Articulário: Cada luta é um novo poema
Kyle Johnson/ Unsplash

Cada luta é um novo poema

“É encarando nossos temores que extraímos a beleza através de palavras impregnadas de verdade e poesia.”

Mishael Mendes, Interrompido – A curva no vale da sombra da morte

Pernas, pra que te quero?

Pra tentar livrar do perigo prestes a nos fazer mal ou causar danos, o medo provoca alterações pelo corpo pra gente escapar daquilo que espreita do desconhecido. Assim, quando algo que oferece risco se aproxima, o corpo se modifica de forma automática pra evitar gasto energético com escolhas desnecessárias, nos deixando alerta pra pular direto pra ação: sair o mais rápido possível do local ou enfrentar a ocorrência. Tudo acontece em questão de segundos, e caso a gente fique em dúvida entre o movimento de luta ou fuga, dá pane no sistema e paralisamos até o perigo passar – fazendo surgir uma terceira e mais perigosa reação.

Se você já precisou enfrentar algo assustador, sabe na prática esse efeito que joga toda energia do corpo pros músculos, deixando o córtex – a área do cérebro responsável pelo raciocínio e o julgamento – prejudicado, pro foco se voltar pra ação. Decisões calculadas e mais assertivas são bloqueadas, dificultando encontrar soluções ou pensar com clareza. Num instinto de sobrevivência, a mente pode até reprimir algo, caso seja traumatizante demais ou bote nossa vida em risco – como acontece no conto “Retravo – Quando o escuro deu à luz“.

Temendo o desconhecido

No ensaio “Horror Sobrenatural em Literatura” (“Supernatural Horror in Literature“, de 1927), o mestre do horror cósmico, H. P. Lovecraft, escreveu: “a emoção mais antiga e mais forte da humanidade é o medo, e o mais antigo e mais forte de todos os temores é o medo do desconhecido”, algo que segundo ele seria constatado por alguns psicólogos, afinal, “nos lembramos da dor e da ameaça da morte mais vividamente que do prazer”. A real é que o desconhecido sempre nos rondou, e como não podemos saber quando ele pode se revelar, sua presença assusta, revivendo e acentuando as marcas em nossa memória.

Porém, mesmo servindo como mecanismo de defesa, é preciso parar, respirar pra oxigenar a mente e as ideias, e refletir sobre sua causa, se ela faz sentido e como é possível enfrentá-lo de forma estratégica – até porque fazer o contrário só drena nossas forças [Provérbios 24.10]. Pode ser que esse alerta de perigo, ou ameaça de dano, não se refira a um indício real, mas a algo imaginado e até resulte como sintoma de uma disfunção mental. Assim, a melhor forma de controlar o medo, seja ele racional ou não, é reconhecer suas causas e quais soluções e alternativas devem ser adotadas.

A face oculta do medo

Isso não significa que a tarefa de enfrentá-lo se tornará mais fácil ou acontecerá num instante. Às vezes, o medo pode ser tamanho que a gente não consegue fazer outra coisa além de fugir e nos esconder – ainda mais se a Samara (Sadako) aparecer de noite num túnel abandonado. Mas agir assim, impede de saber suas reais dimensões, e se aquele ser de sombra ameaçadora era grande ou tudo não passou de distorção por estar distante da luz, ou mesmo se não se tratou apenas de uma pegadinha medonha. Pior que o risco surgido por enfrentar o desconhecido, é deixar o medo dominar e se assustar com qualquer coisa, feito gato, a ponto de fugir da própria sombra – apesar de ser engraçado assistir uma cena dessas, o desespero é real pra quem passa pela situação.

O medo possui duas faces, uma que nos guarda do perigo e outra sombria e irracional que pode transformar até mesmo o ataque de barata em algo desesperador e nos fazer agir de forma irracional e dar fuga – não antes de quebrar a tela do computador. Medo vem do latim metus, “inquietação, temor, ansiedade”, e surge baseado numa situação real visando garantir nossa sobrevivência. Já a sua versão descontrolada, fobia, vem do grego fobos, a personificação do medo e do terror na mitologia – e irmão gêmeo de Deimos, deus do medo – e se trata de um pavor intenso e injustificado de algo, mesmo que não seja apresentado perigo evidente. Adotado por volta de 1870, fobia era o termo usado na psiquiatria pra se referir ao descontrole emocional, mas passou a representar apenas um dos sintomas da histeria de angústia, que possui maior abrangência.

Vai amarelar?

Até o final do século XIX, doenças não identificadas, como a icterícia ou hepatite, eram chamadas “doenças do medo”, por serem desconhecidas e fazer a pessoa mudar de cor sob seu efeito, tornando a pele dos afetados amarelada. Daí veio a expressão amarelar, cujo sentido é se deixar tomar pelo pavor diante de algo importante ou desafiador. O medo é algo complexo até mesmo pros cientistas, podendo surgir como resultado de experiências ou traumas – e como vimos, um mal necessário, assim, o problema está em como o percebemos; se feito como algo positivo ele ajuda a estar melhor preparado. Ao reconhecer o que é ou não uma ameaça, é possível superar o instinto inicial de “luta ou fuga” e assumir o controle de nossas reações; como resultado, nos apoderamos de segurança e confiança pra enfrentar o que apavorava de início, então obtemos satisfação e realização.

Tudo é uma questão de preparo. Pra Wes Craven, criador de “A hora do pesadelo” (“A Nightmare on Elm Street”, de 1984), e pai de Freddy Krueger, o terror funciona como treinamento pra psiquê humana, onde mesmo ameaçado por coisas terríveis, é possível ver o medo de forma controlável e pensar sobre ele, assim “histórias de horror não criam medo, apenas o liberam” – algo que você pode experimentar na minissérie “Pose“, onde Freddy faz participação especial, e em “Encantado“, um conto de fadas moderno que se transforma em terror. Assim, segundo Craven, uma das formas de estar preparado é consumir o medo diluído em histórias de terror.

Só vejo qualidades

Diferentemente do que é pintado, escrito e mostrado nas telas, que pode até provocar grito, o medo tem potencial pra empoderar – como visto por aqui – sendo bom de diversas formas. Como queimar calorias, aumentar temporariamente o sistema imunológico e impulsionar a sermos mais prudentes; sem ele a vida encurtaria por falta de cuidado, nem haveria velocidade e energia suficientes pra agir contra ameaças. A gente ficaria total sem noção, como a Kinsey, na primeira temporada de “Locke and Key“, após remover seu medo ela fica sem filtro e perde a empatia. Desde que em pequenas doses, o medo pode apontar a inadequação que temos e oferecer insights sobre quais ferramentas, conhecimentos ou habilidades nos falta pro enfrentamento, e como trabalhar na redução de seus gatilhos.

O medo chama a atenção pro que realmente importa na vida, servindo de iniciador de uma série de acontecimentos que levam a mudança, criatividade e inovação, porque nos provoca, estimulando a agir com urgência – ao contrário do que se diz, um dos sete pecados capitais não é a mãe de todas as invenções, sua paternidade se divide entre o medo e a oportunidade. Entre seus extremos existe uma variação de decisões que podem e devem ser tomadas, e caso a gente não enxergue esse aprimoramento instantâneo como vilão, é possível perceber seu lado bom – como falei nesse vídeo.

Não provoque o medo

Por isso, Eleanor Roosevelt aconselhou, “faça todos os dias algo que te assuste”, isso não significa nos colocar em risco diário, mas adquirir o hábito de fazer algo mesmo com a incerteza e as impossibilidades gritando na mente e fora dela pra assustar; é preciso se agarrar ao medo e aprender a coexistir com ele, assim, ao invés de recuar a gente vai pro outro extremo que é avançar. Conforme o enfrentamos, fica mais comum encarar situações que assustam, isso porque a ousadia nos empodera e resulta numa sensação mais duradoura que o tempo que passamos temendo, como disse Ralph Waldo Emerson, “faça a coisa e você terá o poder”. O que não significa agir de forma imprudente e meter as caras, como Simba, em “O Rei Leão” (“The Lion King”, de 1994), que ao ser avisado por Zazu pra ter cuidado com o perigo zombou: “Perigo? Há! Eu ando na selva braba. Eu rio na cara do perigo! Há! Há! Há! Há!”, e foi fechar a boca pro desconhecido o assustar grandão, daí quando a coisa apertou de vez ele fugiu pra salvar o próprio rabo; mesmo sabendo cometer maior erro. Também devemos evitar agir no desespero, como fez a Disney, ao meter um plágio descarado da história de Kimba, de “Jungle Taitei“, manga de Osamu Tezuka lançado em 1950, com “O rei Leão” – embora nunca tenha assumido seu erro.

Servindo ainda de alerta pro que nos limita, na presença do medo podemos escolher se ele irá nos parar ou se vamos encará-lo e expandir as possibilidades em nossa vida. Quando surge, ele dá a oportunidade de dissecar os extremos, com seus riscos e perigos, e de encontrarmos a ação equilibrada que traz mudanças significativas. O primeiro enfrentamento é o mais assustador por o desconhecermos, por não saber se estamos preparados ou munidos suficientes, mas persistir, dá controle e inteligência emocional suficientes pra obtenção de um desempenho superior.

Deixa o medo, então, queimar

O fato de nunca termos feito algo, não significa que vai dar ruim; por mais assustador que o novo pareça, se render ao medo só servirá pra atrapalhar e nos jogar nas possibilidades do talvez, que geram arrependimento sem nunca trazer resolução – como acontece com “Chapeuzinho Amarelo“, de 1970, do poeta Chico Buarque – já que é impossível alterar o passado. É preciso fazer, como disse Melinda Gates, autora de “O momento de voar” (“The Moment of Lift“, de 2019), “use o medo como combustível; abrace esse sentimento nervoso, e reformule-o pra si mesmo como a incrível e fortalecedora sensação de se esforçar pra crescer”. Gabrielle Picholari, especialista em habilidades socioemocionais, destaca: “é importante lembrar que o estímulo pra formação das emoções é inconsciente, mas o que você vai fazer com a emoção e como vai reagir é controlável”, fazer isso é o que nos leva a obter mais potencial e alcançar as alturas.

Duncan Muguku nos ensina a cavar fundo pra identificar sua raiz: “abra o medo e analise seu conteúdo sob um microscópio; identifique e isole as toxinas que estão contaminando suas células”. Isso importa, porque o medo serve de termômetro pra indicar a saída da zona de conforto em direção a turbulência do novo que exigirá mais de nós, mas, como lembra Rob Liano, “se você espera que a vida seja fácil, os desafios parecerão difíceis; se aceita que os desafios podem ocorrer, a vida será mais fácil”; dessa forma, ele destaca a distância entre onde estamos e o objetivo a ser alcançado. Até mais que isso, como lembra Melinda Gates, “se você vive nas bordas da zona de conforto, seu mundo constantemente fica maior”.

Bater ou correr

Além de exercitar a musculatura da coragem, enfrentar os medos aumenta o apetite pela ousadia, da qual a coragem se alimenta [1 Samuel 17.34-37]. O que explica como um garoto mediano, ao invés de se acovardar como geral de sua nação, enfrentou uma ameaça de quase três metros toda trabalhada na defesa e ataque – a armadura inimiga pesava sessenta quilos e a ponta de sua lança sete [1 Samuel 17.4-7]. Mesmo sem coelhinho azul, a força de Sansão ou sua peruca [1 Samuel 17.23-32], o garoto foi ousado e estratégico suficiente, acertando o calcanhar de Aquiles do vilão – que no seu caso ficava na testa – com uma pedra que fez o gigante apagar e lhe deu tempo suficiente pra eliminar a ameaça [1 Samuel 17.38-51].

Por ser uma condição natural e biológica, não existe quem não experimente o medo, apenas quem ainda não descobriu o que lhe assusta – como o garoto que zombou da história de terror da sua mãe em “Calefrio – Conto de terror moderno” e acabou assustado pelo próprio medo; novos tempos, novas formas de se assustar. Por isso o melhor é aceitar o frio na espinha e partir pro abraço. Segundo o psicólogo clínico da Northwestern Medicine e PsyD (doutor em psicologia) Zachary Sikora, “é importante experimentar o medo porque ele nos mantém seguros”.

Os mais belos hinos e poesias

Momentos de dificuldades, que assustam e expõe fraquezas, conseguem extrair de nós profundidade e verdades que tocam vidas, como poetizou Frida Vingren em “Bem-aventurança do crente”, “os mais belos hinos e poesias foram escritos em tribulação”. Isso acontece como resultado do enfrentamento, se não deixarmos o medo das dificuldades e os perigos nos parar. Assim, obras como “I Can Only Imagine“, composta por Bart Millard, vocalista do MercyMe, cuja história de vida que gerou a canção resultou no filme “Eu só posso imaginar” (“I Can Only Imagine”, de 2018), podem surgir.

Pra Pablo Picasso “o propósito da arte é lavar a poeira da vida cotidiana de nossas almas”, já pra Johann Gottfried Herder, a importância de transmitir essas belezas iam além de causar emoções: “um poeta é o criador da nação ao seu redor, ele lhes dá um mundo pra ver e tem suas almas em suas mãos pra levá-los a esse mundo”, ele acreditava que esse tipo de pureza poética era o que movia civilizações antigas, como relatado no Antigo Testamento, na Edda e em Homero, que tinham por essência a empatia – como falado aqui.

Coragem pra vencer

Que a gente tenha coragem suficiente pra dizer “olá” ao medo, não a audácia de desafiá-lo ou desprezá-lo, e quando a coisa apertar correr mais rápido que as pernas, até porque aos covardes está destinado um eterno final infeliz [Apocalipse 21.8]. Estar conscientes daquilo que apavora é o caminho em direção a liberdade dos temores, porque mostra o tamanho do desconhecido, sua forma, além do que há em volta e o que pode ser usado pra derrotá-lo. E a melhor forma de vencê-lo é se lançando no amor, porque ele nos dá a segurança necessária pra afastar todo medo [1 João 4.18] – como abordado aqui – sem importar se ele é real ou não passar de uma ideia obscura que busca aprisionar nossas mentes.

Até porque o enfrentamento não precisa ocorrer só, mesmo as dificuldades podendo nos afogar e queimar [Isaías 43.1-2], assim a gente precisa apenas se esforçar e ter coragem [Josué 1.9]. Se for pra correr, que seja pra um lugar onde há segurança e forças pra prosseguir [Salmos 91]. Assim, após enfrentar o medo, podemos falar com segurança e propriedade de uma verdade que não apenas encanta por seu conteúdo poético e profundidade, e se conecta as pessoas, mas que também liberta [João 8.32]. E a cada manhã nossas vidas poderão entoar louvores, “cada momento um acorde especial, cada mês um hino novo, cada ano uma sinfonia”, que cante do amor que dura pra sempre e que nem a morte pode deter [Romanos 8.38-39].

Contextualizando

A frase que originou essa reflexão faz parte de “Interrompido – A curva no vale da sombra da morte“, uma minissérie que mostra que nossa humanidade é que nos leva a viver os desejos mais profundos e a cometer os erros mais insanos. Ela surge através da descoberta de um quadrinho do Grant Snyder que arranca de Luan um sorriso pela identificação, ao entender a força resultante do medo.

Artigo publicado originalmente no LinkedIn, também está disponível no Medium.


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