És fascinação
Desde que a humanidade percebeu borboletas a flutuar pelo céu ou pousando em flores, ela exerce fascínio sobre nós – os fósseis mais antigos encontrados, datam de 40 a 50 milhões de anos atrás, conforme um estudo publicado na Royal Society of London, em 2004. Sendo um dos insetos mais abundantes e reconhecíveis, se encontra presentes em todos os continentes e climas, com exceção da Antártida, habitando regiões que vão do deserto à floresta tropical, até pastagens e planaltos montanhosos. Elas chamam atenção por onde passam com uma beleza que lhes diferencia dos demais insetos, como se estivessem num patamar superior, como um ser mítico, feito uma fada, ou pássaro, conforme sugere o norueguês sommerfugl, “pássaro de verão”, ou ainda, fazendo parte da realeza, como o nome dado a borboleta-monarca (danaus plexippus), no século XIX, pelo entomologista Samuel Scudder, por considerá-la “uma das maiores borboletas, a governar um vasto domínio”. Suas cores vivas e formatos servem pra espantar predadores, e os diferentes desenhos das asas permite ser confundida com outros insetos ou se misturar com facilidade na natureza. Borboletas ainda encantam pela sua metamorfose que as transforma de uma criatura – de beleza questionável e andar desajeitado – num ser alado com voo gracioso.
Tamanha é essa admiração que alguns estados norte-americanos têm uma borboleta oficial, além de mexer com a imaginação de nossos antepassados. Como pode ser percebido no próprio nome do inseto, borboleta vem de belbellita, que parece ter sofrido influência espanhola, já que é formada através da duplicação do latim bellus, “bem, bonito, belo, encantador”, com o sufixo “ita”, usado pro diminutivo na língua hispânica; no século XVI, surgiu a variação berbereta, que acabou por se transformar em borboleta. Ela possui outro sinônimo, embora não tão conhecido, “panapaná” ou “panapanã”, do tupi panapa’ná, duplicação de pa’nã (ba’nã), redução de pa’nama, borboleta; assim, panapaná seria um agrupamento de borboletas, “muitas borboletas juntas“, que chegam a formar nuvens. Então, além de sinônimo, panapaná também é usado como coletivo de borboletas.
Bateu asas e voou
Em outros idiomas, a borboleta tem nomes curiosos, pros franceses é papillon, os italianos a chamam farfalla, ambas descendentes do latim papilione, do indo-europeu *pal-, “sentir, tocar, sacudir”. Sofrendo influência do francês antigo “parpalhos, parpaja”, a forma italiana acabou divergindo do original. Os anglo-saxônicos usavam “butterfloege”, de butter, “manteiga” e floege, “mosca”, devido à cor das borboletas encontradas na Inglaterra serem de tonalidade parecida com a da manteiga; esse nome influenciou o inglês butterfly, “mosca da manteiga”.
Sua delicadeza quase transcendente, a fez ser associada ao sobrenatural, em gaélico escocês é chamada seilleann-dé, “abelha de D-s”, e dealan-dè, “relâmpago de D-s”. Os gregos antigos a relacionavam a materialização da essência, por isso a chamavam psȳchē, “alma, fôlego, respiração” – ou “mente” no conceito atual. Esse nome era dado porque se acreditava serem a alma – como os balubas e os luluas do Kasai, no Zaire central – que escapava pela boca, por isso na “Ilíada” (“Iliás”, do século VIII a.C.), Homero diz que uma vez que a alma passe a barreira dos dentes não pode mais retornar. No grego moderno, é chamada petaloudia, “pétala, folha; se espalhando”.
De acordo com Lafcadio Hearn, em “Kwaidan – Stories and Studies of Strange Things” (“Kaidan” | em livre pt-BR: “Histórias de fantasmas”, de 1904), a borboleta é a personificação da alma de um familiar morrendo ou já falecido que retornava pra um último adeus; segundo a lenda japonesa o problema era se apareciam de bonde, porque traziam mau agouro, prenunciando a morte de alguém. Além de serem vistas como espíritos viajantes, borboletas simbolizam as gueixas, representando a feminilidade devido a sua leveza e graciosidade; também é um símbolo matrimonial, representado por duas borboletas, uma pra cada sexo, mostrando união.
Quem também acreditava que elas se tratam de almas retornadas dos mortos, são os maoris, da Nova Zelândia, bem como os iranianos e alguns povos turcos da Ásia central, pra quem podiam aparecer a noite, já pros maias a espécie responsável pela metamorfose eram as monarcas. Nas Ilhas Salomão, o moribundo que pode escolher o que se tornar após a morte, muitas vezes opta pela borboleta. Enquanto na mitologia irlandesa, elas representam a alma dos mortos esperando passar pelo purgatório, representando transformação e renovo; pro sufismo islâmico, a borboleta que se queima nas chamas – como na fábula de Leonardo da Vinci – é a alma que se perde no fogo divino. Pros astecas, elas serviam de guia pros guerreiros, mortos em campo de batalha, e mulheres, que não resistiam a um parto difícil, os conduzindo ao lugar de repouso. Embora de vida curta, ainda representam a longevidade, no mundo sino-vietnamita, estando associada ao crisântemo que reflete o outono, ou a renovação, já que nessa estação ocorre a queda de suas folhas.
Beleza cegante
Borboletas e mariposas pertencem à ordem lepidóptera, do grego lepís, de lepídos, “escama”, e pterón, “asa” – que possui cerca de 180.000 espécies, divididas em 126 famílias e 46 superfamílias, representando 10% de todas as espécies de organismos vivos. Essas escamas inseridas em ambos os lados das asas, de forma total ou parcial, se encaixam como telhas, possuindo diferentes formas e funções; por seu tamanho microscópico parecem um pó que se solta quando são presas ou tocadas. Ao contrário do que se afirma, ele não causa cegueira, quando em contato com os olhos, o máximo que provoca é irritação ou inflamação passageira, como qualquer outro corpo estranho em contato com os olhos, cujo processo serve pra eliminação do invasor.
Ainda que as escamas sejam cortantes a tecidos delicados, pra causar cegueira seria necessário danificar a retina ou a córnea, que se localizam no profundo do globo ocular. O que de mais grave que poderiam causar, seriam microlesões na parte branca que se não tratadas infeccionam, criando um problema grave, algo evitado simplesmente lavando as mãos. Entretanto, as fêmeas das mariposas hylesia podem causar dermatite, uma queimação que deixa a pele avermelhada, além de incômodo e coceira intensa que pode evoluir pra bolhas e feridas. Algo que surge devido às cerdas espalhadas em seu corpo – não às escamas nas asas – servindo de proteção pros ovos, essas cerdas se desprendem durante o voo ou ao colidirem com lâmpadas e outros objetos. Já as escamas possuem diversas funções, como dividir a luz e colorir as asas com tons brilhantes e vivos que ajudam a regular a temperatura corporal das borboletas; atrair o sexo oposto, também como órgãos sensoriais. Quando ampliadas, entre 7 e 17 vezes, é possível enxergar padrões de uma beleza que faz cair o queixo, como mostra o fotógrafo Linden Gledhill.
O ciclo de vida de ambas consiste em quatro fases: ovo, lagarta, pupa ou crisálida e imago, que seria a borboleta ou mariposa, de fato. Além de hábitos diferentes, onde a maioria das borboletas são diurnas e as mariposas noturnas, outras coisas que as diferencia são: a posição das asas, mariposas costumam deixá-las abertas, já borboletas fazem o oposto; e as antenas, a das mariposas possuem cerdas sensoriais que servem para captar feromônios do sexo oposto, fazendo-as parecer plumas, a das borboletas, são fininhas com a ponta dilatada.
Fecha no close, Maria
Mesmo com um parentesco próximo, enquanto borboletas costumam estar associadas a coisas boas, o mesmo não acontece com as mariposas. Isso se dá devido a seus hábitos noturnos, pela noite e a escuridão estarem relacionadas ao desconhecido, acabam evocando o medo em nós, como escreveu H. P. Lovecraft, no ensaio “Horror Sobrenatural em Literatura” (“Supernatural Horror in Literature“, de 1927), “a emoção mais antiga e mais forte da humanidade é o medo, e o mais antigo e mais forte de todos os temores é o medo do desconhecido”, juntando isso a cor escura de suas asas, cuja associação se dá a ausência da luz que provoca trevas, elas acabam recebendo uma aura de mistério e mal agouro, que as conecta à morte.
Apesar do nome mariposa diferenciar as borboletas noturnas, no espanhol – de onde descende – a palavra sempre foi usada pra borboletas, a mariposa deles é chamada polilla, já em Portugal, mariposa é usada pra ambos os insetos, enquanto a mariposa é chamada traça. Segundo Joan Coromines e José Antonio Pascual, em “Diccionario crítico etimológico castellano e hispánico” (em livre pt-BR: “Dicionário crítico etimológico castelhano e hispânico”, finalizado na década de 1970 e publicado em cinco volumes no início da década de 1980), mariposa vem da expressão “Maria, posa(te)” (em livre pt-BR: “Sossega, Maria”), proveniente de alguma cantiga infantil ou de “la Santa Maria posa” (em livre pt-BR: “A Virgem Maria desce ou descansa”); uma construção parecida é encontrada na versão sardenha de borboleta, mariavolavola, “voa, voa, Maria”. Inclusive, a prática de dar nomes pessoais é comum em línguas românicas, como mariquita, “joaninha”, do espanhol mari-quita, “se manda maria” ou sua versão catalã, marieta; o catalão guilla, “raposa”, que vem do apelido Wilhelmina e o francês renard, “raposa”, descende de Reginhard.
É hora de morfar
Pelas borboletas possuírem estágios de mutação tão diferentes dos outros insetos, acabam por representar a transformação física – como na Malásia, onde simboliza transgêneros – também de mudança espiritual, como os cristãos que aplicam seus estágios a vida, morte e ressurreição; inclusive em algumas culturas, caracteriza a nova vida em Cristo. Já pra nova era, borboleta se trata da evolução interior, pautada em seus princípios, trazendo renovação, renascimento, ressurreição, transformação e as potencialidades que serão atingidas ao alcançar a liberdade.
Esse poder de mutação as fez ser imaginadas não apenas como seres que se transformam, mas como resultado da mutação de outras entidades. Certa lenda indígena conta de um grupo que migrava pro México, em meio ao frio intenso e pra terem chance de chegar ao destino, acabaram deixando crianças e velhos pra trás, e pra poderem acompanhar seus familiares acabaram transformados em borboletas-monarcas. O fascínio causado pelas monarcas é antigo, ainda mais considerando que enquanto a maioria dos insetos hiberna, elas são as únicas borboletas conhecidas que migram como os pássaros. Dando fuga no inverno, todo ano deixam os Estados Unidos e o sul do Canadá, voando até as montanhas Michoacán, no centro do México, numa viagem com cerca de 4.000 km, mesmo sem nunca terem feito essa rota antes ou mesmo um grupo pra seguir; fazendo isso de maneira organizada e premeditada, já que economizam energia antes da partida, numa viagem que ultrapassa seu tempo de vida, esse ciclo de ida e volta costuma ser realizado por até quatro gerações de monarcas.
Em mitos asteca, maia e da cultura pré-hispânica, os deuses são retratados como borboletas e cada espécie associada a uma divindade diferente, conforme a cor e os hábitos dos insetos. No condado de Pima, existe a crença que no início o criador assumiu a forma de borboleta e sobrevoou o mundo atrás de um lugar adequado pra humanidade. Conforme a “Encyclopedia of Religion” (em livre pt-BR: “Enciclopédia da Religião”, de 1986) de Mircea Eliade, em Madagascar e entre os nāga de Manipur, alguns afirmam possuir ancestralidade de borboletas.
A borboleta ainda é associada a luz de fogo cintilante e aos atributos de Xochipilli, o deus das flores e da vegetação, na mitologia asteca e maia. Mas essa cultura envolvendo tais divindades também tinha seu lado macabro, representado por Itzpapalotl, a deusa da borboleta obsidiana, cujas vítimas eram imoladas por uma faca sacrificial com lâmina de obsidiana, porque se acreditava que a alma era livre como a borboleta e pra poder capturá-la se fazia necessário o uso da pedra. Seu companheiro era Itzpapalotl, o deus Tezcatlipoca do espelho fumegante – onde “tezcat”, é “faca obsidiana”.
A realidade da bruxa
Com todas essas mutações, não é de se estranhar que borboletas ou mariposas acabaram associadas ao mal, devido ao pigmento escuro de suas asas, e percebidas como representação de um ser maligno e tão antigo quanto a própria humanidade, capaz de se metamorfosear nelas: a bruxa. Apesar de incerta, é possível que a palavra bruxa venha do latim antigo broscia, relacionada com o frâncico brosser, “correr pelo mato ralo” ou de brusiare, “queimar”, do italiano brucia, “queima”, do verbo bruciare, “queimar”, relacionado a prática de produzir suas poções ao cozinhá-las. Que pode ter recebido influência do espanhol “bruja”, do catalão latino “bruixa” ou do românico, occitano “bruèissa”. Também pode ter relação com o céltico bruxtia, alteração do gaulês brixtia, “magia, feitiço”, vindo do nome da deusa gaulesa Bricta. Essa origem pode ter relação com os vocábulos proto-celtas, brixto e brixtu, ambos com significados envolvendo magia ou feitiço, cujas palavras mais antigas, presentes nas línguas célticas, como o irlandês antigo bricht (brichtu), “feitiço, encantamento, fórmula mágica” e do bretão antigo brith (brithron), “varinha de condão, bruxaria, magia”, se referem aos bryxs, “bardos” ou “aedos”, os iniciados nas artes da magia que haviam memorizados encantamentos secretos.
Independentemente de qual seja sua origem – obscurecida pelo tempo devido à quantidade de eras em que surgiu – bruxa é um ser antigo representado por seu aspecto velho e deformado, que costuma ter forma feminina devido ao seu poder de sedução, capaz de todo tipo de maldades, inclusive utilizar feitiços pra assumir as mais variadas formas pra praticar o mal e escapar impune. Escolhendo propositalmente seres versáteis pra assumir sua forma, as mais comuns são aves, como a coruja e o saci, e a de borboletas e mariposas negras, cuja presença acaba por assustar por trazer mal agouro e representar o mal que podem conter.
O próprio nome alemão da borboleta carrega isso, schmetten, de schmetterling, significa “creme, nata”, que apesar de ter relação com produtos lácteos, como a versão inglesa, surgiu baseado na crença que borboletas roubavam leite e nata, algo que acontecia devido a bruxas transformadas nos seres voadores. Sua aptidão em se metamorfosear também está registrada no russo babochka, “borboleta”, um diminutivo de baba ou babka, “velha, avó, por extensão, bruxa”, dando origem a Baba Yaga – o terrível ser sobrenatural que voa num caldeirão em busca de vítimas.
Assim, a mariposa ascalapha odorata, acabou associada a esse ser maléfico, devido a seu hábito noturno e as cores sombrias das asas, a ponto de ser conhecida popularmente como bruxa – associação essa que vem antes mesmo de Colombo atracar na América, em 1492. O próprio nome da mariposa, ascalapha, traz uma aura macabra, isso aconteceu em 1808, quando o entomólogo alemão Jacob Hübner lhe nomeou como referência a Ascálafo, uma entidade horticultora do Mundo dos Mortos na mitologia grega. Nos EUA, a mariposa é chamada de black witch, “bruxa preta”, no México é a mariposa de la muerte, “mariposa da morte” e na Jamaica de duppy bat, “morcego fantasma”. Já na Bósnia, onde se acredita que as bruxas se transformam em mariposas, o inseto é chamado de bruxa mesmo, o que o fez passar a simbolizar poderes psíquicos e dos sonhos.
Essa transformação acontece pra poder realizar seu ato de maior maldade: sugar sangue de bebês. Segundo Ivan G. Americano do Brasil, em “Lendas e Encantamentos do Sertão”, de 1938, reza a lenda que a bruxa surge após o nascimento da sétima filha, quando as crianças anteriores também são do sexo feminino, cuja maldição só pode ser quebrada se ela for batizada pela irmã mais velha; caso isso não aconteça, nas noites de sextas de Quaresma, ela se transforma no ser maligno pra sugar o sangue de inocentes com até sete dias de vida. Assumindo a forma de mariposa, entra pelo telhado, janela ou alguma brecha, que após beber o sangue enche a cara com a bebida que encontrar e abandona a casa, soltando uma gargalhada medonha – que pode ser confundida com um pio – cujo som ecoa à distância.
Choque de realidade
Em culturas americanas, a sorte aparece quando uma borboleta entra em casa, mas se for uma mariposa bruxa, significa que a bruxa está solta e o mau agouro presente, como também reza o folclore tupiniquim, a pobre seria portadora da mensagem do prenúncio da morte a rondar a residência – enquanto outras culturas a consideram a alma do morto retornando pra uma despedida. Já nas Filipinas, qualquer borboleta e mariposa preta ou escura que persiste em ficar na casa é o sinal da morte certa ou recente. No condado inglês de Devon, as pessoas levam tão a sério essa coisa de azar, que correram uma vez pra matar a primeira borboleta do ano e evitar um ano ruim, conforme registrou William Hone, em “The Table Book” (em livre pt-BR: “O livro de cabeceira”, de 1827). Pra afastar todo esse mau agouro, a crendice pop ensina que, ao ver uma mariposa bruxa, deve-se matá-la sem tocar no bicho lazarento e queimá-la com álcool e sal grosso pra espantar qualquer possibilidade de coisas ruins acontecerem.
Porém, os responsáveis pela invasão das mariposas dentro das casas, somos nós. Devido a seus hábitos noturnos, mariposas possuem um sistema de orientação transversal ou celestial, que usa a lua como referência através da escuridão, a partir de elementos em seus olhos que se ajustam a luzes fracas, como minitelescópios. Assim, ao se depararem com uma luz artificial, de lampiões ou lâmpadas, seu brilho intenso atua como um super estimulante irresistível que as atrai, simbolizando a alma em busca de D-s, mas em seu caso essa perseguição se dá porque seus sentidos ficam confusos, as impedindo de poder recentralizar a rota e seguir seu caminho – feito alguém apaixonado que não enxerga a luz verdadeira e acaba consumido pela ilusão, simbolizando o amor místico, a estupidez e a frivolidade, também por nos deixar levar pela sedução da aparência, como abordado em “Derretendo de tanta beleza“. Desorientadas, passam a voar em círculos ao redor da lâmpada, até encostarem nela e serem esturricadas ou devoradas por um louva-deus, ou sapo; o que acaba por atrapalhar sua reprodução.
Quem também usa uma bússola interna, são as monarcas, num estudo realizado em 2016, após coletar neurônios nas antenas e olhos das borboletas, ficou constatado que se guiam pela posição horizontal do sol, conforme a hora do dia. Seu sistema consiste dois mecanismos que monitoram a posição solar, um baseado nos “neurônios relógios” presente nas antenas e os “neurônios azimutes”, presente em seus olhos. Sua navegação ainda utiliza o campo magnético da Terra, já que conseguem migrar mesmo com o céu nublado, o que as torna os primeiros insetos migratório de longa distância a fazer isso, conforme constatou um estudo de 2014, publicado na Nature Communications. Mas, assim como as mariposas, a ação humana pode afetar sua orientação através de ruídos eletromagnéticos que atrapalham sua bússola magnética.
Bebendo todas [as lágrimas]
Mesmo associadas ao mal, existem mariposas tão ou mais espetaculares que borboletas, inclusive estando entre os insetos mais lindos, com hábitos curiosos como beber lágrimas de pássaros, e incríveis como a mariposa-esfinge-colibri que parece beija-flor. Ainda se encontram entre os maiores insetos do planeta, embora a mariposa de madeira gigante seja raramente avistada, e engenhosas como a mariposa-tigre que dá um bloque nos morcegos ao lhes enviar um sinal sônico indicando não ser a refeição mais digesta.
Entre as mariposas mais incríveis está a Bombyx Mori, do latim “bicho-da-seda da amoreira”, cuja larva se alimenta de amoreira branca, e o casulo no qual se envolve antes de se transformar numa linda mariposa branca, é tecido de fibra leve e resistente que após ser descartado é usado na produção da seda, um dos tecidos mais apreciados pela indústria da moda. Medindo em torno de 2,5 centímetros, sendo as fêmeas maiores, sua criação começou há mais de 4 mil anos, na China Imperial, onde sua fibra era usada pra fabricar roupas pra nobreza. O processo de fabricação da seda permaneceu em segredo durante muitos anos até, segundo as lendas, uma princesa chinesa dada em casamento a um príncipe de Khotan, “esconder alguns bichos-da-seda nos cabelos”, como revelam Sarah U. Wisseman e Wendell S. Williams, em “Ancient Technologies and Archaeological Materials” (em livre pt-BR: “Tecnologias antigas e materiais arqueológicos”, de 1993), algo que aconteceu por volta da primeira metade do século I. Por aqui, a criação se iniciou no começo do século XIX, sendo uma das primeiras a ganhar impulso após a chegada da família real portuguesa.
Portadora da morte
Se mariposas metem o medo, nada causa mais pavor que a Borboleta-caveira (Acherontia Atropos) que apesar de inofensiva, possui o desenho de um crânio no tórax que lhe dá uma reputação negativa, a associando ao sobrenatural e lhe fazendo ser vista como portadora da morte e do azar. O medo chega a ser tanto, que na África do Sul, o fake news dá conta que ela possui uma picada venenosa, causada por sua probóscide – uma língua resistente usada pra furtar mel – ou o chifre posterior das lagartas. Se sua marca incomum apavora, a cultura pop também não ajudou nada ao retratá-la na pintura, literatura, poesia, em filmes, como “Um Cão Andaluz” (“Un Chien Andalou”, de 1929) e “A última profecia” (“The Mothman Prophecies”, de 2002), e até em clipe musical, onde é associada a algo ruim.
A mariposa ainda foi usada na capa original do livro “O silêncio dos inocentes” (“The Silence of the Lambs“, de 1988), e no cartaz de divulgação do filme, de 1991 – embora essa caveira se trate de uma mensagem subliminar que reproduz a foto “In Voluptas Mors” (em livre pt-BR: “No prazer da morte”), concebida por Dali em 1951. No filme, a mariposa serve como assinatura do assassino serial Buffalo Bill, e embora ela seja apontada como Acherontia Styx, a espécie que aparece é a Acherontia Atropos, de cores mais marcantes – existe ainda a Acherontia lachesis, cuja aparição a noite pode ser assustadora. Apesar do temor do mal que ela possa carregar sob suas asas, a Borboleta-caveira chegou a ser usada como amuleto na Alemanha do final da Idade Média, e era pregada em portas por agricultores pra afastar espíritos malignos.
Porém, sua aparência assustadora é bastante útil, em “Bee Tiger” (em livre pt-BR: “Infiltrada na colmeia”), Philip Howse revela que as cores e a marca incomum da Borboleta-caveira serve pra enganar seus predadores. Conforme propõe Miriam Rothschild, a combinação das cores amarela e preta é intimidadora, ainda mais quando o crânio é visto de ponta cabeça, porque lembra as asas de uma vespa gigante, assim, ao vê-la, pássaros que dela se alimentam saem vazados, como confirma o etólogo de Oxford, Nikolas Tinbergen. Já seu chiado engana camundongos enquanto o som ultrassônico produzido por sua genitália confunde morcegos.
Além das técnicas de escape, por adorar mel ainda mais que o Ursinho Pooh, a mariposa desenvolveu formas refinadas pra obter seu alimento favorito. Pra isso utiliza suas cores e cobre o corpo de partículas de cera, obtendo uma capa de invisibilidade, além de imitar o cheiro das abelhas, assim consegue invadir colmeias sem levar uma picada se quer, então utiliza sua língua resistente pra perfurar as células de cera e sugar todo mel que desejar.
Cores vivas, batem asas
O consenso que a escuridão e tudo que está ligada a ela trazem coisas ruins explica porque mariposas e até borboletas negras serem associadas a própria morte, como acontece em muitas culturas da América Central e da Ásia. Segundo um mito asteca, o aparecimento de borboleta marrom-escura ou preta na casa de alguém doente, significa que a pessoa não vai sobreviver. Mas além da morte, ela também pode simbolizar o nascimento e à transformação, como na religião asteca, onde representava a deusa guerreira Itzpapalotl, “Borboleta Obsidiana”. Assim como a alma dos mortos, na Polinésia se acredita que o aparecimento de uma mariposa preta seja a visão de um falecido. Quem também remete a desgraça são as de cor marrom, mas por estarem associadas a terra apontam pro conceito de aprendizagem e experiência, além de ainda estarem ligadas à alma e à transformação.
Já quando branca, mesmo a mariposa sendo noturna passa a simbolizar sorte e prosperidade, além do espírito de antepassados em visita ao mundo terreno pros povos guajiros da Colômbia. No caso da borboleta branca, sua associação se dá a serenidade, calma e paz. Pra tribo norte-americana Zuni, as borboletas brancas simbolizava um verão chuvoso e até por volta de 1600, na Irlanda, era proibido matá-las, pois se acreditava serem almas de crianças.
Mariposas de cor amarela simbolizam a prosperidade e boa sorte na vida financeira e material, além de renovo, já que recordam das flores da primavera, onde a cor é predominante. Pros indígenas mexicanos, borboletas amarelas, laranjas ou vermelhas eram associadas ao fogo. Inclusive pra astecas e maias, simbolizavam o deus do fogo Xiutecutli, ou Huehueteotl. Além de serem relacionadas ao tempo.
Borboletas azuis simbolizam leveza, amizade e romantismo, também sorte e boas energias. Ainda fazem referência as transformações que passamos ao longo da vida, tanto física, crescendo e amadurecendo, como sociais, casamento, nascimento de filhos, etc. Já as coloridas, remetem à alegria e à felicidade.
Além da imaginação
Saindo da fantasia de crendices que as associa a sentimentos e coisas boas ou más, dependendo de seus hábitos e cores, borboletas e mariposas também exercem influência além da imaginação, afetando o mundo natural. Em diversas partes do mundo, suas lagartas são consideradas pragas agrícolas; enquanto as das borboletas atacam culturas vegetais, as das mariposas causam danos às fazendas de frutas e até florestas – no caso das Borboletas-caveiras quem dá preju são as adultas mesmo, que furtam mel causando problemas aos apicultores. E a coisa fica assustadora mesmo ao saber que fêmeas de algumas espécies produzem cerca de 200 a 600 ovos, enquanto em outras, a produção se aproxima de 30.000 por dia.
Porém, junto às abelhas e vespas, borboletas e mariposas são fundamentais pro equilíbrio do ecossistema, garantindo a reprodução de diferentes espécies de plantas através da polinização, ao transferir o pólen do órgão floral masculino até a parte receptiva, onde os óvulos da flor são fecundados, produzindo sementes e frutos; ou servindo de comida na cadeia alimentar.
Enquanto a maioria se alimenta de néctar, existem as que sugam sais minerais da terra úmida, à beira de rios. Porém, a mais incrível é a Xanthopan Praedicta, uma mariposa teorizada por Charles Darwin, em 1862; ela possui a maior língua entre os insetos, que vai de 15 a 28,5 centímetros, pra poder sugar o néctar da Orquídea-cometa, cujo tubo possui 30 centímetros de comprimento, tornando a polinização da flor dependente total da mariposa. Sua língua é tão grande que não é possível voar com ela estendida, além de ficar vulnerável a predadores enquanto se alimenta.
A origem do mal
A gente já foi muito mais ligado a natureza e essa convivência fazia a imaginação correr solta por matas intocadas, mergulhar no frescor das águas e planar pela liberdade no céu. Dessa convivência surgiam fábulas e mitos trazendo ensinos e explicações baseadas na fauna e na flora, que por mais fantásticas que fossem faziam sentido pra nossos antepassados. Afinal, antes do folclore ser apenas um conjunto de histórias e tradições ele era a realidade diária das pessoas – o que explica porque no interior ou no sertão as raízes das crendices ainda permanecem vivas.
Essa tradição persistiu por séculos até passar a ser usada pra atribuir a causa tanto de coisas boas quanto ruins a seres naturais da dimensão material ou dos acima dela – os sobrenaturais. Alguns acontecimentos eram inacreditáveis demais ou não podiam ser explicados, exceto se houvesse uma intervenção imaterial, ainda que agindo através do natural.
Até o avanço da ciência se desconhecia bactérias, vírus e infecções, nem pré-natal ou acompanhamento médico existia – as coisas eram macabras, como tratei no artigo “Fazendo cortes na alma” – o que tornava o adoecimento e até a morte de bebês em algo corriqueiro. Assim, o que restava de explicação pro surgimento de uma desgraça dessas quando tudo aparentava estar bem era responsabilizar seres maléficos, como bruxas que sugavam o néctar vermelho dos bebês ao se metamorfosear em borboletas e mariposas pra não serem apanhadas.
Deixa o mito me levar, mito leva eu
Se a causa era extraordinária, muitas vezes a cura era mais incomum, no caso de criança chupada era necessário usar pedra de peixe-elétrico embaixo do travesseiro e fazer a administração de chá de pau de Lázaro – erva, cuja sombra faz qualquer outra planta definhar até a morte – antes do bebê ficar fraco demais. Apesar de certeiros, esses remédios não podiam ser encontrados – e nem adiantava culpar o Saci por dificultar a tarefa – porque diferentemente de um trevo-de-quatro-folhas, que a variação genética o torna possível de achar a cada 5.000 comuns, essas soluções não existiam – embora no caso do trevo seja possível cultivar talos com mais de três folhas. Ainda assim, a medicação fazia sentido, como a causa se tratava de algo singular, era preciso uma solução além da norma, acessível a poucos.
A teoria dos germes só começou a ganhar atenção com os estudos de Louis Pasteur no final da década de 1850, embora tivesse sido proposta por Girolamo Fracastoro em 1546 e expandida por Marcus von Plentiz em 1762 continuou a ser desprezada pelos médicos que preferiam culpar o “ar ruim”, ou miasma, pelas infecções e doenças resultantes do pós-operatório, ignorando a falta de assepsia; onde cirurgias eram realizadas sem esterilização ou mesmo a lavagem das mãos – conforme relata “Medicina dos Horrores” (“The Butchering Art“, de 2017). Ainda que Joseph Lister tenha provado, em 1865, que a teoria miasmática estava errada ao reduzir a morte por infecções pós-operatórias com o uso de ácido carbólico, a resistência em aceitar que a disseminação se dava por organismos invisíveis a olho nu era tamanha que o editor da revista The Lancet, em 1853, publicou: “tudo é escuro e confuso, uma teoria vaga e vã especulação”. Mesmo o trabalho de Pasteur estendido por Robert Koch na década de 1880, os vírus foram inicialmente descobertos apenas na década de 1890, possibilitando a identificação dos reais causadores de muitas doenças.
Mesmo após a expansão da medicina ainda existem mortes inexplicáveis de bebês, provocadas pela Síndrome da Morte Súbita Infantil (SMSI). Também chamada Síndrome da Morte Súbita do Lactente (SMSL) ou Morte do Berço, trata-se de uma epidemia mundial que ocorre quando bebês aparentemente saudáveis falecem de forma inesperada, enquanto dormem. Ainda que essa seja a principal causa de óbito em bebês de até 1 ano, o transtorno permanece um mistério pra medicina. Após investigações não foi encontrado um quadro clínico de doença ou causas que expliquem o óbito, apenas teorias sem comprovação científica, apontando possibilidades como problemas no desenvolvimento do mecanismo que controla a respiração durante o sono, baixo peso e o surgimento de infecções respiratórias. Além da causa poder se relacionar ao uso de roupas e cobertores quentes que deixam o neném confortável a ponto de acordar menos vezes, e suscetível a pequenas paradas respiratórias devido ao calor excessivo.
Acredita-se que a síndrome seja causada por diversos fatores, ainda assim, mesmo seguindo orientações pra um sono seguro – colocar a criança de barriga pra cima ou de lado, no próprio berço, pra evitar risco de sufocamento, já que os pais se mexem muito – a morte pode ocorrer. Nos anos 1800, pra reduzir o risco de morte durante o sono [1 Reis 3.16-27] os bebês passaram a ser colocados em quartos separados, mas os óbitos continuaram acontecendo. No final dos anos 1980, apenas no Reino Unido, havia cerca de 1.500 mortes de bebês anualmente sem motivo algum, durante o sono. Por acordar e perceber o filho morto sem qualquer causa aparente ser o maior terror que existe, a mente pode entrar em choque e começar a alucinar, criando monstros, como mostra o conto “Bicho-papão” (“The Boogeyman”, de 1973), escrito por Stephen King e presente na coletânea “Sombras da noite” (“Night Shift“, de 1978) – que inspirou o filme “The Boogeyman – Seu medo é real” (“The Boogeyman”, de 2023).
A culpa é minha, boto em quem eu quiser
Desde a queda da humanidade a gente aprendeu a botar a culpa no outro por nossos problemas e frustrações – conforme abordei no artigo “O espelho nos outros“. O Saci mesmo é prova disso, sendo responsabilizado por azedar o leite, a pipoca queimar ou não estourar; pelo apodrecimento de ovos ou por se quebrarem; entre diversas outras travessuras. Mas nem sempre a responsabilidade é do garoto de uma perna só, a causa também pode ser atribuída ao mijo das aranhas quando se trata de herpes labial; até a comida saudável é apontada como motivo do mal-estar, ou enfermidade, quando na real a origem pode ser virose ou algo de errado em nosso organismo. Assim, a gente arruma explicações criativas – como falado no artigo “Histórias de vida que precisam ser contadas” – que num contexto até fazem sentido, igual botar a gravidez como resultado de engolir caroço, que a crônica “Árvores que possuem corpos” explica melhor.
Por mais surreais que as explicações pra origem dos males que acometiam as famílias no susto – e sua cura – possam parecer pra gente, elas seguiam sendo compartilhadas no boca a boca sem levantar suspeitas, porque mesmo sem comprovação real, e pautadas apenas em relatos, traziam ordem a realidade conhecida. Ordem era tudo o que precisavam no meio de tamanho caos e pesar, e isso bastava pra silenciar dúvidas e lhes manter alerta pro medo a espreitar a cada fenda da escuridão. Se até mesmo na ciência os erros se propagaram por décadas, quanto mais o que trazia explicação ao pavor.
Dessa forma, como borboletas e mariposas conseguem entrar por qualquer brecha e já tinham costume de sugar o néctar das flores, acabaram recebendo a culpa. Porém, mesmo que o desconhecido assuste, é preciso vencer o medo – como falei no artigo “Cada luta é um novo poema” – caso contrário a gente acaba por tomar atitudes irracionais ao adotar um comportamento de manada, e matar mariposas e borboletas por sua cor, recusar leite devido aos quadradinhos coloridos em suas caixas; até as mais extremas, como as que levaram ao estupro de crianças pra curar a AIDS.
Crendices perigosas se fortalecem até ganhar corpo a partir de um misto de convicções pessoais, conhecimento limitado e do medo. Sendo o principal fator de risco pra atitudes irracionais o pavor, já que erros podem ser evitados ao buscar mais conhecimento [Oséias 4.6] e reconhecer que nossas crenças não são absolutas e precisam se expandir. Mais que desfazer mitos, é importante vencer o medo, porque ele impede de pensar com clareza e pode causar danos a nossa mente – como expliquei no artigo “Basta de ser controlado pelo medo“.
Mitos e lendas que trazem uma carga negativa associada aos insetos devem ser evitados por serem prejudiciais, causando a diminuição de suas populações. Independentemente de sua aparência, eles são fundamentais pro equilíbrio do ecossistema e até de nossa existência, como abelhas, vespas e mariposas, que garantem a reprodução de diversas plantas a partir da polinização, por isso devemos respeitá-los mesmo desconhecendo sua função biológica. Borboletas e mariposas não precisam perder seu encanto, apenas serem apreciadas como os seres etéreos que são, sem importar seus hábitos e tonalidades, afinal, são responsáveis por encher o céu de cor e os olhos de graça, enquanto espalham a primavera entre as flores, enfeitiçando as almas que se deixam por elas carregar.
Ósculos e amplexos,
Autor de Interrompido – A curva no vale da sombra da morte, é um cara apaixonado total por música, se deixar não faz nada sem uma boa trilha sonora. Bota em suas histórias um pouco de seus amores e do que sua visão inversível o permite enxergar da vida.