto, ou aquilo

Cecília Meireles deixou um poema simples e com a profundidade certa – publicado em 1964 – pra clarificar que não é possível se ter duas coisas boas acontecendo em paralelo – e ela não estava errada. É que ao invés de proporcionar maior produtividade, o modo a reduz, prejudicando a atenção e a capacidade de compreensão. Conforme um estudo realizado pela Universidade de Stanford, forçar o modo multitarefa aumenta o nível de estresse e afeta negativamente o humor e a motivação. Além de sobrecarregar o cérebro, a falta de foco aumenta o número de erros, nos faz gastar mais tempo mesmo com atividades simples; inibe a criatividade, altera a memória de curto prazo e causa ansiedade. O simples fato de mexer no celular enquanto assistimos, pode resultar num impacto prejudicial à aprendizagem.

Segundo Nicholas Carr, autor do livro “A Geração Superficial – O que a internet está fazendo com nossos cérebros” (“The Shallows – What the Internet Is Doing to Our Brains“, de 2010), a internet está nos tornando “pensadores dispersos e superficiais”, e o excesso de informação e a multitarefa arruinando nossa capacidade de concentração ao deteriorar a “riqueza de nossos pensamentos”. Já alertava René Descartes: “mesmo os mais perfeitos espíritos terão necessidade de dispor de muito tempo e atenção”, assim o melhor é focar nossa atenção na tarefa em questão e programar um tempo pra pausar as atividades paralelas.

Propósito, eu quero um pra viver

Mesmo com tudo isso, ainda é possível a gente desanimar em algum ponto, exceto se nossa motivação expandir em direção a algo maior que nós mesmos; levando ao que dê sentido a nossa existência e dedicação: o propósito. Pra isso é necessário repensar a vida até esse momento, além de nossos valores, aptidões e o que amamos; porque essa busca exigirá de nós um compromisso emocional, mental e físico. Se a escolha parecer difícil, basta seguir o conselho de Roy T. Bennett, “dedique-se ao que dá verdadeiro sentido e propósito à sua vida: fazer uma diferença positiva na vida de alguém”.

Uma vez feito isso, “não pode mais olhar atrás”, escreveu Adauto José, na canção interpretada pelo Grupo Logos, em 1985, pois isso significa despreparo [Lucas 9.62]. Até porque depois que essa decisão é tomada ela pode nos dizer a melhor maneira de chegar lá, indicou John G. Kemeny, em “A Philosopher Looks at Science” (em livre pt-BR: “Um olhar filosófico sobre a ciência”, de 1959). Esse movimento de avanço significa trocar tudo pelo propósito e seu valor incalculável [Mateus 13.44-46]. Também deixar o peso que nos atrapalha pra seguirmos com perseverança [Hebreus 12.1] e reduzir a carga de tarefas pra focar num único objetivo.

Um tesouro escondido

Isso não significa menos trabalho, mas realizá-lo com direcionamento, permitindo a motivação continuar queimando – sem importar o vento lá fora – até o propósito transbordar em nós [Romanos 5.20]. É preciso fazer, como filosofou Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa, “para ser grande, sê inteiro: nada teu exagera ou exclui; sê todo em cada coisa; põe quanto és no mínimo que fazes”. Ode essa publicada, em fevereiro de 1933, na revista Presença, n.º 37, que pode ser encontrado no livro “Odes“.

Ao encontrar nosso propósito, fica fácil haver entrega em tudo o que fizermos, independentemente de sermos ou não vistos, fazendo nosso melhor, porque nossa recompensa se dará pelo empenho [Efésios 6.7-8], não pelo número de reconhecimentos conquistados. A começar por experimentar uma vida com mais significado, aumento de foco, autoconfiança, autodisciplina e alargamento de tempo. Além de persistência, que com o passar dos anos, pode nos tornar em referência ao inspirar as demais pessoas.

Artigo publicado originalmente no LinkedIn, também está disponível no Medium.


Fortalece a firma

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Ósculos e amplexos,

Mishael Mendes Assinatura
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