Cronicário: Polêmica, pra não chamar de barraqueira
Mishael Mendes × Midjourney/ Inversível

Polêmica, pra não chamar de barraqueira

Ensinando a importância de se preparar pro futuro, a fábula da Cigarra e a Formiga é uma das histórias infantis mais conhecidas. Foi contada em diversos meios e formatos, inclusive usada pra promover a poupança na Hungria através de um selo comemorativo, em 1958, divulgar previdência privada na Espanha, em 1995, e até como quadrinho numa campanha antitabagismo, pela Liga Nacional Contra o Câncer da França, em 1998. Essa fábula não é conhecida apenas por seus ensinamentos, mas também por gerar debates ao redor do mundo e causar polêmicas – como se tivesse nascido pra isso. Conheça agora os efeitos causados por essa história mesquinha.

A confusão de outros carnavais

Criada no século VI a.C., a fábula de Esopo – se é que ele realmente existiu ou não passa de invenção, como Aleijadinho, conforme comenta “O Segredo das Eras – Despertar“. Originalmente a história apresentava um gafanhoto – como mostra o livro “Esopo – Fábulas Completas” – que desdenha do trabalho cansativo da formiga pra aproveitar os dias bons, até que o inverno chega, e vendo a vizinha passando bem, enquanto sofria o rigor invernal, entende que “o melhor é se preparar pros dias de necessidade”. Não havia rejeição nenhuma ou qualquer resposta dura.

O responsável pela atitude mesquinha da formiga – mesmo diante da cigarra se comprometendo a pagar juros pelo empréstimo – foi Jean de La Fontaine, com “Fábulas” (“Les Fables de la Fontaine“, de 1668), escrita em versos livres e com linguagem acessível é a versão mais famosa. Fazendo a releitura de diversos autores, além de Esopo, La Fontaine ficou estourado e continuou a publicar histórias nesse estilo até 1694. O pai da fábula moderna, trocou o gafanhoto de Esopo pela cigarra, devido ao inseto ser muito mais comum na França – a ponto de servir de atrativo aos turistas.

Quando a primavera chegar

Apesar da cigarra e da formiga serem entendidas como fêmeas na fábula, quem costuma trampar durante o verão são as formigas machos, assim como são as cigarras machos quem realizam a cantoria pra atrair as fêmeas, algo que costuma ocorrer com maior frequência na primavera. O canto também se dá pra espantar predadores. Seu som é emitido pelo abdômen, conforme é contraído e relaxado repetidamente, podendo atingir 120 decibéis, nas cigarras maiores, ou alcançar um volume tão agudo, nas menores, que passa despercebido ao ouvido humano, mas provoca dor em cães e outros animais. Pra efeito de comparação, uma buzina de carro alcança 110 decibéis, enquanto apitos podem atingir de 115 a 125 decibéis.

O volume do canto das cigarras pode ser tão estridente que elas próprias se protegem reduzindo sua capacidade auditiva, encontrada nas antenas. E, diferente do que a crença pop afirma, elas não explodem de tanto cantar, a casca vazia encontrada pendurada em árvore se trata da última muda – exoesqueleto – realizada antes dela atingir a maioridade.

Eclodisse da cigarra deixando exoesqueleto

Já o canto do grilo, chamado de estridulação – o famoso cricrilar – é produzido pelo macho ao esfregar suas asas dianteiras, com as mesmas segundas intenções da cigarra. Sua serenata é ouvida pela fêmea com as patas dianteiras – onde se localiza o aparelho auditivo. Seu canto ocorre em qualquer época do ano, com exceção dos meses mais frios. Podendo divergir bastante entre si, indo de um cricrilar, ao som de um apito, um tic-tac, o coaxar e até se assemelhar ao canto de um pássaro.

A maldade no coração da formiga

Mesmo sendo La Fontaine o responsável pela atitude mesquinha da formiga, seu caráter ambíguo surgiu com o próprio Esopo, numa fábula pouco conhecida, registrada como 166 no “Índice Perry“. Nela antes de ser formiga, o inseto era um homem que vivia ocupado plantando, insatisfeito com os próprios resultados passou a roubar a colheita dos vizinhos, até ser transformado, ainda assim continuou com a prática de acumular bens furtados.

Inspirado em trabalhos anteriores como “Ysopet”, “Isopet” (“Esopo”, de 1190) ou “Fables” (“Fábulas”), de Marie de France” – a primeira a transformar fábulas em poesia – e “Les Fables du très ancien Esope” (em livre pt-BR: “As fábulas do tão antigo Esopo”, de 1542), de Gilles Corrozet, La Fontaine tornou a formiga mesquinha com a intenção de criticar a sociedade capitalista que pregava o acúmulo de bens, levando a reflexão que prudência sem misericórdia não tem valor e é contraditória.

A raiz da problemática

A impressão deixada por La Fontaine foi tão forte que fez a formiga ser vista como tudo, menos um exemplo de virtude; mas essa discussão foi iniciada mesmo por Marie de France. Em sua versão, o gafanhoto alega que seu trabalho era cantar e dar prazer, porém quando precisou não houve reciprocidade e numa atitude materialista a formiga questiona por que deveria lhe dar comida quando ele não a poderia ajudar.

Anos mais tarde, em 1499, o estudioso italiano Laurentius Abstemius, utilizou a visão utilitarista condenada por Marie de France pra afirmar que os filhos deviam aprender uma profissão útil, em “De culice cibum et hospitium ab appetente” (em livre pt-BR: “A busca do pernilongo por comida e hospedagem”). Nessa versão, após se ver em apuros, o mosquito pede comida e abrigo em troca de ensinar música as abelhas-mirins e acaba rejeitado pelas adultas por preferirem ensinar aos pequenos um ofício que pudesse lhes preservar de padecer necessidades.

Tudo na vida passa, até uva passa

Provando que ser sovina é perda de tempo, em “Fables” (“Fábulas”, de 1842) Jean-Jacques Grandville extrapola com sua visão hedonista, onde o grilo recorda a formiga que ambas estavam destinadas à morte, assim, no melhor estilo carpe diem, o ideal era curtir o momento porque acumular é tolice.

Já o balé “Cigale” (“Cigarra”), de Jules Massenet, apresentado pela primeira vez em 1904, retrata que nem sempre o bem é recompensado com bondade. Nele, a caridosa cigarra recebe “La Pauvrette” – a pobrezinha, como a formiga é chamada – com festa e alimento, mas quando a situação se inverte, a cigarra não recebe compaixão, sendo deixada pra morrer na neve.

O caráter contraditório da formiga é ainda reforçado na releitura de Ambrose Bierce, “The Grasshopper and the Ant” (em livre pt-BR: “O Gafanhoto e a Formiga”), em “Fábulas Fantásticas” (“Fantastic Fables“, de 1899), onde, ao ser questionado o motivo de não juntar comida ao invés de cantar o tempo todo, o gafanhoto diz a formiga que fez isso, mas ela e suas companheiras levaram tudo – numa referência a outra fábula de Esopo.

Um prato servido frio é melhor aproveitado

A formiga e o gafanhoto
Milo Winter (1919)/ Wikimedia Commons

Se a formiga tem um caráter mal, a vingança por parte da cigarra não parece condenável, apenas consequência do que a sovina plantou, é isso que vemos na versão de Sagan Françoise, publicada em 1989. Após chegar o verão, a formiga vê seu estoque lotado e oferece a cigarra comida pra pagar depois, recebendo como resposta pra vender suas bugigangas em outra freguesia.

Enquanto isso, o poema “Basnya” (“Fábula”, de 2002), Dmitry Bykov conta que durante sua morte a libélula imagina o dia em que a formiga aparecerá no céu, magra, calejada e sombria de tanto trabalhar, pedindo pra participar de sua dança, e ela lhe dará o troco. Uma curiosidade é que no idioma russo a antiga palavra usada pra gafanhoto (strekoza) atualmente significa libélula, razão pela qual o inseto acabou sendo retratado das duas formas.

Já na paródia de 2002, de Millôr Fernandes, a cigarra pode até não ter se vingado, mas quando a formiga alerta que a cantoria não a salvaria da inflação – no estilo ostentação dos funkeiros de ser – a cigarra se gaba que ficou estourada com seus clipes a ponto do merchandising lhe proporcionar em instantes o que a trabalhadora levava um ano pra ganhar.

Errar é humano, perdoar é divino

Demostrando que o perdão é quem traz mudanças, Jacques-Melchior Villefranch, em sua obra pedagógica “Fables” (“Fábulas”, de 1851), mostra que após expulsar o gafanhoto, a formiga perde suas posses e solicita ajuda à abelha, esperando receber o mesmo tratamento; ao invés disso, ela revela que abrigou o gafanhoto e a convida pra entrar, afinal, “todos que sofrem precisam igualmente de ajuda”.

A abelha demonstra ser rica de verdade, porque não existe melhor forma de acumular que dividir – como aborda esse artigo. Ela ensina que se deve ajudar quem precisa, mesmo que seja alguém ruim, porque fazer isso é que garante calor e recompensa [Provérbios 25.21-22]. Não importa como à pessoa vai agir depois ou o que fará com a boa ação recebida; o foco não está no fato do outro merecer ou não, mas na oportunidade em ajudar e não se cansar de praticar o bem, pois no tempo certo será possível colhê-lo [Gálatas 6.9].

A culpa não é das estrelas, mas dos astros

Se hoje a cigarra é vista como uma artista incompreendida de espírito livre, essa associação só começou a surgir a partir do século XVIII. Até então, o debate girava em torno da falta de misericórdia da formiga. A coisa mudou quando a fábula, que antes tinha os protagonistas retratados em paisagens congeladas, passaram a ser humanizados, levando a discussão da real importância dos artistas na sociedade. Primeiro os protagonistas receberam roupas, até serem representados como mulheres, porque na maioria das línguas românicas cigarra e formiga são palavras femininas.

No meio dessa discussão, o escritor francês Pierre-Louis Ginguené, botou mais lenha na fogueira em sua versão “La Cigale et les autres Insectes” (em livre pt-BR: “A Cigarra e os outros Insetos”), publicada em “Fables Nouvelles” (em livre pt-BR: “Novas Fábulas”, de 1810). Onde deixa claro que o trabalho artístico só tem valor pra sociedade quando instrui, encanta e serve a humanidade, porque apenas fazer barulho não possui serventia, como a cigarra que cheia de si, convida os demais insetos a seguirem sua “atividade artística” incansável.

A cigarra e a formiga
Gérard Grandville (1803–1847)/ Wikimedia Commons

Dentre os exemplos de humanização temos a ilustração de Charles H. Bennet, de 1857, onde o gafanhoto de roupas remendadas e cartola velha na mão, suplica ajuda a formiga que, na estica, permanece numa postura arrogante. Até a evolução mais chocante na ilustração de Gustave Doré, de 1880, nela, crianças olham com pena pra uma musicista a implorar ajuda da neve, enquanto sua mãe lança um olhar de superioridade, sem parar o tricô. Forma essa usada pelo ilustrador pra criticar a falta de piedade das mulheres que tricotavam, enquanto vítimas da Revolução Francesa eram sentenciadas à guilhotina.

A política bota o corpo pra jogo

Aproveitando a discussão em torno da necessidade de uma atitude altruísta, em fevereiro de 1934 a Disney lançou, pelo selo Silly Symphony, a animação “The Grasshopper and the Ants” (em livre pt-BR: “O Gafanhoto e as Formigas”), onde o gafanhoto segue o mesmo mau exemplo do original, mas quando precisa de ajuda as formigas lhe acolhem, aquecem e o deixam ficar desde que pague sua estadia com música. Disfarçada sob uma moral educativa, essa versão se tratava de uma propaganda política – algo onde a casa do rato se destacou, inclusive até ganhou Oscar por isso.

O desenho foi criado pra apoiar o primeiro programa de seguro social dos EUA, do presidente Franklin D. Roosevelt, conhecido como “New Deal” (em livre pt-BR: “Novo Acordo”) que vinha sofrendo críticas. Porém, ao mostrar a importância de apoiar os necessitados que seriam alcançados com o plano político, a animação buscava a empatia da população.

No lado oposto, em 1994, o apresentador Jim Quinn, criou uma versão liberalista pra atacar as reformas no programa social que foram prioridade do governo Clinton. Nela, com a ajuda da mídia, o gafanhoto é visto como vítima do sistema, e a formiga que trabalhou duro por seu descanso perde tudo quando o governo decide reparar esse erro, descontando no contribuinte. Dessa forma, Quinn tentou mostrar que essas reformas beneficiariam quem não precisava, trazendo mais problema a população pagante de impostos.

Apesar de mostrar uma visão preconceituosa, ele não estava de todo errado, porque mesmo tendo um começo feliz, as mudanças deram ruim. Além de não resolver o nível de pobreza e acabar por agravá-lo, o programa sofreu uma série de críticas por violar direitos humanos universais e aumentar o preconceito contra a mulher. Uma variante indiana, de 2009, mostra o estrago que a mídia manipuladora pode causar, mas dá um final feliz pra formiga e explica o motivo da Índia ser um país ainda em desenvolvimento.

Já a colunista conservadora Michelle Malkin, atualizou, em 2008, a versão de Quinn pra atacar as políticas de Barack Obama que desprezavam o contribuinte. Nela o gafanhoto aproveitava a vida, enquanto a formiga fazia hora extra pra pagar empréstimos e juntar grana pra aposentadoria, quando o inverno chega e o gafanhoto se vê na pior, procura uma associação que consegue o perdão da dívida de todos os gafanhotos pra não haver discriminação. O gafanhoto acaba virando coletor de impostos, mas quando vai cobrar sua vizinha fica de mãos abanando, é que vendo ser besteira juntar pros outros desfrutarem sua grana, a formiga gastou tudo.

A união faz a força, açúcar e o sucesso chegar

Não só de vinganças e polêmicas vive a fábula, no ano de 1989, José Paulo Paes, brinca exatamente com isso. Cansadas dos estereótipos a que foram sujeitas, a cigarra e a formiga unem forças, com a operária se tornando sua empresária, apesar da fama conquistada, a formiga acaba expulsa do formigueiro, e a cigarra desprezada pela comunidade de artistas por se vender ao sistema.

A união também acontece na ópera infantil de 1999, do compositor americano Shawn Allen, com final feliz: após reviver o gafanhoto, a formiga se torna sua parça musical durante o inverno.

Realidade alternativa tupiniquim

Em “Fábulas“, de 1922, além dos comentários da galera do Sítio, Monteiro Lobato apresenta uma versão mais realista e com nosso jeitinho. Contando de uma cigarra que chiava ao pé do formigueiro até cansar, daí observava o trabalho duro das formigas até a época das chuvas lhe fazer buscar abrigo, ao responder sobre o que fazia durante o tempo bom, a formiga fica grata por lhe amenizar o trabalho e oferece abrigo até o tempo chuvoso passar.

Porém, numa segunda versão ele assume que existiu mesmo uma formiga má, mas isso lá na Europa, e tão ruim era essa fulana que mesmo a cigarra pedindo restos de comida pra pagar com juros na próxima estação, a cruel a larga pra morrer congelada, deixando triste o retorno da primavera.

Vomitando arco-íris

Se as versões clássicas costumam criar um contraste separatista entre a cigarra (gafanhoto) malandra e a formiga trabalhadora-sem-coração, na década de 60 temos duas versões de derreter corações congelados, ambas de 1967. A primeira, se trata de uma reinterpretação poética e musical, feita pela Coleção Disquinho, onde sua narração imagética e efeitos sonoros nos faz presenciar a cigarra, mostrando que ao unir seu canto ao das formigas, o resultado é um som mais agradável e melodioso.

Já em “Frederico” (“Frederick“, de 1967), do autor e ilustrador infantil ítalo-americano Leo Lionni, temos uma história pra aquecer nos tempos frios. Nela, enquanto os ratos acumulam comida pro inverno, Frederico coleta raios de sol pros dias gelados e escuros, cores devido ao frio ser cinzento, e palavras pros dias longos de inverno, também pra quando ficassem sem o que dizer; e o que aparentava não passar de preguiça acaba sendo a salvação da geral.

Pouco antes, em 1982, o autor e ilustrador infantil Janosch – cujos contos animados ficaram conhecidos por aqui como “As histórias do Velho Urso” (“Janoschs Traumstunde“, de 1986) – havia lançado “Die Fiedelgrille und der Maulwurf” (em livre pt-BR: “A grila violinista e o toupeira”), onde a grila passa o verão tocando pro entretenimento da galera e esquece de se preparar pro inverno. Quando o tempo frio chega, ela pede ajuda pro besouro e o rato, ambos com comida sobrando, ainda assim eles lhe expulsam, até que ela recorre ao toupeira que ao reconhecê-la a recebe, porque amava ouvir sua música, então os dois passam a conviver em harmonia.

Baseada em dias atuais

Versão realista pros dias atuais

Por se tratar de uma ideia simples, com personagens amplamente identificáveis, a fábula obteve um alcance monstro que carregou a história de nuances dos credos e valores experimentados por cada sociedade em seu tempo. Instigando a um debate moral e filosófico, fosse em prosa e verso, ilustração, animação ou mesmo musicada. Assim, sempre haverá espaço pra outras reinterpretações.

Motivado a alterar a forma depreciativa que os artistas vinham sendo percebidos, resolvi reescrever a fábula. Pra ampliar seu curto tamanho, dei ao conto um toque humanizado aos personagens, com características psicológicas, uma linguagem urbana – inclusive com gírias – e o tornando mais coerente ao clima que conhecemos por aqui, pra lhe dar mais realismo. Também inseri padrões comportamentais dos insetos, além de erros – de ambos os lados – pra dar veracidade e aprofundar a narrativa.

Apesar dessa versão não começar diferente de qualquer uma das outras – o que pode gerar reconhecimento – os caminhos que ela toma, com pitadas de terror e a tensão sofrida pela Cigarra, é algo que nunca foi abordado numa fábula. Tudo isso e um pouco mais você encontrará em “Cigarra e Formiga – Como você nunca viu“. Espero que essa versão gere identificação entre você e os personagens – inclusive com seus erros – pois, se tem algo marcante em nossa humanidade são nossas falhas, que mesmo fazendo a gente quebrar a cara também trazem aprendizado e mudanças.

Ósculos e amplexos,

Mishael Mendes Assinatura
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