Interrompido – Notícia ruim voa (Episódio 1)

Interrompido – Notícia ruim voa (Episódio 01)

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Luan não conseguia dormir aquela noite, podia ser pelo vento frio insistente a entrar pelas frestas das janelas e porta – o lençol não ajudava muito – mas o maior problema era a cabeça que não parava de girar; isso desde que dera entrada ali. Pensar no acontecido só fazia a ferida acentuar, nem tanto nas pernas, onde sofreu o maior dano – ele nem as sentia – mas onde apenas as palavras podiam alcançar.

Apesar dos flashes recordados do acidente, as memórias vinham a custo de um incômodo que mesmo sendo um excelente escritor não tinha como descrever com exatidão o que era. Só que o problema não começara uma semana atrás, fazia tempo que ele não andava legal – talvez mais até do que pudesse supor.

Os pais se divorciaram quando tinha cinco anos, a mãe se foi porque, além de aguentar ciúmes, passou a ser agredida fisicamente, apesar do maior apegado a ela, a guarda do garoto, e das irmãs, ficou a cargo do pai devido as suas melhores condições de vida.

Só que melhores condições, necessariamente, não implicam numa criação com mais amor, por ser pequeno e o pai cuidar do comércio de manhã até a noite, Luan foi criado por uma desconhecida a qual chamava de babá, ela até cuidou bem dele, mas nunca pode lhe dar o carinho que necessitado.

Quando ficou grande suficiente, a coisa ficou pior, além de não ter mais a babá e o pai continuar fora o tempo todo, ele era pirralho demais pra irmã que estava na adolescência e só queria curtir sem fedelho no pé.

“Melhores condições, necessariamente, não implicam numa criação com mais amor.”

Assim Luan se criou sozinho, se apegando as boas amizades. É fato que o pai procurava prover tudo, pagando as melhores instituições, ainda assim faltava algo que ele não sabia dizer – causado pela dificuldade de expressar os próprios sentimentos.

Mesmo passando a maior parte da existência com o pai, não existia proximidade, eles se quer tinham mesmo uma relação além dos laços de sangue. Não por falta de tentativas de ambos os lados, ainda assim os dois custavam a se entender.

Boa parte das vezes eles discutiam por bobagens, qualquer coisa era motivo pra desentendimentos, algo que piorou depois do isolamento causado pela pandemia. Sem poderem sair, o maior tempo de convivência aumentou o atrito entre eles, inclusive com a irmã – a mais acabou se casando.

Contornando isso, Luan passava boa parte do dia escrevendo no quarto, mudou os horários das refeições pra não ocuparem o mesmo espaço físico. Até o isolamento impactar na realização do trabalho, então precisou encerrar a escrita dos roteiros de novos episódios, já que as gravações da série foram paralisadas.

Sem ter o que lhe manter ocupado e pra evitar atritos ao esbarrar no corredor com o pai ou a irmã, Luan começou a dormir cada vez mais tarde, nisso foi percebendo o quão produtivo era na madrugada. Ele ficava iluminado, enquanto a inspiração o instigava até o amanhecer, daí passou a trocar o dia pela noite.

Como consequência, passava a tarde dormindo, até o pai invadir o quarto, dizendo que não era certo dormir o dia inteiro. Afrontoso, Luan revidava e eles começavam a discutir. Ele até tentou trancar a porta, mas as batidas incomodavam mais, o pior nesse cenário é que nem conseguia contato com a mãe, sua amiga e maior confidente.

“Existe fantasma que a gente só exorciza quando está cara a cara.”

Somando isso as contantes cobranças do pai, insistindo em colocar a irmã num patamar superior, a elogiando, enquanto nada que ele fazia parecia certo – e ainda aguentar as ironias – começou a causar um grande incomodo, até aquilo acontecer… O acender das luzes lhe interrompeu o fluxo de pensamento, mas Luan não abriu os olhos até a persiana ser puxada.

— Bom dia, dona Socorro!

— Bom dia, menino Luan! Que você está fazendo acordado uma hora dessas, vai dormir, menino.

— Mal consegui dormir. – Ele suspirou.

— São os pesadelos de novo? – Socorro fez cara de preocupada.

— Tá sendo embaçado dormir.

— Vou te administrar um remédio pra ajudar nisso.

— Agradece, melhor não. Existe fantasma que a gente só exorciza quando está cara a cara. – E aproveitou pra mudar de assunto. – Tão cedo e a senhora já tá limpando minhas sujeiras? Acho que incomodo bastante, né?

— Nunca, menino Luan, você é um fofo! – Socorro sorriu.

— Ahh! Obrigado por tudo. – Ele ficou sem jeito.

— Você sabe que isso é meu trabalho.

— Pois acho que a senhora faz mais que a obrigação. É sempre tão carinhosa, às vezes mais até que minha família. – Ele acabou deixando escapar, enquanto suspirava.

— Isso é amor pelo que se faz, mas você devia ter um pouco de paciência com eles, afinal, essa pandemia com quarentena forçada tá fazendo tudo mundo pirar. O número de casos e mortes só aumenta a cada dia. A gente mal consegue descansar.

— Quanto tempo a senhora tá trampando direto?

— Umas sessenta horas.

“O segredo de vencer a dificuldade é fazer o que se gosta, isso faz com que o peso diminua bastante.”

— Como a senhora aguenta tudo isso? – Luan até levantou, impressionado.

— O ritmo é intenso, a gente mal consegue parar, então ainda não deu pra sentir o cansaço, mas o segredo de vencer a dificuldade é fazer o que se gosta, isso faz com que o peso diminua bastante.

— Ainda assim deve ser puxado, né?

— Bastante!

Socorro comentou que enfermagem é uma das únicas categorias sem piso salarial ou regulamentação de carga horária, gerando jornadas duplas, até tripla, que ocasionam erros e acidentes devido ao desgaste. Apesar da importância, a categoria nunca recebeu a devida atenção até a pandemia que fez o ministério da saúde valorizar os profissionais, inclusive os estudantes da área.

Mesmo com o comentário, Socorro não deixou esboçar pesar, como se nem aquilo fosse motivo suficiente pra causar descontentamento por escolhido seguir na área da saúde. Ela disse que até uma crise mundial tinha o poder trazer coisas boas [Romanos 8.28], afinal, as pessoas têm a chance de se tornarem mais humanas.

— Então, o descanso hoje vai ser mais que merecido, dona Socorro.

— Opa! Bastante! – A enfermeira sorriu.

— E a senhora não tem medo de se contagiar?

— Não! – A resposta saiu tranquilamente. – Esse é um risco que a gente corre não só em tempos de coronavírus, mas todos os dias, por isso é preciso cuidado. Pior que o desgaste e o risco que provam que somos um recurso ilimitado, é ficar isolada até mesmo em casa.

Antes de Luan ter a oportunidade de perguntar da família dela, Socorro disse que só passara pra ver se estava tudo bem, antes de pegar folga, ao confirmar que sim, ela se despediu e saiu carregando o papagaio.

Aos poucos o sol se achegou ao leito do garoto e ele foi ao encontro de um sono profundo, gostoso e tranquilo. Desde que dera entrada no hospital, em condições complicadas – as quais nem gostava de lembrar e que se repetiam nos pesadelos e flashes durante a insônia – Socorro fez a maior diferença.

“Até uma crise mundial tem o poder trazer coisas boas, afinal, as pessoas têm a chance de se tornar mais humanas.”

Ao vê-la pela primeira vez, sua luz inundou o ambiente, fazendo desaparecer medo e dor, até restar o conforto proporcionado pelas mãos daquele anjo que aplicou a anestesia. Se isso foi apenas impressão, logo percebeu o cuidado da enfermeira que mesmo estando no corre, fazia questão de passar pra saber como o menino Luan estava – ele achava fofo a ouvir chamá-lo com seu jeitinho carinhoso.

Aproveitando a Anchieta deserta, a R 1250 GS – um misto de CG e tanque de guerra – voava rumo a Santos. O prazer de conduzir uma BMW com maior potência de 136 cv, ao mesmo tempo que proporcionava suavidade, despertou o desejo de ultrapassar limites; então seguiu aumentando a velocidade, talvez assim pudesse fugir das lágrimas que escorriam, se espalhando capacete adentro. A velocidade fez ele e máquina entrar em sintonia com à terra, aproveitando as pedaleiras, ficou em pé, a sensação foi do corpo se fundir ao sistema de suspensão da moto.

A BMW planava, vendo a acentuada e extensa Curva da Onça se aproximar, ele apenas sentou, sem reduzir a velocidade; a capacidade de fazer curvas e a linearidade do motor, aliadas aos controles eletrônicos tornavam quase impossível cometer erros – caso desse vacilo a moto poderia corrigi-lo.

Quando o ponteiro estava pra marcar a velocidade máxima suportada – 168 km/h – do nada surge um veículo, nem adiantou acionar os freios ABS, vindo na contramão, o carro se chocou com força contra a moto.

Luan só ouviu o barulho de pneu cantando e um estrondo, cacos de vidro brilharam em sua direção; com o impacto a moto voou, indo parar metros à frente, daí empinou, fazendo-o escorregar e caiu sobre suas pernas. Em seguida, ela era empurrado hospital adentro, enquanto berrava tamanho o desespero e a dor.

— AH! – Suando frio, Luan despertou e tocou as pernas, elas continuavam insensíveis a estímulos. – Foi só um pesadelo. – Ele tentou respirar com calma, ao se dar conta que por mais real que a experiência tivesse sido, não passava de um sonho ruim.

Infelizmente, aquilo não se tratava apenas de uma produção de sua imaginação terrivelmente fértil, mas de registros que insistiam assombrá-lo nos momentos de fragilidade. Se ele não tivesse saído de casa daquele jeito, talvez as coisas teriam diferido e o acidente podia nem rolar, mas como reagir a uma notícia daquelas?

Prestes a explodir

Fazia tempo que Luan estava prestes a explodir, ele sonhara diversas vezes perdendo a compostura, a descontar a raiva em qualquer em quem surgisse pela frente, mas era disciplinado e contido demais pra isso, esse era um dos benefícios – ou nem tanto assim – da cultura oriental.

Podia ser até que tivesse resistido por mais tempo, mas assim que descobriu o motivo da falta de contato com a mãe se deu porque ela contraiu COVID-19 e precisou ficar isolada no apê em Santos, onde faleceu ele explodiu.

— Não pode ser! – Luan ficou histérico. – E saiu correndo. – Nada disso é verdade!

— Onde você vai? – Assustado, o pai quis saber ao vê-lo ir pra garagem.

Como resposta ouviu a BMW disparar com tudo rua afora, Luan se quer dignou a respondê-lo, o rosto estava embebido em lágrimas. Ele não acreditava que custou tanto conseguir contato com a mãe, enquanto a informação de seu falecimento chegou tão rápido; ele estava pasmo como carregada pelas asas da morte notícia ruim voa.

— Queria que tudo fosse só um pesadelo! – Ele estava arfante, enquanto as lágrimas caíam descontroladas, brilhando na escuridão.

Os dias seguiram na mesma, sem Luan descansar direito; se dormia era assaltado pelo pesadelo, se acordado os pensamentos o tomavam, feito flashes na escuridão criavam imagens ainda mais assustadoras. Desistindo de ficar entre pesadelos e pensamentos assombrados, com custo passou pra cadeira de rodas e foi de tour pelo hospital.

Reparando no ambiente iluminado que nunca se parava deu conta que as noites no quarto, onde Socorro esteve longe, eram ainda mais escuras. Ele estava levando numa boa a ausência dela, porque sabia o quanto a enfermeira merecia descansar, mas quando a falta da luz dela cedia espaço pras trevas intensificarem, uma saudade inexplicável o tomou – como ele podia ter criado um vínculo daqueles por alguém tão depressa, quando nem mesmo os anos desenvolveram tamanho afeto pelo pai?

Aproveitando que o sono estava distante, procurou saber com a recepcionista quando Socorro voltaria, e ouviu que ela pegara uma semana. A enfermeira já folgara outras vezes desde a sua chegada, mas aquela era a primeira que isso acontecia por um longo período.

Fazer sorrir

Algo que ele percebeu foi que mesmo a recepcionista aparentar desânimo, devido ao cansaço, bastou ouvir o nome de Socorro e sua feição se iluminou na mesma hora. Tudo que Luan conseguiu pensar foi no quanto a enfermeira era especial não apenas pra si, mas pra geral.

Mesmo sendo roteirista, estava se formando em jornalismo, então seu senso investigativo ativou e ele resolveu investigar Socorro, sentindo existir alguma história incrível por trás daquela mulher tão especial; algo que passou a fazer durante as noites e madrugadas, assim, mantinha a mente sem espaço pros terrores noturnos.

O descanso ficou pras manhãs e tardes; não tinha nada de interessante pra assistir mesmo, todo lugar só noticiava as causas da pandemia. Ele sabia que toda essa atenção não era preocupação em manter a população informada, mas em conservar a audiência enquanto seguiam com o marketing de terror.

E quanto maior o tamanho da emissora, crescia o poder de influência sobre a cultura, política e a opinião pública – bem como as controvérsias, como interferência nas eleições e o uso de informações incorretas e fora de contexto editadas pra manipular a sociedade.

A investigação o levou a descobrir que Socorro estava ali há vários anos e desde sua chegada foi empenhada e dedicada, tratando a todos com carinho, sem que um dia se quer diferir disso. A enfermeira se tornara a alma do hospital por inspirar e contagiar a todos com a sua luz.

Como os demais profissionais não dispunham de muito tempo pra conversas, Luan os acompanhava enquanto ouvia histórias que o deixaram mais encantado. Só que mesmo com tanta coisa boa, os colegas de Socorro não dispunham de informações pessoais e quem pareceu saber de algo mudou de assunto, sem nada comentar.

Luan, tentou ter acesso ao registro de funcionários, mas não obteve sucesso, as informações eram confidenciais e só podiam ser acessados mediante autorização da diretoria ou de um mandado judicial.

— Por que cê não pergunta diretamente pra ela? – O responsável pelo RH aconselhou.

Restava apenas um dia pra volta de Socorro, como pra falar com ela ele precisava estar acordado durante o dia, resolveu dormir antes das três da madrugada. Antes disso tentou descolar algo na web, pra sua decepção não achou nada. Maria do Socorro é um nome comum e sem o sobrenome da enfermeira não a localizou na infinidade de informações, mesmo procurando até tombar de cansaço.

Incontáveis pedacinhos de vidro partido voaram cortantes em sua direção, ossos foram expostos. Sangue, muito sangue, saía aos esguichos, tudo que ele conseguiu ouvir foi o som de pneu cantando, até ser interrompido por um estrondo e um terrível grito de dor.

— Não temerás espanto noturno, nem seta que voe de dia, nem peste que ande na escuridão, nem mortandade que assole ao meio-dia. – Sussurrou uma voz suave, em meio ao vale da sombra da morte que fez tudo silenciar em calmaria.


#proximoepisodio

Lutando pra não se perder na própria escuridão, uma voz afasta as trevas e faz tudo silenciar, apesar de Luan não encontrar quem fez isso, percebe as lembranças obscurecidas pela névoa da culpa devido aos erros cometidos e por sua ingratidão.

Conheça a história com acontecimentos inéditos e um episódio extra!

Ósculos e amplexos,

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