Contificando: Gizmo – A mão que segura o celular
Mishael Mendes × DALL· E/ Inversível

Gizmo – A mão que segura o celular

Mal acordou na escuridão e a mão saiu tateando um destino certo: o espaço abaixo do travesseiro. Como o sono andava uma pluma – mesmo passos distantes, a percorrer o Beco Transversal, o faziam despertar – então era abrir os olhos e botar o celular na cara.

A fragilidade de seu sono tinha muito a ver com esse hábito que só serviu pra deixá-lo mais avoado, se antes ele não prestava muito atenção com o fone nos ouvidos a coisa piorou. Como passava o dia no celular, acabava indo pra cama com ele, e a luz emitida o fazia dormir tarde, numa rotina prejudicial. Mesmo assim, não importava a hora que adormecia, se cedo ou tarde, sempre despertava na mesma maldita hora, às três, se fosse ao menos perto do momento de levantar.

Antes do sono ter chance de abatê-lo, a luz do celular o espantou pra longe. Acostumado à escuridão, ficaria rolando o feed até o sono se enfezar e lhe dar um golpe pra dormir os últimos minutos que ainda restavam. Com a atenção voltada total pra tela reduzida, se quer notou a noite mais escura que o normal, nem mesmo a lua era vista pela janela aberta. Tamanho escuro não deixava ver nem mesmo sua mão, o celular flutuava sobre a cama.

Ao invés da vista acostumar a escuridão, as trevas aumentaram a ponto de se tornar palpáveis, o único ponto visível era a tela. Nada ao redor se iluminava, o brilho que saía do dispositivo acabava lambido pelo escuro. Foi quando algo chamou sua atenção, ao dar play a transmissão rolou na tela toda e começou a fazer barulho, esquecendo que o volume estava no máximo, ele tentou abaixar, mas não conseguiu, felizmente o que dava pra ouvir era apenas um vento oco a soprar uma maresia distante, vez ou outra.

Apesar da visão quase nula, o que era percebido revelava que a transmissão ocorria de dentro de uma caverna. Sem mostrar nada além da escuridão, o vento continuava a soprar criando um clima de tensão, enquanto gotas faziam eco ao cair sobre a poça d’água. Ainda que não pudesse ver nada, ele não conseguiu sair do vídeo, que parecia estar pra revelar algo, a acontecer a qualquer instante. Após horas de um suspense sufocante, uma luz turva e fraca começou a revelar as paredes negras de uma gigante caverna deformada, seu teto oval estava cheio de estalagmites pontiagudas.

Mexendo no celular no escuro

O chão encharcado de água escura formava ondas à medida que as gotas caíam, conforme a luz levantou foi possível ver uma cama, perdida na garganta da caverna obscurecida. Então, os efeitos sonoros escaparam do celular, enchendo seu quarto de uma experiência imersiva, o vento fraco passou a acontecer ao redor dele. Cada vez que uma gota se desprendia do teto atingindo a poça, era como se algo numa violação profunda lhe atravessasse os tímpanos com farpas.

Uma tontura, que o impediu saber se aquilo era real ou não, trouxe um déjà vu de que havia experimentado aquela experiência nefasta diversas vezes, embora sempre a esquecendo. O cômodo se tornou nítido e texturizado, mas ele desconheceu os objetos cobertos de breu, suas formas pontiagudas e toscas não sugeriam móveis e o espaço alargou num tamanho assustador de grande. Tomado pela sensação de estar numa caverna obscura, ele escorreu a perna pra fora da cama e quando ela tocou o chão, a temperatura desagradável da água subiu até a espinha, fazendo-o puxar o pé de volta.

Com a respiração ofegante, ele olhou a transmissão, percebeu que sua mão não apenas estava borrada de sombras, mas com um aspecto espesso, peludo e áspero, da mesma aparência assustadora da caverna. O pavor que se apossou dele, revirou seu estômago e provocou um tremor que o fez querer correr dali, mas temendo o barulho que movimentos bruscos podiam causar, atraindo seres desencarnados ocultos no mais profundo daquela escuridão maléfica, foi se afastando pra trás, buscando ficar o mais distante daquela coisa desconhecida, enquanto o batuque do peito ressoava pelos ossos.

Mais alguns centímetros e algo lhe tocou o pescoço, o enchendo de arrepios febris, que lhe reduziram a temperatura do corpo pra um grau inferior ao da mão a tocá-lo. Segurando o grito que ecoava em sua alma, ele virou devagar: havia uma mão decepada. Seu travesseiro estava marcado por uma mancha derramada da mesma espessura e cor da gosma grudada naquela mão. No mesmo instante ele puxou o braço direito, apenas pra se revelar estar amputado; os cortes mostravam que sua mão fora decepada por furos violentos. O frio sentido se tornou feroz a ponto de esbranquiçá-lo: aquela coisa em seu travesseiro, a carregar a morte e de um odor nefasto, era a sua mão.

O celular continuou flutuando mesmo após puxar o braço, então uma imagem a qual seus pesadelos mais perturbados jamais poderia conceber surgiu na tela, fazendo-o soltar um grito alucinado de dor, pavor e desespero, que ecoou pelo espaço vazio da caverna e pôs todos os pelos em pé, seu instinto reagia feito gato ameaçado. Antes de perder os sentidos frente a visão aterradora, a tela foi bloqueada e o silêncio se fez, desapareceu o som do vento, a água caindo, o eco, também seu grito. Ele começou a socar a cama, mas até sua capacidade de emitir som havia desaparecido. Antes do celular cair, se perdendo na escuridão que a tudo consumia, foi possível vê-lo marcar exatamente três da madrugada, de 31 de outubro.

Prestes a fugir, a mão que segurava o dispositivo lhe sorriu, o fazendo congelar até a alma e ele ficou sem poder se mover. As trevas sepulcrais em forma de mão malfeita foi pra cima dele causando um terror visceral. Mas o que o fez tremer e balbuciar não foi o fato da coisa ir pra cima dele, mas sua capacidade de sorrir, ainda mais daquele jeito perturbador que lhe impregnou na retina, estatelando seus olhos, sem que as pálpebras pudessem fechar, fazendo a mente paralisar com a imagem perturbadora enquanto seu corpo era perfurado sem pressa. Afinal, a escuridão ainda se estenderia por horas a fio no nefasto interior da perturbação enlouquecedora.


#papolivre

Enquanto revisava “Panapaná“, em plena madrugada, esse insight surgiu com a ilusão de ótica causada pela escuridão, a se misturar com o sono, que me fez ver minha mão sombreada, então a frase “desconhecia a própria mão” soou em minha mente. Por se tratar apenas disso, a escrevi como um microconto, mas ao invés de duas frases ela ficou com três.

Desde quando descobri esse gênero curtíssimo de história com o Carlos Seabra, ainda mais após conhecer o subreddit “TwoSentenceHorror“, produzi uma infinidade de microcontos, a maioria de terror – sem intensão de divulgá-los, apenas pra exercer o poder da síntese, utilizando o recurso de mostrar ao invés de contar, também pra despachar o riacho de insights que me tomam a mente. Apesar de curta, ela possui imenso potencial, inclusive o subreddit acabou inspirando a premiada série “Terror em duas frases” (“Two Sentence Horror Stories”, de 2019) – ansioso pela terceira temporada – com episódios criados a partir dessas frases.

Como esse conto ficou maior que o máximo permitido pro gênero, aproveitei o mês do terror e aumentei a história pra ambientá-la com um clima mais pesado, e esse é o resultado. Que além da pontinha de terror, também faz um alerta pros efeitos negativos do uso excessivo de dispositivos, ainda mais à noite, que pode inclusive causar insônia. Espero que você se lembre dele dá próxima vez em que acordar de madrugada pra mexer no celular. Essa história faz parte da #calafrio que trará mais histórias de terror até o fim de novembro – ou mais, já que ando numa inspiração arrepiante.

Ósculos e amplexo,

Mishael Mendes Assinatura
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