#episodioanterior
Lágrimas lavam a alma, expurgando aquilo que palavras não podem exprimir, foi o que Marcos experimentou quando Lourdes o faz confrontar o passado que os leva a enxergar a dimensão do sofrimento um do outro.
Acompanhe a minissérie » EP 01 • EP 02 • EP 03 • EP 04 • EP 05 • EP 06 • EP 07 • EP 08 • EP 09 • EP 10 • EP 11 • EP 12 • EP 13 • EP 14 • EP 15 • EP 16 • EP 17 • EP 18 • EP 19 • EP 20 • EP 21
Feito cavalo selvagem, no qual Lourdes montou sem saber de sua natureza indomável, o tempo a arrastou pra um destino desconhecido. Fazendo-a se apegar aos momentos presenteados a cada manhã, enquanto buscava se firmar mediante a violência do galopar e dos galhos que surgiam pra arranhar seus membros e face.
Ela acabara de limpar Cadu e verificava se os sensores estavam devidamente conectados e os aparelhos funcionando, nisso, um espírito de morte rondou o quarto e conforme a presença opressora se achegou, calafrios tomaram todo seu corpo.
— Repreendo, em nome de Jesus, todo espírito de morte que queira assolar meu filho! – Ela falou com a autoridade concedida pelo Mestre [Marcos 16.17-18].
— TOC! TOC! TOC! – As batidas vieram de forma tão inesperada que até seus pelos arrepiaram, enquanto se virava, com receio, em direção a porta.
— Olá, dona Lourdes, como tá o Cadu? – A desconhecida quis saber após abrir a porta.
— Desacordado ainda, mas acredito que logo ele acorda. – Apesar da mulher demostrar conhecê-los, ela tinha certeza de nunca a ter visto antes, acabou respondendo no automático.
— Ah! Desculpe não me apresentar primeiro. – A mulher se adiantou ao ver Lourdes a lhe encarar com estranheza. – Sou Elis, a mãe do Nandinho.
Logo os ouvidos de Lourdes captaram o apelido, o cérebro processou a quem ele se referia e aquilo fez algo revirar dentro dela.
— Será que podemos conversar? – Elis lhe interrompeu o fluxo de pensamento e ela apenas assentiu, então ambas sentaram nas poltronas.
“Lágrimas lavam a alma, expurgando aquilo que palavras não podem exprimir.”
A convidada contou que desde pequeno Nandinho era inquieto e pra se manter ocupado foi trabalhar com o pai na roça, quando completou 6 anos e enquanto os coleguinhas curtiam a infância ele preferia labutar. Mesmo achando bonitinho o empenho, não pareceu certo pros pais ele se esforçar tanto, então o puseram numa academia de artes marciais, onde ele se ocuparia e ia gastar as energias. Onde o empenho dele o fez ganhar alguns campeonatos.
Funcionando num ritmo acelerado, o cérebro de Nandinho o deixava elétrico a ponto dele ficar tornando impaciente com a velocidade das demais pessoas, até começar o jiu-jitsu, daí ficou independente demais e se distanciando devido aos treinos e campeonatos. Como os pais também não tinham muito tempo pra si o desprendimento facilitou a ida pra São Paulo antes mesmo de alcançar a maioridade.
— Apesar do Nandinho estar distante e de sentirmos falta dele, a gente sabia que tava tudo bem, porque ele sempre mandava dinheiro. – Emocionada, Elis fez uma pausa. – Ele ia passar um tempo em casa, depois das provas da faculdade.
Os pais não sabiam como o garoto se sustentava, menos ainda que largou a facu; como os pais eram meio antigos, achou desnecessário chateá-los com uma informação que só os afastaria. Como devia uma visita a tempo, mesmo com a agenda apertada se programou pra isso, mas uma semana antes da viagem o acidente invalidou esses planos e de forma tão inesperado que Arnaldo, o pai de Nandinho, adoeceu.
— Por isso só vim agora. – Elis precisou respirar fundo. – O pior é que nem ao menos pude me despedir do meu filho, ele foi enterrado por aqui, sem a gente, num caixão lacrado. Às vezes tenho a impressão que ele não morreu, apenas perdeu o voo pra casa e ainda não conseguiu voltar pra gente.
— Oh! Sinto muito… – O peso naquelas palavras comoveu Lourdes e ela tentou transmitir forças pondo a mão no ombro da visitante.
— Agradeço a compaixão, mas não foi pra isso que vim. – Elis tomou a mão dela entre suas. – Vim pra te dizer que doe os órgãos do seu filho.
A proposta teve o efeito de dessaturar tudo e, enquanto puxava a mão de volta, os olhos de Lourdes captavam imagens em escala de cinza em movimentos arrastados que evocaram um frio perturbador.
“Um dia acaba chegando o fim de cada coisa e sem que a gente possa fazer algo, se vão sonhos, realizações e entregas, mas algumas vidas são ceifadas antes mesmo do que deveriam devido escolhas ruins.”
— Sei que esse não é um pedido fácil… – Elis chamou sua atenção de volta. – …mas pense nas pessoas que podem ser salvas. Queria ter feito isso com o Nandinho, só que quando soube do acidente era tarde, já você pode. Você tem essa opção!
Enquanto falava, Elis notou a ouvinte cabisbaixa, então abaixou a cabeça e mirou em seus olhos.
— Um dia acaba chegando o fim de cada coisa e sem que a gente possa fazer algo, se vão sonhos, realizações e entregas, mas algumas vidas são ceifadas antes mesmo do que deveriam devido escolhas ruins. – Sem poder encarar o olhar penetrante, Lourdes desviou o rosto. – Doar órgãos é semear oportunidades, seja prolongando o tempo ou proporcionando condições melhores, é se compadecer de quem anseia por vida. – Elis recordou a importância de ajudar o próximo [Mateus 22.39].
As palavras ecoaram fundo e Lourdes apertou os olhos tentando reter a alma desejosa por escapar em gotas de quebrantamento, enquanto a garganta diminuía de tamanho dificultando a respiração.
Ao abrir os olhos o controle foi por rosto abaixo, embaçando a visão, ela tentou dizer que o marido não tinha o direito de ligar pra Elis e ter tocado nesse assunto, mas viu apenas um borrão onde a convidada estava e, ao limpar as vistas, percebeu-se sozinha. Ligeira, abriu a porta, procurando a visitante pelo corredor: não havia ninguém, menos ainda Marcos que já devia estar trabalhando àquela hora.
Aproveitou uma enfermeira que passava perguntou de Elis, recebendo como resposta que uma mulher com as descrições dadas não fora vista, se quer passara alma viva ali, àquela hora o corredor costumava ficar deserto. Na recepção, Alice desconheceu o nome, no sistema também não havia entrada alguma, saber isso lhe causou um arrepio – podia ela ter recebido a visita de um anjo [Hebreus 13.2]?
De volta ao quarto 705, Lourdes se deu conta que o incomodo no estômago era causado pela raiva nutrida por Nandinho. O ressentimento começou como lagartixa até virar um faminto dragão-de-komodo e a não ser que sua misericórdia fosse maior que a revolta ela seria devorada, então escolheu perdoar o garoto que devia estar perdido total [Mateus 5.42-46].
Entretanto, a reverberação das palavras de Elis em sua mente a fizeram optar por não fazer coisa de doação nenhuma; se ela possuía opção a usaria pra salvar o filho e disposta a isso aumentou os cuidados. Tamanha dedicação exigiu mais horas na UTI e como resultando ela abandonou a própria casa ou cuidando dela tanto como do marido, acreditando que desse sacrífico dependia a recuperação completa de Cadu.
A despeito de sua entrega, o afastamento do marido, a fuga do sono de seus olhos os deixou com um contorno de desgaste, conferindo-lhe um aspecto mais sofrido que dos internos da UTI. Todo cansaço começou a pesar, ainda assim, ela resistiu até a exaustão – infelizmente, nosso corpo não aguenta tanto quanto nosso espírito está disposto a fazer.
Mesmo possuindo um desejo ardente de continuar, por funcionar acima dos limites, seu corpo dava sinais de decadência [Mateus 26.41] e uma solidão, de medidas desproporcionais, preencheu o espaço físico disponível no quarto 705. Lourdes se viu abandonada no universo [Mateus 27.46]. Atirando-se na poltrona, pegou a mão de Cadu e começou a falar sobre a aflição, seu desgaste e a amargura dos últimos dias.
— A mãe não se arrepende de nada e faria tudo de novo, mas tá difícil, Cadu. – O rosto pendia enquanto se confessava.
Parte do peso era desgaste físico, a outra se dava pela pressão, advinda de quem dizia não valer a pena insistir numa causa perdida, pra se conformar e parar beirar os limites da insanidade – o amor é um pouco louco, pois não busca sentido na lógica, mas em sua inconsequente entrega [João 3.16]. Claro que nem todos os julgamentos eram diretos, a maioria não passava de sussurro ouvidos na rua ou que adentravam as brechas do quarto 705, tornando-a mais persistente nos cuidados.
“Infelizmente, nosso corpo não aguenta tanto quanto nosso espírito está disposto a fazer.”
Ainda que carregasse um fardo além do que podia suportar, tomou a responsabilidade pra si por não achar certo dividi-la com ninguém, nem o esposo. Toda compreensão e paciência de Marcos diante do abandono trouxe uma cobrança – mesmo sem ele nada dizer – ela se viu falhando em fazer o filho melhorar, nem assim podia desistir porque não sabia quanto tempo seria necessário pra isso, o que fez um peso lhe esmagar a alma.
— Como gostaria que isso terminasse, Cadu! – Ela soluçou, só aí se deu conta que chorava. – Mamãe não sabe até quando vai aguentar… – Antes de continuar, um desespero lhe furtou as palavras.
Erguendo os olhos, viu o monitor multiparâmetro, que registrava as batidas cardíacas num gráfico de linhas ascendentes e descendentes, se converter numa reta contínua.
— Filho!? – Ela levantou assustada.
Ligeira, pôs o ouvido no peito de Cadu, onde tantas vezes auscultou em busca de chiado, mas o espaço que antes cabia em sua mão aumentara em tamanho e musculatura e agora expunha uma situação nunca alcançada na infância, porém, a vida ainda soprava ali. Tendo recebido o aviso de parada cardiorrespiratória, os enfermeiros surgiram e ela precisou sair pro protocolo de ressuscitação ser realizado.
Sem noção se aquilo era real ou se tudo não passava de um pesadelo, Lourdes se obediente, até olhar pra trás e voltar correndo, antes de se agarrar ao filho, a tomaram pelos braços e ela foi arrastada pra fora. Como restava pouco tempo pro processo de reanimação a medida bruta foi adotada.
— Dona Lourdes, a gente precisa fazer isso agora ou podemos perder o Cadu de vez. – Dolores tentou apelar, mas o olhar e sua agitação, entregou que ela não agia de forma racional.
Desesperada, Lourdes berrou pra ser soltou e resistiu tanto que precisou de três enfermeiros pra ser retirada, ainda assim se debatia pra escapar, a custa de deixar os baços roxos.
— Cadu, não abandona a mamãe, me perdoa! – Com o coração disparado, ela gritou ao conseguir se desvencilhar. Talvez o volume da voz fosse suficiente pra alcançar a outra dimensão e impedi-lo de partir, mas era tarde, os aparelhos estavam sendo desligados. Antes de tentar salvá-lo a visão distorceu, o corpo ficou mole e, sem controle algum sobre si, foi colocada numa cadeira de rodas.
O ambiente escureceu e a iluminação artificial adquiriu um tom amarelado de doença, bruxuleante e instável a luz ficou piscando, e ante seus olhos o horror se mostrou.
Feito bezerro recém-imolado Cadu era empurrado numa maca por pessoas de rosto coberto por crânio de boi, usando batina fechada até o pescoço, com luvas e botas negras – confeccionadas em couro de bode. Ao passarem por Lourdes, a mão do garoto escorregou pra fora da mortalha negra e o escorreu em abundância.
Sem ter como deter aquilo porque o corpo não se movia, ela gritou com força pra pararem o ritual macabro, mas ninguém se importou, obrigando-a a ver o filho ser levado pra longe, enquanto um rastro vermelho-enegrecido ficava pra trás.
Badaladas frias e cruéis soaram, enchendo o ar de terror e da certeza de não haver mais volta. Seres trajados no mesmo estilo aterrador, mas de cartola e máscara com um nariz alongado feito bico de lentes escuras e arredondadas – a encobrir um olhar gélido que arrepiava só de encararem alguém – chegaram, trazendo o fétido vento da morte, cada um munido de bengala negra.
No peito e costas deles, cinco símbolos ardiam, enquanto sangue escorria por baixo dos óculos. Numa urgência inquietante, Lourdes se esforçou pra entender o significado dos caracteres estranhos, mas as conexões neurais não conseguiram associar aquilo a qualquer lembrança.
“Doar órgãos é semear oportunidades, seja prolongando o tempo ou proporcionando condições melhores, é se compadecer de quem anseia por vida.”
Após uma varredura pela mente, encontrou um vazio congelante que por pouco não a devora, fazendo-se esquecer de si mesma. Nesse instante a atenção se voltou pra um dos seres que se aproximou na direção dela, deixando-a desesperada.
“Será que vão me eliminar porque vi tudo?” – As palavras ecoaram na cabeça, enquanto a testa estava embebida de suor.
O ser se aproximava a saltos, contudo, sem fazer movimento algum, a cada piscada da luz ele aparecia mais perto, enchendo o ar com uma respiração carregada de sons ofegantes e intenções cruéis. Lourdes delirava de medo, febril os olhos reviravam, sem querer registar o que estava pra acontecer.
Felizmente, pra inviolabilidade de sua sanidade, quando a coisa estava próxima demais, não foi pra cima dela, seguiu pra sua esquerda. Após o corpo retornar do estado de choque que quase a leva a loucura, Lourdes conseguiu virar o pescoço e ver Marcos um pouco mais afastado, de costas pra ela.
— Não, neguinho! Se afasta, essa coisa é má! – Lourdes avisou, embora falasse como bêbada. Ela se quer conseguiu apontar o dedo pra condenar a figura nefasta. Mesmo com os rogos, Marcos estendeu a mão e cumprimentou a figura a parabenizá-lo, então os seres se afastaram, carregando maletas negras de onde escorria sangue num fluxo interminável.
Urgia a necessidade de saber quem eram os seres antes de se mandarem. Porém, o branco da memória cresceu sendo preenchido de escuridão e antes de tudo desaparecer nas trevas, Marcos se virou, exibindo um sorriso que ia até à orelha e a visão dela apagou.
“O amor é um pouco louco, pois não busca sentido na lógica, mas em sua inconsequente entrega.”
Composta de algo ruim, uma neblina escapou pela brecha inferior da porta, se espalhando pelo quarto, embora soubesse precisar escapar com urgência, o estado de paralisia impedia Lourdes de se mover. Fazendo força pra mover os dedos dos pés e mãos, tentou despertar, mas a fumaça já estava sobre a cama, ao tocar sua pele, fez um frio mortal lhe doeu os ossos, fazendo-a ter certeza de quem eram os seres.
Avançando sobre si a neblina a cobriu, roubando o resto de calor em seu corpo, então entrou pelos ouvidos, nariz e boca, em velocidade incrível. Lourdes só conseguiu acordar após o último rastro de fumaça entrar em si. Despertou puxando o máximo de ar que os pulmões conseguiam reter.
— Não, Marcos, lembrei quem são essas coisas! – Ela berrou.
#proximoepisodio
Despertando de um terrível pesadelo, Lourdes procura se localizar na escuridão, mas despertar pra realidade pode ser revoltante. Algo sinistro parecia rondar o hospital e ela tenta alertar o marido sobre uma trama nefasta.
Conheça a história com acontecimentos inéditos e um episódio extra!
Ósculos e amplexos,
Autor de Interrompido – A curva no vale da sombra da morte, é um cara apaixonado total por música, se deixar não faz nada sem uma boa trilha sonora. Bota em suas histórias um pouco de seus amores e do que sua visão inversível o permite enxergar da vida.