Articulário: Avançando pra próxima fase da vida
Michal Bar Haim/ Unsplash

Avançando pra próxima fase da vida

“Ter um filho é honra, um troféu que habilita os pais a seguir no próximo nível de paixão, cuidados e alegrias”

Mishael Mendes, Interrompido – A curva no vale da sombra da morte

Superpoder de fofura, ativar

Coisa mais fofa que existe é bebê, a ponto de fazer adultos se desmancharem em sorrisos e ficar babando por um toquinho de gente. Basta ver um e já queremos pegar, beijar e apertar, se for bochechudinho, então, até morder. Se esse serzinho consegue fazer isso com os de fora, quanto mais com seus pais que convivem e podem desfrutar mais desse saquinho de felicidade – até nossa linguagem e postura corporal muda na presença deles. Toda essa atração exercida não é por acaso, essas criaturinhas possuem o superpoder de encantar, assim como os demais filhotes de animais, segundo Konrad Lorenz sua fofura une um conjunto de características, como cabeça grande, rosto pequeno, olhos grandes e arredondados, nariz pequeno, bochechas gordinhas, pele macia e comportamento brincalhão – o que explica porque tudo que fazem é sempre engraçado e encantador, até coisas que em adultos seriam constrangedoras neles é fofo.

Porém, esse “esquema do bebê” que nos deixa bestinhas não serve apenas pra torná-los umas fofuras, mas de um recurso de sobrevivência, já que são extremamente vulneráveis, precisando ser protegidos e alimentados até amadurecerem a uma idade onde estarão mais seguros como indivíduo, onde não se precisa de uma dependência aprofundada. Suas características servem pra ativar nossa atenção instintiva, se bem que nem é necessário apelar pra todo esse encanto, basta um chorinho que os pais entram em modo alerta pra tentar resolver o novo problema.

Embutido de DNA

O superpoder dos bebês é um facilitador pra criar conexões rápidas, necessidade essa gravada em nosso DNA – conforme vimos por aqui – afinal, a menos que o pequeno se apegue de forma profunda à mãe, não conseguirá sobreviver, já que é indefeso e dependente total dos cuidadores. Um relacionamento amoroso e seguro acaba por ser questão de vida ou morte, além de uma das principais necessidades de desenvolvimento, conforme identificou Jeffrey Young, através da terapia do esquema, algo melhor explanado em “Terapia do Esquema – Guia de Técnicas Cognitivo” (“Schema Therapy – A Practitioner’s Guide“, de 2003), escrito em collab com Marjorie E. Weishaar e Janet S. Klosko – dois dos principais profissionais que utilizam essa abordagem.

Já pro psicanalista John Bowlby, pai da teoria do apego, todas as crianças – também os adultos – precisam de um vínculo seguro com seus cuidadores, especialmente a mãe. Quando se desenvolve em segurança, esse estilo de apego permanecerá ao longo de nossa vida, ajudando a formar relacionamentos fortes, estáveis e amorosos com amigos, parceiros e nossos próprios filhos. Já se não foram saudáveis, podem levar a problemas de saúde e educacionais a longo prazo, causando todo tipo de problemas nos relacionamentos, onde pessoas mais sensíveis podem acabar sendo intensas demais ou evitar relacionamentos por completo, temendo novas feridas. Porém, ainda que esses padrões estejam estabelecidos na mente, devido a neuroplasticidade do cérebro, é possível aprender a se apegar com segurança, a confiar e amar o suficiente pras pessoas entrarem em nossas vidas. Ainda que algumas experiências ruins desviem do caminho, nascemos pra amar, o que precisa ser feito é apenas retornar a ele.

Mãe Coruja

Os cuidados maternos são tão perceptíveis que fizeram surgir a expressão “mãe coruja” pra se referir a uma mãe cuidadosa e preocupada com os filhos, que normalmente não enxerga defeitos em suas crias. Ela se originou na fábula “A Águia e a Coruja” (“L’aigle et le Hibou”), de Jean de La Fontaine, presente em “Fábulas” (“Les Fables de la Fontaine“, de 1668). Nela, cansadas de brigas, Águia e Coruja fazem as pazes e pra selar o acordo, a rainha dos céus promete não lhe comer os filhotes desde que pudesse identificá-los. O quadro que Coruja pinta é tão gracioso que quando Águia se depara com criaturinhas feias e desengonçadas, as devora sem saber que os monstrinhos eram os filhotes da Coruja.

Animais costumam ser superprotetores com suas crias, atacando qualquer um que ousar se aproximar de sua prole. Por mais que essa seja uma característica materna, a paternidade também é cuidadora, e a versão masculina de “mãe coruja” é “pai mocho”, conforme mostra uma tradução antiga de Jaime Vítor, onde os animais foram descritos como figuras masculinas, apesar de no original se tratar de fêmeas. Em sua versão, presente em “Fábulas“, de 1922, além dos comentários da galera do Sítio, Monteiro Lobato aumenta a abrangência de seu significado, ao destacar que a gente toma apego cego a tudo que produz, mesmo nem sendo tão bom, logo, “tudo  quanto nós fazemos é filho de coruja”. O cuidado é importante, mas em excesso só serve pra causar sofrimento, principalmente por tentar viver a vida do filho, embora pais tenham mais conhecimento, seus filhos têm os mesmos direitos de aprender com a vida, ainda que isso cause dores a eles e a seus pais.

Crianças bolhas

Embora necessária, a preocupação materna primária acaba por resultar na perda da própria necessidade e identidade, em prol do cuidado e bem-estar do bebê, numa ligação que a faz se adaptar pra atender as necessidades do recém-nascido. Onde lhe fornece alimentação, higiene e saúde – possibilitando a sobrevivência do pequeno. Essa fusão, estabelecida através da proteção e do contato corporal, é necessária não apenas pro desenvolvimento físico saudável do bebê, mas pra traçar sua personalidade e aspectos emocionais, onde ele passará a ser e existir – num processo de construção psíquica em direção ao “eu” individual. Estado esse que diminui conforme há o amadurecimento psíquico e emocional, assim, crianças que sofreram separações prolongadas quando muito pequenas, demoram pra sair da relação fusional, precisando de mais dedicação e paciência em algumas questões.

Porém, esses são casos extremos mais ligados ao abandono, segundo o pediatra e psicanalista Donald Woods Winnicott, a função materna ideal é a que acolhe incondicionalmente as necessidades físicas e emocionais do bebê, mas introduz frustrações conforme a criança aguentar e precisar. Afinal, uma relação saudável também é aquela que se faz desnecessária, que refina a percepção pra saber o que seu bebê precisa e o que não precisa mais, como introduzir pequenas esperas pra terminar uma refeição, tomar banho com calma e até descansar após noites mal dormidas – tudo isso também faz parte do processo de cuidado e educação da criança. De acordo com Melanie Klein, na teoria das relações objetais, o cuidado precisa ter menos ênfase nos impulsos de base biológica e mais em padrões consistentes de relacionamentos interpessoais, que enfatizam a intimidade e o carinho da mãe.

Amor incondicional?

Apesar do momento ser romanceado, nem sempre a chegada de um filho faz o amor incondicional brotar de forma instantânea, ainda mais quando as expectativas são frustradas pelo bebê possuir problemas de má formação, genético ou psicológico, mas a virtude do amor é de se tornar de uma profundidade que ultrapassa a matéria após ser plantado – como falado por aqui – se tornando inabalável e forte como a morte na construção diária, ao ser forjado pelas dificuldades e decepções. Pais perfeitos são aqueles que não se desesperam, nem gritam ou mesmo perdem a paciência, talvez por isso nunca tenham sido vistos, por não existirem. Todas as inquietações, dificuldades, incertezas e fraquezas que surgem com a chegada de um filho revelam apenas a humanidade de seus pais, que como qualquer outra pessoa irá errar e aprender, mesmo buscando fazer o melhor, porque criar um filho é um processo de aprendizado e descobertas inéditas.

Já dizia Legião Urbana em “Pais e Filhos”, pais também são crianças como os filhos que costumam julgá-los, assim, não lhes é possível se tornar os melhores de um momento pro outro, mas cada dificuldade causa transformações. E quando essas preocupações primárias deixam de existir, surge a dificuldade de com quem deixar a criança e aonde. Até chegar o momento de enviá-la pra escola, sem a certeza dos professores serem os melhores, e se os colegas irão tratá-la bem, entre outras apreensões. Na fase da aborrecência, então, o trabalho dobra porque surge a necessidade da criança se impor, podendo se juntar com amizades não tão boas – aumentando o nível de angústia e aflição dos pais que podem voltar a perder noites de sono.

Perecendo no paraíso

A sabedoria pop diz que “ser mãe é padecer no paraíso”, uma afirmação que pode parecer contraditória ao imaginarmos a possibilidade de sofrimento num lugar assim. Paraíso vem do avéstico pairidaeza, “parque, jardim cercado”, que originou o grego paradeisos, “jardim cercado”, formado por pairi, “ao redor”, e daeza, “fazer”, um muro, trazendo o sentido de lugar de deleite, prazer e descanso; já padecer vem do latim patescere, de pati, “sofrer, aguentar, suportar”, implicando em sofrimento ou em resistir às aflições. Algo que acontece real, porque apesar de encher a vida de cor e sentido, a chegada de um novo ser traz consigo dificuldades e dúvidas que exigirão uma série de aprendizados que mesmo os pais melhor preparados podem se ver incapazes de executar a tarefa com a qualidade necessária ou duvidar se possuem essa capacidade, mas tudo se trata apenas de um processo que apesar de longo pode ser realizado.

Pais surgem apenas após o nascimento de um filho, onde os maiores esforços pra proporcionar o melhor e até mesmo renegar a si mesmo, pode não ser suficiente, além disso, ainda há a preocupação em como o mundo pode recebê-lo, principalmente frente as suas escolhas. Tudo isso se mistura a noites mal dormidas e o descanso a escoar a ponto do padecimento impedir de encontrar o paraíso em alguns momentos. Ainda que os cuidados sejam compartilhados, é sobre a figura feminina que recai a maior responsabilidade sobre o pequeno ser, e o desgaste e frustrações podem levar a se questionar se está sendo uma boa mãe ou se nasceu com o dom pra maternidade. Mas tudo é recompensado quando surge um sorriso naquele rostinho que sabe ser apenas seu e de mais ninguém, os gritinhos, então, conseguem fazer a alegria escorrer pelo corpo.

Romanceando o romance

Ter um filho traz momentos difíceis, num desconforto que surge desde a gestação, com enjoos, azia e inchaço, e uma dor que se agrava no parto. Onde a nova rotina força a uma adaptação que torna o sono sensível aos menores ruídos e a preocupação se o bebê está dormindo bem, se não aconteceu algo, e o medo de esmagá-lo, enquanto o cansaço só faz aumentar. Pra incrementar o desafio desse nível, a comunicação acontece de forma diferente, dificultando a compreensão por completo, o que dá pra fazer é prestar atenção aos choros e descobrir padrões, os quais são associados a todo tipo de necessidade – estratégia essa que usamos com animais, que de tão inteligentes só faltam falar, como mostra o conto “Estima – A História de uma Gata e seus Humanos“. O desenvolvimento da linguagem acontece aos poucos, evoluindo a partir do convívio com outras pessoas, envolvendo gestos que se alteram conforme ocorrem mudanças na comunicação materna.

Até mesmo o maior ato de amor e conexão entre uma mãe e seu filho, que é a amamentação, pode ser dolorosa e desconfortável, gerando culpa em quem não consegue fazê-lo. Mesmo sendo um dom maravilhoso gerar uma nova vida, em alguns momentos a tarefa se tona extremamente difícil e até insuportável, como mostra “O Bebê” (“The Baby”, de 2022), onde o cansaço e o desânimo podem fazer repensar o desejo de ser mãe, até gerar insegurança, sofrimento, e culpa pela sensação de incapacidade, cansaço e até o desanimo pela experiência não ser tão maravilhosa como prometida pela cultura pop. Ainda assim, existe a gratificação de ouvir as primeiras palavras do pequeno e acompanhar suas conquistas e evolução que tornam a experiência maravilhosa e transformadora.

Ensinando os fundamentos

Mesmo o mundo possuindo tanta coisa ruim pra estragar um filho, tudo pode ser evitado caso os pais ensinem a forma correta de viver, a proceder da melhor forma, enfim, valores que vão lhe permitir levar uma vida boa e avançar em seus objetivos. Não adianta deixá-lo se criar igual mato e depois reclamar que é malcriado e desobediente, até porque essa é sua total obrigação –não da escola ou comunidade religiosa, muito menos da cultura – e caso seja feita, mesmo quando envelhecer, não vai se desviar dos ensinos aprendidos [Provérbios 22.6]. Por mais custoso que seja esse processo, ele é importante, afinal, filho não é um robô pra executar com sucesso o que foi embutido em sua programação, está mais pra uma inteligência artificial que após absorver conhecimento através de aprendizagem profunda desenvolve o próprio senso de aprendizagem de máquina pra tomar as próprias decisões. É preciso existir um referencial pro indivíduo balizar suas decisões, não há como uma criança decidir algo sem parâmetros – que se não forem oferecidos pelos pais, serão pela cultura pop através de valores destorcidos total. Apesar dos sofrimentos e preocupações, os sorrisos, a presença, realizações e conquistas fazem toda pena valer.

Delimitando os limites

Algo que também faz parte da educação é dizer um “não” quando o filho quer muito algo e não merece ou não é o momento certo, também corrigir e castigar quando necessário – ainda que doa – porque amor também implica em punição [Provérbios 3.12] pra haver mudança e ensinar limites, algo necessário pra formação de um ser humano decente. Não é criar num regime superprotetor ou controlador que só faz o tiro sair pela culatra, mas instruir com amor, cuja tendência é que eles se saiam melhores e ainda que desandem, não será por desconhecer o caminho certo, nem saber como fazer o retorno.

É normal os pais se questionarem se deram a melhor educação ou se criaram bem os filhos, mas quando eles se tornam pessoas humanas que contribuem pra uma sociedade melhor, isso significa que o trabalho foi concluído com sucesso, ainda que não tenha sido oferecido todos os recursos ideais e que tenham acontecido falhas durante a jornada. No fim essa mistura de dor e felicidade aprofunda o laço que ignora distâncias ou idade alcançada, até mesmo se o caráter é bom ou não, filhos sempre serão filhos pros pais, porque negar a paternidade é o mesmo que rejeitarem a si mesmos.

Contextualizando

A frase que originou essa reflexão faz parte de “Interrompido – A curva no vale da sombra da morte“, uma minissérie que mostra que nossa humanidade é que nos leva a viver os desejos mais profundos e a cometer os erros mais insanos. Ela surge enquanto Lourdes prepara o café, ao recordar das artimanhas usadas pelo filho pra conseguir algo de si, ainda assim ele saíra melhor que o imaginado.

Artigo publicado originalmente no LinkedIn, também está disponível no Medium.


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Ósculos e amplexos,

Mishael Mendes Assinatura
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