Interrompido – Nada é absoluto (Episódio 17)

Interrompido – Nada é absoluto (Episódio 17)

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A sensação de morte traz uma visita inesperada deixando Lourdes em conflito que a faz perceber precisar decidir algo. Entretanto, nada a preparou pra terrível visão a qual foi obrigada a ver o horror até despertar do pesadelo macabro.

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Só quando terminou de gritar, Lourdes se deu conta das palavras terem desprendido da língua – se emaranhando umas nas outras, como se falasse um estranho idioma – saindo ininteligíveis e em altura baixa pro grito que pensou soltar.

Logo os olhos abriram, buscou se localizar na escuridão, sondando com pressa o espaço em volta. Ao se dar conta de onde estava, o alívio de tudo não passar de sonho ruim, fez a respiração voltar ao ritmo normal.

Precisando de sua âncora pra relaxar, colocou a mão de lado da cama onde o companheiro costumava dormir e percebeu o espaço vazio.

— CLIQUE! – Um aperto no interruptor fez a lâmpada iluminar o quarto e os olhos de Lourdes arderem.

— Tá melhor, amor?

— Tive um sonho ruim, mas tô bem. – Lourdes sorriu agradecida por estar na segurança e conforto de seu lar e o marido a correspondeu. – Que horas são, neguinho?

— Tá cedo, ainda vai dar quatro horas. Aproveita pra descansar mais, amor!

— Quatro!? – Ela se espantou. – Marcos, por que não me chamou antes? Já tô atrasada pra cuidar do Cadu!

Ela descobriu, pronta pra sair da cama, botar a roupa e se mandar pro hospital, mas paralisou no momento em que o semblante do marido transmutou numa expressão de pena e dor, claras o suficiente pra dispensar palavras.

“Nada é absoluto quando se trata de interpretação.”

Àquela hora, apenas a luz da residência Mendes se encontrava acesa, mas quando Lourdes compreendeu a realidade dos fatos soltou um grito condoído que fez as casas da vizinhança brilharem também.

— O que você fez, Marcos? – Lourdes esmurrava o peito do esposo ao seu lado, chorando apoiada em seu ombro.

— Calma, amor! – Ele pediu com paciência e a abraçou forte.

— Você não podia ter feito isso com o Cadu, não podia ter feito isso comigo! Marcos, você não podia ter feito isso com a gente! – Ela tentou esmurrá-lo, mas ele a manteve firme junto a si.

— Era o melhor a fazer, querida, mas você tava tão triste que não percebeu.

Após a abordagem inicial, Marcos procurou o médico e contou sobre o pedido de Cadu, então doutor Pedro Gonzaga fez uma nova tentativa com Lourdes tentando sensibilizá-la sobre a importância da doação de órgãos, só que ela se mostrou mais resistente. Dessa forma ele desistiu de tocar no assunto.

— Desistiu!? – Ela se afastou, indignada. – Ele continuou me perturbando com esse papo! – Ela se ressentia por ser incomodada tantas vezes.

— Não, amor, ele não insistiu!

O desgaste físico e emocional, somados ao temor de perder o filho, a fizeram ficar na defensiva, imaginando que qualquer aproximação do médico se devia a pressioná-la quando o que ele queria era falar de outras coisas – nada é absoluto quando se trata de interpretação.

Sabendo do posicionamento do paciente e com a eminência de uma morte cerebral a qualquer instante, o médico conversou com Marcos sobre a oportunidade da morte de Cadu resultar em multiplicação de vida ao invés de findar em subtração. Desejando cumprir a vontade do filho, a proposta foi recebida de prontidão.

“Tudo tem seu tempo, o difícil é aceitar quando ele acaba pra quem amamos.”

Por não querer fazer as coisas às escondidas, tentou conversar com a esposa, mas irredutível, ela nem o permitiu tocar no assunto. Decido a prosseguir sem o apoio da esposa, Marcos conversou em off com o agente da Equipe de Captação de Órgãos, onde esclareceram a necessidade de urgência, caso ocorresse morte encefálica. Por fim, ele assinou o Termo de Doação de Órgãos e Tecidos e quando chegou o momento tudo foi realizado nos conformes.

— Como você fez isso pelas minhas costas? – Lourdes fora traída. – Você vendeu a alma do nosso filho a troco de quê?

— Amor, a gente fez uma promessa.

— Que não fazia sentido cumprir! – Ela gritou. – Aquele povo só queria despedaçar nosso filho!

— Claro que não, amor! Eles queriam o Cadu vivo tanto quanto a gente.

— Será mesmo, Marcos!? Você só diz isso porque não viu o mesmo que eu! – Ela se indignou. – Se eles não estivessem interessados apenas em tirar os órgãos do nosso filho, o Cadu tava vivo agora.

— Explica direito, amor! – A afirmação, dita com tanta propriedade, fez Marcos duvidar da certeza que acreditava ter e achou melhor entender os motivos pra tamanha certeza.

Lourdes questionou a quanto tempo ocorreu a assinatura do termo e ao saber ter sido pouco antes de Cadu falecer, suas suspeitas se confirmaram e ela revelou que recebera um áudio alertando de uma enfermeira que vinha matando pacientes.

Por esse motivo se voluntariou pra cuidar de Cadu, assim teria certeza dele estar seguro – essa também foi a causa de achar que o médico ia sugerir a eutanásia. E tudo ia bem, até Marcos assinar a sentença de morte do próprio filho.

Lourdes explicou que, diferente de seriados, uma parada cardíaca não significa óbito: por ser o corpo um sistema, possui diferentes sinais vitais, todos averiguados pelo monitor multiparâmetro.

O coração foi parando

Quando o coração de Cadu parou, o monitor exibiu os demais sinais funcionando, ainda assim, ela recostou o ouvido em seu peito pra confirmar a respiração, antes de poder fazer qualquer coisa foi retirada às pressas, deixando o caminho livre pra garantir sua morte.

— Vi tudo, neguinho, eles podiam ter salvo nosso filho, mas preferiram desligar os aparelhos.

Antes de continuar, Marcos pediu pra verificar o áudio – compartilhado no grupo das irmãs da igreja. Nele, uma assistente de enfermagem, que trabalhava num grande hospital, alertava pra uma onda de pacientes falecendo sob condições misteriosas e com certa frequência e mesmo com o alto índice de mortes, ninguém dava a mínima.

Investigando o caso, a auxiliar descobriu que as mortes aconteciam no plantão de determinada enfermeira – a qual ocultou a identidade pra evitar processos. Essa mulher convencia os pacientes a doar os órgãos, afirmando ser um ato de compaixão, ao conseguir as assinaturas os fazia aceitar a eutanásia e vendia os órgãos no mercado negro internacional – onde um rim pode chegar a valer US$ 262 mil, o que dá quase R$ 1,5 milhão.

O horror mesmo foi descobrir o envolvimento de pessoas chaves do hospital explicando o porquê de ninguém fazer nada pra parar as mortes; além da grana alta, era vantajoso ter leitos disponíveis, além de reduzir gastos com pacientes dispendiosos. Horrorizada e sem ter pra quem denunciar a enfermeira, já que os próprios diretores estavam envolvidos, gravou o áudio, ao qual finalizava pedindo pra todos que não compactuassem com isso o enviassem pro máximo de pessoas, só assim acabariam com a trama macabra.

Finalizado o áudio, Marcos ficou estarrecido, apesar do conteúdo forte, a denúncia não era real. Com dados imprecisos, como data do ocorrido, nome completo de quem fez a denúncia ou do hospital onde trabalhava, a abrangência tornava qualquer hospital – onde a mensagem chegasse – apto a ser apontado como alvo da denúncia.

A mensagem não passava de um hoax: conteúdo incompleto e inverídico, feito pra causar dúvida e levar ao engano e que devido ao apelo emocional meio absurdo, embora aceitável, o tornavam compartilhável por pessoas desejosas por “ajudar” os conhecidos sem, contudo, se darem ao trabalho de checar a notícia.

“Seja sorrindo ou chorando cumpre a promessa feita no momento de alegria.”

— Será, neguinho!? – Lourdes ainda estava desconfiada, a descrição parecia apontar direto pro hospital onde Cadu esteve.

O marido explicou que no Brasil, eutanásia é considerada homicídio, com pena de reclusão de 6 a 20 anos. A Constituição entende que a vida é um direito inviolável e, mesmo em atenuante, quando há o pedido de paciente pra alívio de sofrimento latente e inevitável, o ato é considerado homicídio privilegiado, resultando em reclusão de um sexto ou um terço da sentença, conforme decisão judicial.

— Essa denúncia, tem cara de ter sido traduzida de algum país onde a eutanásia é permitida por lei, já que isso não é permitido.

— Nossa! – Lourdes se deu conta do tamanho da bobagem em que acreditou. – Você tem razão, querido! E quando foi que meu neguinho ficou tão entendido dessas coisas? – Ela estava um orgulho só.

— Ah! A gente aprende. – Ele ficou sem jeito. – Tem um blog legal que acompanho, o E-farsas, onde eles desmitificam histórias e correntes antes mesmo delas serem chamadas fake news. – Quanto a equipe deixar o Cadu morrer, você entendeu errado, amor.

— Como assim!? – Lourdes tinha claro na memória o momento em que um dos enfermeiros desligou os aparelhos, a mando de Dolores.

— Isso aconteceu, querida! Não da forma que você imagina.

Logo Lourdes foi retirada, a equipe iniciou a massagem cardíaca com toda dedicação possível; não apenas por se tratar de uma vida a ser resgatar das garras da faminta morte [Provérbios 27.20a], mas, porque se afeiçoaram de Cadu e por acompanharem toda saga daquela mãe em busca da recuperação de seu garoto. As compressões seguiam sincronizadas, porém, antes mesmo do uso do desfibrilador, o cérebro dele entrou em falência, e a enfermeira ordenou a desligada dos aparelhos.

Correndo contra o tempo, foi iniciado o protocolo de retirada e armazenamento dos órgãos, e Cadu levado pra sala de cirurgia onde teve os órgãos removidos. Pouco depois o helicóptero do CNCDO pousou e os agentes recolheram as maletas já com destino certo; antes de partirem, o agente com quem Marcos conversou, se aproximou pra parabenizá-lo pela coragem e altruísmo.

— Então não foi tudo um complô pra retirar os órgãos do Cadu? – Ela ainda se sentia perdida. A ânsia por se eximir da culpa que sabia ter, somada ao áudio assustador, acabaram fazendo-a interpretar as coisas da pior forma possível.

— Não, querida! – Com pesar, Marcos afirmou.

— Mas não era pra isso acontecer, neguinho… pareceu muito… errado… – Lourdes foi caçando as palavras enquanto decidida se contava ou não a visão horrenda enquanto o processo ocorria.

“Será que foi visão?” – Ela se questionou se aquilo fora uma experiência sobrenatural a lhe revelar o estado do mundo espiritual naquele momento. Desviando os olhos do marido, viu no criado mudo uma cartela de Zolpidem. Como o sono vinha lhe fugindo dos olhos, começou a tomar o remédio pra poder descansar e um dos efeitos colaterais era causar alucinação caso o sono fosse adiado.

Sem a certeza de ter ou não ingerido a pílula no dia anterior, achou melhor deixar pra lá, afinal, aquilo era tenebroso demais pra compartilhar com quem quer que fosse, além disso, tudo já estava esclarecido. Conforme o marido falava, as lembranças foram surgindo em flashes, enquanto a visão aterradora se interpunha, atestando a realidade dos fatos.

Quando olhou Marcos de volta, ele a encarava, a esperando concluir a fala.

— Acho que ainda não era hora do Cadu partir!

— Amor, tudo tem seu tempo, o difícil é aceitar quando ele acaba pra quem amamos.

— Talvez… eu tenha adiantado isso… – Após confessar, Lourdes começou a chorar.

— Não diz essas coisas, querida! – Ele a envolveu nos braços, triste por ouvir uma coisa daquelas depois de tanta dedicação por parte dela.

— Foi, neguinho… – O choro intensificou.

Enquanto era escoltada pra fora do quarto 705, Lourdes viu – com a nitidez de um close – uma lágrima galgar rosto abaixo de Cadu.

A ciência até podia não saber explicar a razão disso acontecer com o garoto em estado de inconsciência, mas ela soube na hora o significado real. A teimosia em resistir tanto tempo – mesmo ante um diagnóstico irreversível – se deu por Cadu perceber o sacrifício realizado por ele. Até suas palavras o fazem desistir do que o prendia ao corpo paralisado e o prateado fio da vida rompeu [Eclesiastes 12.6-7].

“Nesse plano existe um desfecho pra cada coisa que se principiou, chamamos vida os acontecimentos ocorridos no intervalo entre os extremos.”

Na mesma hora, Lourdes se soltou dos enfermeiros e tentou voltar pra explicar que não queria se livrar dele só chegara a exaustão, ao ser foi arrastada pra fora o desespero aumentou, porque sabia restar pouco tempo pra desfazer o mal-entendido.

Agitada e fazendo escândalo, lhe aplicaram calmante sem ela nem se dar conta, então as coisas ficaram confusas e suas palavras saíram gemidas num rosto carregado de caretas, não como os berros emitidos.

— Amor, não foi culpa sua, o falecimento cerebral era esperado! – Marcos estava cheio de compaixão, ao compartilhar da dor que da esposa por se impor tamanho jugo, o mesmo que havia posto a si mesmo quando sua mãe faleceu.

— Pode ser! – Ela aceitou, sem se dar por vencida. – Mas eles foram apressados, neguinho! Quando uma criança falece, o protocolo é manter os aparelhos ligados até os pais se despedirem e se esse fosse o tempo necessário pra um milagre acontecer? – A ideia da última oportunidade de Cadu reviver ter sido furtada a agitou. – Se tivessem esperado um pouco o Cadu podia ter ressuscitado, mas gora ele tá despedaçado e não tem mais conserto! – Sua angústia aumentou novamente.

— Todo processo precisava de urgência, caso contrário a gente ia perder o Cadu sem realizar o desejo dele. – Carinhoso, ele afagou o rosto da esposa, enquanto falava com afeição. – Nosso filho se foi porque chegou a hora dele. Quanto tempo mais você aguentaria ver ele naquele estado?

— Pelo resto dos meus dias! Antes isso que não ter mais nosso filho. – Ao se dar conta do que disse, Lourdes se desfez em lágrimas.

Naquele instante tudo que Marcos conseguiu fazer foi ficar abraçado a esposa, partilhando de seu pranto, ele havia sido forte demais, aquele era o momento de extravasar [Eclesiastes 3.1,4].

— Seja sorrindo ou chorando cumpre a promessa feita no momento de alegria… – Ele se pegou sussurrando.

O peso das palavras bastou pra Lourdes se dar conta que podia ter compartilhado os cuidados do filho, aquela dor também pertencia ao esposo. Marcos vibrara tanto ao saber da vinda de Cadu e mesmo com todo cuidado com o filho, foi ele quem presenciou o atropelamento, tudo suportando pra ela poder desabar.

O casal ficou ali, abraçado, dividindo dor, sentimentos e força. Num mesmo espírito permaneceram unidos, expurgando o sofrimento que tanto os assolou. Nesse plano existe um desfecho pra cada coisa que se principiou [Eclesiastes 3.1-2], chamamos vida os acontecimentos ocorridos no intervalo entre os extremos.

Ao ser anunciado o velório no jornal local, os vizinhos entenderam o grito que os despertou na madrugada. Saber isso tornou o som mais aterrador. Naquele dia, a manhã não estava disposta a aparecer, tomado de nuvens, o céu acinzentou o funeral e o enterro, ainda assim a cerimônia emanou paz; a expressão serena de Cadu o fazia parecer sorrir, além de seu corpo não mostrar traço dos órgãos terem sido removidos.

Na cerimônia havia diversas pessoas, entretanto, uma delas, estática ao lado do caixão, chamou a atenção de Lourdes que ficou na dúvida se realmente era quem parecia, até porque não percebeu a visita em qualquer outro momento até daquele.


#proximoepisodio

O chão se abre pra devorar Lourdes. Após saber o que motivou Socorro a seguir na enfermagem, Luan percebe a força necessária pra isso, porém, ainda restam questionamentos a serem respondidos.

Conheça a história com acontecimentos inéditos e um episódio extra!

Ósculos e amplexos,

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