#episodioanterior
O médico dá uma notícia desagradável pro casal e Lourdes se recusa a aceitar a sentença, mas o tempo passa sem sinal de melhora. Não sendo isso suficiente, ela precisou lidar com algo em todos os jornais que revira seu estômago.
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Doutor Pedro Gonzaga foi pego total de surpresa – devido à forma que a porta de sua sala foi aberta uma pequena descarga elétrica até se espalhou pelo corpo, ainda mais por ver quem realizou tal ato.
— Me perdoa chegar assim, doutor, é que tenho algo importante pra dizer.
— Tudo bem, dona Lourdes. – Antes a mudança no semblante dela, a irritação por ser flagrado num momento privado desapareceu e a convidou pra entrar.
Aproveitando a atenção, ela se ofereceu pra ajudar nos cuidados do filho, o médico lembrou que o hospital contava com os melhores profissionais e que a política interna não permitia isso.
Incisiva, ela afirmou precisar fazer isso pelo Cadu e por si mesma, tamanha foi sua persuasão que dobrou doutor Adriano da Cunha, conseguindo a autorização desejada – o que não tinha de tamanho lhe sobrava de persistência.
Buscando ser mais útil, ao invés de apenas zelar pelo filho, lia e assistia tudo que pudesse ser útil em casa ou durante o trajeto de deslocamento, também encostou nas enfermeiras pra aprender práticas mais efetivas – a ponto de se tornar uma das “estagiárias” mais engajadas ali.
Daquele momento em diante, como se nem merecessem registro, em sua corrida o tempo arrancou com violência os dias do calendário; o que podia não ser ruim, dado que o sofrimento contido neles seria intenso caso o tempo não fosse abreviado [Mateus 24.22].
“As pessoas não precisam da certeza de uma ciência falha e mutável, mas de D-s.”
Mesmo com outros pacientes sob a tutela, comovido pela garra e desgaste de uma mãe em nome do amor, doutor Pedro Gonzaga se apegou ao paciente 237 a ponto de mudar a mentalidade, concluindo que as pessoas não precisam da certeza de uma ciência falha e mutável, mas de D-s. E ante um quadro com chances remotas da melhora acontecer e de seu ateísmo rogou pela melhora de Cadu; meses depois ele chamou os pais do garoto pra uma conversa onde questionou se Cadu tinha um último desejo.
— Tinha… – Marcos começou.
— O de continuar vivo! – Lourdes cortou o marido. – Porque essa pergunta, doutor? – Ela estava séria.
— Não houve progressão no estado do Cadu e as probabilidades apontam morte encefálica. – Ele usou a deixa pra desenganar os dois. – Mediante a isso, gostaria de sugerir a vocês…
— Desligar os aparelhos? – Lourdes se adiantou. – NUNCA! Só D-s tem direito sobre a vida! – Ela frisou o direito inequívoco de D-s [1 Samuel 2.6].
— Nisso concordo com minha esposa. – Marcos fez coro, com o semblante preocupado.
— Antes ter meu filho vegetando e vivo, do que nunca mais sentir o calor dele em meus braços.
— Compreendo e jamais proporia nada desse tipo a vocês! – O médico os acalmou com isso.
— Então, o que o senhor queria dizer? – Lourdes se preocupou.
— Sei que falar de morte não é agradável, ainda mais num momento desses, mas vocês já pensaram no que fazer caso o Cadu nos deixe? – O médico tentou ser o mais delicado possível.
“Misericórdia é tomar a angústia alheia e se responsabilizar por ela, tendo os mesmos sentimentos, mas enxergando além da aflição.”
— Não estou gostando do rumo dessa papo! – Ela avisou, já se impacientando.
— Gostaria apenas de propor uma conversa com um agente do CNCDO, afinal, seria bom saber que é possível doar os órgãos do Cadu e com isso…
— Doutor, meu filho tá vivo! Não quero ter essa conversa! – Alterada, ela interrompeu.
— Tudo bem, respeito a opinião de vocês! Perdoem se minha sugestão pareceu ofensiva, não foi essa a intenção. – O médico suspirou, deixando transparecer intenções puras, mas o choque de Lourdes a fez não ver com bons olhos a ideia ou perceber sua tentativa em reduzir a dimensão de uma dor que também se tornara sua; misericórdia é tomar a angústia alheia e se responsabilizar por ela, tendo os mesmos sentimentos, mas enxergando além da aflição.
— Sinto muito, doutor, temos que ir! – Lourdes levantou bruscamente, puxando Marcos.
— Não quero apressar as coisas, mas se optarem por isso seria bom deixar tudo certo o mais rápido possível. – O médico argumentou antes da porta se fechar.
Incomodada com a proposta indecente, Lourdes seguiu pra casa com o marido pra arejar a cabeça. A sugestão não lhe agradou nada porque ouvir aquilo foi o mesmo que participar de uma seção onde se evocou a morte pra vir buscar seu filho.
— Ele só pode estar louco! – Ela disparou.
— Querida, ele só disse aquilo…
— Quer dizer que você concorda, Marcos Viana Mendes? – Ela encarou o marido chocada. – Você viu sobre o que aquele açougueiro queria falar, meu filho nem morreu e já querem esquartejá-lo!
— Não é isso querida! Acho que a gente devia, pelo menos, ouvir o que o pessoal tem a dizer.
“Mais conhecimento implica em maior responsabilidade, não em novas formas de se obter vantagens.”
— Não quero ouvir nada! Eles querem desmontar o Cadu igual Lego, como se nosso filho fosse apenas um objeto, não o ser incrível que saiu de mim. – As lágrimas brotaram. – Tenho cuidado todos esses meses dele e você precisa ver como nosso Cadu tá, ele percebe meu empenho e tá lutando pra voltar pra gente. – Um sorriso se formou no rosto de Lourdes, enternecido, Marcos estendeu o braço, puxando-a pra perto e lhe deu um beijo, sem perder a atenção na estrada.
— Mas, querida, fizemos uma promessa ao Cadu. – Ele relembrou a esposa [Salmos 15.4].
— Ele pode ter feito um pedido, mas quem decide agora é a gente e não quero ver meu filho despedaçado. É isso!
— Nós prometemos. – Ele reforçou [Eclesiastes 5.4-5], assim que desceram do carro.
— Sei bem, mas… preciso pensar, neguinho, preciso mesmo. – Ela abraçou-lhe o pescoço chorando copiosamente.
— Tudo bem, querida, me perdoe! – Ele tentou se retratar pela insistência. – Agora vamos entrar que você precisa de descanso.
Exausta, Lourdes se deixou conduzir pra dentro, ela precisava de uma pausa, a dedicação somada a conversa com o médico foi demais e seu corpo sentiu o peso do estresse físico e emocional.
— TOC! TOC! TOC! – A porta se abriu logo após as batidas, ao virar a cabeça Lourdes viu o doutor Pedro Gonzaga.
— Licença, posso entrar?
— Claro doutor, como não? – Ela disse imóvel, enquanto segurava a mão de Cadu.
— Gostaria de falar algo importante.
— Se é sobre… – Pronta pra deixar o médico falando com as paredes, foi se levantando.
— É sobre o pedido do seu filho…
“Perdoar é entregar a si mesmo a chave da liberdade.”
— Não acredito que o Marcos falou disso pro senhor! – Lourdes ficou chocada por ser traída dessa forma pelo próprio marido.
— Dona Lurdes, pode até não ser na mesma escala, mas compreendo sua dor. Existe uma imensa fila de pessoas precisando de transplante, onde algumas acabam vindo a óbito devido à demora, por isso doar órgãos é tão importante; além disso, o Cadu pode salvar até sete vidas, o que seria um grande ato de generosidade e amor ao próximo.
— E meu filho vai ficar todo despedaçado? – Enquanto ouvia, Lourdes permaneceu de cabeça baixa, ao levantá-la estava com o rosto banhado.
— Isso não vai acontecer! Nove em cada dez pessoas têm o mesmo receio que a senhora até entender que a cirurgia de retirada dos órgãos reconstitui o corpo após finalizar o processo. – Ouvir aquilo a tranquilizou. – O corpo do Cadu ficará como antes, sem nada evidente, a senhora vai até poder fazer um funeral normal.
— Funeral nada! – A palavra serviu de gatilho pra fazê-la se alterar. – Meu filho ainda está vivo, o senhor não percebe?
— Sim, mas ele… – O médico tentou lembrar que Cadu podia ter uma morte cerebral a qualquer momento, razão pela qual precisavam estar preparados pra isso não invalidar a captação dos órgãos, porque o processo exigiria urgência.
— Chega, doutor! – Ela respirou fundo. – O senhor pode nos deixar a sós?
— Tudo bem, dona Lourdes! Peço apenas que considere a questão, já que esse era o desejo do Cadu.
Daquele ponto em diante a passagem dos dias se deu arrastada feito lesma, e nada da morte cerebral aparecer, de alguma forma o garoto seguia resistindo. Temendo uma eutanásia enquanto estivesse fora, Lourdes passou a ficar cada vez mais tempo na UTI. Tamanha dedicação exigia sair de casa mais cedo voltando a noite, o que exigiu abandonar as encomendas. Como os conhecidos não a viam em qualquer lugar, acreditaram que também estivesse internada – o que não deixava de ser verdade.
Além de Marcos, o médico e as enfermeiras aconselhando pra evitar desgaste, Fábio e Beatriz tentaram convencê-la, mas Lourdes se mostrou irredutível. Após ver que a insistência não demovia a mãe de seu zelo, geral deixou de lembrar pra ir mais devagar, embora ela estivesse visivelmente exaurida. Uma das coisas que pesava bastante era o fato do médico insistir no assunto da doação; bastava o ver pra cortá-lo, como sabia do que se tratava não lhe dava a menor moral, isso quando não o largava falando só.
A insistência gerou desconfiança, algo doutor Pedro Gonzaga devia ganhar pra isso. Cansada do assunto, ela aproveitou o conhecimento agora possuído pra mudar de médico e o denunciou, ao conselho do hospital, sob acusação de quebra do juramento hipocrático, esquecendo que mais conhecimento implica em maior responsabilidade, não em novas formas de se obter vantagens.
Apesar de não obter o resultado desejado, isso manteve o médico mais distante, lhe dando alívio; aquele papo sugestionava não haver mais jeito pra Cadu e isso lhe causava angustia porque ela acreditava no contrário total. Mas quando conseguiu desligar a insistência de doutor Pedro Gonzaga, quem pesou no assunto foi o marido, dizendo ser preciso doarem os órgãos do filho.
— Mas que coisa, Marcos! Não bastava aquele médico me perturbando no hospital, agora você também, será que não posso ter descanso em minha própria casa?
— Amor, esse era o… – Ele começou, mas foi interrompido.
— Marcos, se você não quer me fazer ter um AVC, faz o favor de não tocar mais nesse assunto! Pode ser?
— Tudo bem, querida! – Ele se afastou.
Na companhia do silêncio, a respiração de Lourdes ficou menos densa, o sangue voltou ao fluxo rotineiro e ela se deu conta que fora enérgica sem necessidade, como se as palavras e o drama não fossem suficientes pra barrar o assunto proibido, e foi atrás do marido [Provérbios 15.1].
Marcos acabara de preparar café, naqueles dias frios nada melhor do que uma xícara da bebida revigorante servida quentinha. Lourdes o surpreendeu dando uma golada e aproveitou pra se desculpar pela forma bruta usada.
— Não tem problema, amor! Sei que isso ainda é difícil pra você. – Compreensivo, como de costume, Marcos soprou a fumaça que foi na direção de Lourdes, carregando o aroma do café fresquinho.
— Acho que também vou querer um pouco, neguinho! – Lourdes ficou atiçada com o aroma e pediu animada.
O esposo pegou uma xícara, encheu o com o líquido e entregou pra ela que deu uma boa golada, o café estava quente do jeito que Lourdes gostava e logo a bebida chegou ao organismo a deixou desperta, tanto que notou que Marcos diferente, suas passadas pareciam destoar, assim como os gestos e o olhar, ela questionou se estava tudo bem e ele insistiu que sim. Mas ela notou um peso a lhe tornar os passos mais lentos, bem como sua expressão de cansaço; até a fumaça de sua xícara acentuava a separação entre eles.
Acostumada a ter no esposo seu porto seguro, tal percepção se mostrou estranha, Marcos sempre foi reservado quanto aos sentimentos, só que a reticência não significava estar conformado a ideia de perder o filho. Antes o silêncio era sua forma de demonstrar o quanto sofria, ele tanto havia desejado aquele herdeiro que não podia ser substituído.
Dando-se conta disso, Lourdes se aproximou do marido e buscando a verdade em seus olhos pediu perdão por estar tão mergulhada na própria dor a ponto de não se dar conta do quanto ele também vinha sofrendo.
— Querida, isso não é problema! Quando casei com você foi pra te fazer feliz, não o contrário. Minha promessa foi de estar contigo tanto na felicidade, quanto na dor.
— Neguinho… – Diante de palavras carregadas de tamanho carinho, ela até ficou sem jeito. – …você pode falar comigo, dizer o que sente. – Ela insistiu, mas o esposo permaneceu de cabeça baixa, sem ter como encará-la.
#proximoepisodio
Lourdes percebe que a angústia de Marcos não possui relação apenas com Cadu, mas ele prefere o silêncio a perder o controle das emoções e quando consegue falar, ela percebe a imensidão assustadora do peso que ele vinha carregando.
Conheça a história com acontecimentos inéditos e um episódio extra!
Ósculos e amplexos,
Autor de Interrompido – A curva no vale da sombra da morte, é um cara apaixonado total por música, se deixar não faz nada sem uma boa trilha sonora. Bota em suas histórias um pouco de seus amores e do que sua visão inversível o permite enxergar da vida.