Se escondendo entre cerras, um lugarzinho no meio do nada do sertão de Elmham, não possuía qualquer sinal de povoação. O ribeiro mais próximo ficava a mais de dez quilômetros de distância – quase duas léguas dali. Ele só não havia caído total no esquecimento por ser passagem obrigatória pra quem vinha ou ia pro centro da cidade, embora as pessoas preferissem evitá-lo, fosse pela distância ou porque acessar o local após o pôr do sol era desaconselhado. Assim, ninguém queria ser pego andando por ali quando caíam as sombras da noite.
Cortado por uma estrada de barro batido, nivelada anualmente – no exato dia em que a prefeitura lembrava de sua existência – o lugar era pouco convidativo. A estrada ficava entre dois serrotes, distante poucos metros um do outro, começando reta, ia ficando íngreme à medida que se caminhava. Apesar de não ser alta, permitia uma visão ampla do que havia de cada lado, aí conforme se seguia, a ladeira descia, até a estrada se aprumar de novo.
De ambos os lados, a vegetação média e rasteira formava uma capoeira composta por jurema, catingueira, pau de ferro, marmeleiro, angico, baraúna e aroeira, que não sombreava ninguém, permitindo ao sol arrancar suor as bicas – ainda mais porque as serras prendiam o calor ali, tornando o lugar num verdadeiro caldeirão. Enquanto os pés arrastavam pelo barro, levantando poeira que entrava nos olhos quando o vento soprava maldoso. Ainda mais na seca prolongada que sugava a terra até o chão ficar todo craquelado, com frestas de onde era possível até ver o que se escondia sob o solo avermelhado; mesmo que ninguém tivesse coragem suficiente pra parar e averiguar isso direito.
Porém, o que chamava mesmo a atenção não era nem a paisagem pitoresca ou o total abandono, mas algo que havia no serrote esquerdo. Na parte mais alta, sobre duas pedras grandes, arrumadas de maneira bruta, podia ser vista uma maior, deitada sobre ambas, formando um imenso banco solitário, em sinal de mau agouro.
Se de dia o lugar era deserto, a noite ficava sombreado por coisas que causavam arrepios só de pensar, difícil era o cabra-macho a se aventurar por aquelas bandas. Como a eletricidade ainda não alcançara as terras ali, o breu devorava tudo com sua garganta obscura.
Em noite de lua nova, o caminho chegava a se fundir a escuridão palpável – isso quando a lua resolvia aparecer. Fora a iluminação escassa, o vento murmurava através das serras, ao passar pelo mato gerava um clima de tensão que ganhava da melhor trilha sonora de filme de terror.
Após escurecer, o jeito mais seguro de passar ali era em grupo, sozinho não tinha cristão que tentasse tal proeza – os mais ajuizados ficavam em casa ou pediam estadia no ribeiro mais próximo. Até porque, grande era o arrependimento de quem se atrevesse a meter as caras por lá depois da meia-noite.
O pavor nem se dava tanto pela escuridão – devido à precariedade na distribuição de energia elétrica, os conterrâneos eram acostumados a enfrentá-la. O que botava mesmo os pelos em pé era o que podia surgir das trevas, ocasionando num encontro perturbador com o que rondava aquela região.
Tudo começava com o resfriamento do clima, baixando até os dentes começarem a bater, daí se ouvia o som do caminhar apressado entre a folhagem espessa, enquanto o vento assoviava uma cantiga de gelar a espinha. O farfalhar continuava a crescer em velocidade até estar perto demais, fazendo qualquer um arrepiar das canelas ao jerimum, feito porco-espinho.
Quando isso acontecia, só havia uma certeza, bastava olhar pro serrote da esquerda que lá estava ele, exatamente no ponto mais alto, em cima do banco de pedras, o bode preto.
— Peraí, que história mais errada é essa? – Josh interrompeu.
— Como assim, filhote?
— Tanto medo só por causa de um bode? – O garoto ergueu a sobrancelha.
— Mas era um bode preto. – Susie esclareceu.
— Maior preconceito, isso sim! – Ele ficou chocado.
— Por quê? – Ela se impressionou com a afirmação do garoto.
— O povo se assustar porque o bode era preto.
— Mas dava medo. – A mãe tentou explicar.
— Bando de racista! – Ele se indignou.
— É que o bode aparecia do nada.
— O povo que passava distraído e não via o bichinho subir. – Ele explicou. – E qual o problema do bode aparecer, ele não podia nem dar rolê de boas?
— É que não tinha bode por ali.
— Deve ser porque ele preferia sair à noite pra evitar dar ruim pra ele.
— Não, filhote, não existia bode nenhum naquela região.
— Vai saber? Com um bando de preconceituoso ele devia ficar escondido, saindo quando era mais seguro. Se fosse eu, fazia a mesma coisa!
— Não dava pra se esconder por lá, a vegetação era baixa.
— E como a senhora tem certeza que o bode aparecia, já viu ele alguma vez?
— Nunca, graças à D-s! – Ela se arrepiou só de pensar na ideia.
— E qual a fonte da história? No Google não achei nada. – Ele mostrou o celular.
— Os antigos que contavam.
— Antigos quem? Trabalho com nomes! Cadê a nota fiscal? E de onde é essa gente esquisita?
— Ah! – Ela pensou por um instante. – Os primeiros moradores de Elmham.
— Ah! Mãe, para! A senhora pelo menos conhece alguém que viu ele? – A incredulidade só aumentava.
— Não, mas todo mundo de lá conhece a história.
— E se tudo for só história-da-carochinha? Vai que as pessoas inventaram isso pra difamar o pobre bichinho.
— É não, o bicho era coisa ruim mesmo! – Ela insistiu. – Até hoje tem um monte de marcas de mãos, em volta das pedras, feitas pelas vítimas do bode.
— Sério isso, mãe? – Ele ergueu a sobrancelha.
— Mais sério, não podia ser! As marcas tão tudo lá pra provar que o melhor é não se meter a besta e tentar passar ali de noite.
— Tendeu! – Ele ficou pensativo. – Só não faz sentido uma coisa.
— O que, filhote? – A mãe ficou curiosa.
— Se todo mundo que viu esse tal de bode morreu, como a história alastrou?
— Porque… porque… uma vez o bode apareceu pra dar mensagem! – Ela conseguiu dizer com certa dificuldade.
— Mesmo!? Que mensagem foi essa? – Ele estava todo desconfiado.
— Que ele aparecia e atacava quem passava ali depois da meia-noite.
— Mas qual o sentido de avisar? – O garoto ficou confuso.
— Pra ninguém passar tão tarde, ali. – Rapidamente, ela esclareceu.
— Sim, mas se ele pegava quem passava, pra que avisar? Aí, ninguém ia passar mais.
— Oras! Ele avisou pra meter o medo.
— Tô ligado! Pra mostrar que era o bichão, né?
— Isso aí! – A mãe concordou, convicta que ele entendera o recado.
— E… como ele mandou mensagem se atacava quem aparecia? – O filho insistiu.
— Foi por torpedo. – Ela disse seriamente.
— Por acaso já existia celular naquele tempo? – Ele levantou a sobrancelha.
— Opa! Espera… foi por sinal de fumaça. – A mãe se corrigiu segurando a risada. – Filhote, você faz tanta pergunta que me confunde! – Ela suspirou, enquanto confessava.
— Mãe, nada a ver isso aí, cê acabou de inventar! – Não aguentando mais, ela caiu no riso.
— Tô rindo… – Susie secou uma lágrima. – …mas é tudo verdade. – E balançou a cabeça, num tom sério.
— É nada, tanto que cê inventou essa de mensagem! – Mais incrédulo ele não podia estar.
— Mas é verdade! E tão verdadeira é que o lugar onde o bicho do capiroto aparecia se chama Serrote do Bode.
— Isso não diz muito, mas, enfim… sabe o que acho?
— Não, diga! – A mãe queria saber o que aquele toco de gente tinha ainda pra dizer depois de desmontar toda a sua defesa.
— Esse bode era da resistência e apareceu na pedra pra denunciar os horrores do preconceito, daí quando os racistas viram ele, não gostaram nada, pegaram o bode e mataram o bichinho pra fazer buchada. Daí, limparam as mãos nas pedras, as únicas provas do massacre, depois deram o nome pro lugar de Serrote do Bode, igual Tiradentes, hoje tem até cidade com o nome dele. A história surgiu pra abafar o crime e, como o causo da “manga com leite” que, de tanto os fazendeiros repetirem que matava, os escravos pararam de roubar leite e a fake news virou “verdade”. – Ele destacou com os dedos. – E fim de história. – Concluiu todo sabido e deu as costas pra sair.
— Onde você vai? – A mãe questionou, levantando a sobrancelha.
— Assistir série que ganho mais. Tem uma maior assustadora, bora ver? – Ele sorriu, serelepe.
— Não, brigada! – A mãe declinou o convite. – Você sabe que não gosto nem um pouco de séries de terror. – Ela refletiu. – Por falar nisso: você não é pequeno demais pra ver essas coisas, Josh?
— Relaxa, mãe! Pega nada. – Tendo dito isso, ele subiu pro quarto.
— Nossa, não se fazem mais crianças como antigamente! No meu tempo era só começar a contar história de terror que a gente arrepiava todinha, já essa geração vem com um monte de questionamento, cheia de ideologia e mata toda graça. Essas crianças são espertas demais! Isso que dá nascer com tecnologia na mão.
Pegando o iPad, Susie resolveu fazer um bolo cremoso de cenoura com cobertura de chocolate, pois ganharia mais encontrando uma receita gostosa que tentar assustar um garoto que não se impressionava. Antes, acabava desfazendo toda graça do medo, mas a tarefa não demorou muito e logo ela berrou pro filho vir à cozinha.
— Que foi, mãe? – Ele gritou da escada.
— Arruma o iPad da mamãe, ele não tá funcionando direito. – Ela berrou.
— De novo, mãe? – Ele desceu. – Que foi agora?
— Esse pokémon aí não tá funcionando…
— O Chrome? – Ele corrigiu.
— Esse mesmo! – Lembrando de outra coisa, Susie saiu e deixou o filho resolvendo aquilo, já que ele manjava mais daquelas coisas.
— É só atualizar, mãe… – Ele berrou, cheio de certeza. – Ué, foi nada… – A voz saiu num sussurro confuso. – Ah, tá sem conexão! – Ele ligou o interruptor e a lâmpada acendeu. – Mas tem luz! – E olhou novamente o iPad. – O estranho é que tá sem conexão móvel também, meu celular tá a mesma coisa. – Ele disse após consultar o dispositivo.
— Filhote, corre aqui! Vem ver o jornal. – A mãe chamou da sala, agitada. Quando Josh entrou, chegou a tempo de ouvir o âncora noticiando a maior tragédia.
— Um submarino acabou de colidir com uma das vértebras mais importantes da internet. O acidente causou o rompimento de um cabo ultramarino, deixando vários continentes sem conexão. Devido à dificuldade no reparo, especialistas estimam que serão necessárias algumas semanas até todas as conexões serem restabelecidas.
— NÃAAAAAAO! – Ele gritou, desesperado. Ao se imaginar tanto tempo off-line, algo gelado lhe atravessou a espinha, botando todos os pelos em pé.
#papolivre
Medo não morre, só ressurge com outra aparência. Os tempos mudam, altera-se o conhecimento e o medo se transforma, trocando a máscara e a forma de aparecer pra meter o terror – como comentei nesse vídeo. Cada um tem algo que lhe bota os pelos em pé e, ainda que o medo do outro pareça bobo, de jeito nenhum o nosso é.
Muito do desconhecido que assustava nossos pais e avós já possui explicação, mas se os antigos medos agora não passam de algo vazio – destituído de sentido – é porque tivemos uma formação diferente.
A ideia desse conto surgiu quando minha mãe contava sobre o Serrote do Bode, em Custódia–PE. Conforme ela falava, meus questionamentos sobre o que de errado não estava certo – pela ótica atual – foram tão naturais que a história se formou em minha cabeça. O evento aqui narrado acontece quando Susie conta de seu medo pra versão ainda mais baixinha de Josh – antes dos eventos narrados em “O Segredo das Eras – Despertar“.
Nossa mente anda tão condicionada a questionar e comprovar coisas – ou a atentar certas expressões pra não ofender – que a gente acaba interagindo conforme essas regras, sem se dar conta disso. Mudam as estações, o entendimento também, daí a gente percebe não ser tão diferente de nossos pais – apesar de os julgar, eles também são como nós, ou será que a gente é como eles? “O que você vai ser, quando você crescer?”, já cantava Renato Russo.
De forma inconsciente, esse conto tem um pouco de “A história do Garoto que não sabia o que era o medo” (“Märchen von einem, der auszog das Fürchten zu lernen”, de 1812), dos Grimms – se ainda não conhece, precisa! Assisti essa história várias vezes na infância, apresentada pelo “Teatro dos Contos de Fadas” (“Faerie Tale Theatre”, de 1982). Abaixo, você pode dar uma espiada no livro que traz o início da saga do segredo que atravessou as eras.
Ósculos e amplexos,
Autor de Interrompido – A curva no vale da sombra da morte, é um cara apaixonado total por música, se deixar não faz nada sem uma boa trilha sonora. Bota em suas histórias um pouco de seus amores e do que sua visão inversível o permite enxergar da vida.