“Na essência de cada pessoa existe uma história incrível, só esperando ser contada.”
Mishael Mendes, Interrompido – A curva no vale da sombra da morte
Em volta da fogueira
Desde que a humanidade surgiu, temos a necessidade de nos comunicar e criar conexões, essa característica implantada em nós com maior refinamento [Gênesis 1.26-27], é o que nos diferencia dos demais animais. No começo essa comunicação acontecia em sentido bidirecional – de ambos os lados – nos eixos x e y, ou seja, tanto horizontal quanto vertical; quando começava a anoitecer, D-s vinha compartilhar histórias da criação – como explico em “O Segredo das Eras – Despertar” – e ouvir os humanos [Gênesis 3.8]. Após a queda, esse contato passou a acontecer quase que exclusivamente em nível horizontal, assim, as pessoas passaram a se reunir em volta de fogueiras após um dia de trabalho, dedicando um momento exclusivo pra comunicação, enquanto ouviam e contavam histórias que explicavam e entretinham.
Essa tradição traz algumas observações importantes, o primeiro é que se reunir quando escurece permite focar a atenção na comunicação, já que as demais distrações ficam silenciadas e envolvidas pelo manto da escuridão – algo usado até hoje no cinema pra capturar nossa total atenção pros filmes. Outro detalhe é o fogo utilizado, além de aquecer e iluminar o ambiente, onde se encontravam os contadores e ouvintes, suas chamas tentavam reproduzir a presença de D-s – daí o sentido de purificação através do fogo [Números 31.23] e dele ter sido usado como uma das formas de condenação na idade das trevas.
É preciso apenas crer
A origem comum das explicações faz entender a necessidade humana de buscar o sentido da existência das coisas [Colossenses 1.16] – algo percebido mesmo em nações diferentes e isoladas umas das outras. Também esclarece o paralelo entre as descrições do princípio feitas por Moisés e as dos povos e religiões antigas. Não houve plágio, apenas um início comum que acabou distorcendo conforme repassado – feito telefone sem fio – interferências essas que Moisés tratou de excluir de sua narrativa a voltando pra fonte de todas as coisas [João 1.3].
É que sem ter quem lhes explicasse as origens, as pessoas passaram a usar a percepção – que também sofreu interferências – pra dar ordem e sentido ao que causava fascínio. Até a racionalização se voltar pra si mesma – num movimento que ficou conhecido pelo amor a sabedoria ou filosofia, do grego philos, “amor amigo”, e sofos, “sabedoria, conhecimento” – e passar a ver o mundo e a existência rebaixada a uma projeção de sua insignificância – como abordado aqui.
Pensadores, como Sócrates, Platão e Aristóteles, não buscavam destruir a essência ou duvidar de tudo, mas questionar o que era propagado e incentivar a busca além do superficial, ressignificando a existência e a baseando na profundidade, não no “acredito porque ouvi”. Razão por que suas reflexões os levaram mais perto de D-s – a ponto de influenciar os pais da teologia – como Epimênides, considerado profeta por Paulo [Tito 1.12], que acreditava em um único D-s, num tempo de politeísmo, e que não era possível conhecer certos mistérios divinos. Enquanto a cegueira da religião causou perseguição, suicídio por bomba e o enriquecimento ilícito através da exploração da fé – algo combatido desde os tempos dos profetas e até por Jesus, que só não virou lei por total falta de apoio; onde os enganos e mentiras “dão margem, razão aos ateus”, como lembra Leonardo Gonçalves em “Ele virá”.
Capturando tempestades
Por desconhecerem o conceito de luz, os povos antigos utilizavam algo próximo, como o fogo e a brasa, pra representá-la, bem como a energia e suas variantes. Por exemplo, ao combinar fogo com granizo [Salmos 148.8, 18.12] ou brasas e vivas [2 Samuel 22.13] o sentido era de raio. Até porque o entendimento da anergia e seus mistérios é recente e se tornou mais compreensível após a captura do raio, em 1752. Cinco vezes mais quente que a superfície do sol, um raio é poderoso suficiente pra fazer um DeLorean viajar de volta pro futuro, pelo menos segundo a cultura geek.
Embora a tradição de se reunir em volta da fogueira começou a reduzir após a invenção da lâmpada incandescente, em 1880, e o domínio da eletricidade que resultou na lâmpada elétrica, em 1910, ela ainda persiste em lugares mais campestres – e afastados da tecnologia e da “evolução” – onde é mantida viva por sertanejos ou tribos indígenas que se reúnem em volta do “fogo do conselho“. A tradição da fogueira também persiste em algumas celebrações enraizadas na cultura pop, como festas juninas e Ivana Kupala, ou mais modernas, como o festival Burning Man. Da mesma forma como a fogueira deixou de ser um símbolo presente, a comunicação foi se transformando através das eras, passando da oralidade, da contação de histórias pro registro da escrita, a narração em canções e livros, passando pelo teatro, pinturas, fotografia, quadrinhos, filmes, rádio, televisão e vídeos, até chegar as redes sociais.
Sebo nas canelas
Apesar de surgir como uma promessa de facilitar a comunicação, as redes sociais têm exercido efeito contrário. Por esse ser um meio relativamente novo, não há pesquisas suficientes pra estabelecer as consequências de seu uso prolongado. No entanto, alguns distúrbios já podem ser percebidos, como a sensação de inadequação e insegurança sobre a vida ou aparência, que causam ansiedade e medo irracional de ficar de fora das modinhas (FOMO), que vão minando a autoestima – como falado aqui. Além de aumentar o egoísmo e a depressão, sua exposição constante pode provocar automutilação e pensamentos suicidas.
Conectados 24h por dia, o tempo acaba por passar apressado, e correndo pra manter os prazos a gente cai no engano da multitarefa que mutila nossa atenção ao nos conectar com inúmeros estímulos. Dessa forma, nosso corpo fica ausente enquanto a mente acelera numa velocidade que não permite reter muita coisa. Sobrecarregados e no piloto automático, acabamos mais ouvindo que escutando, porque mesmo off-line a gente não desconecta de verdade; apenas deixamos as palavras passarem por nós, e o que pode ser importante acaba entrando por um ouvido e saindo pelo outro, sem mesmo ser notado.
A sutil arte de se desligar
Apesar de pequena, a diferença entre ouvir e escutar, causa um enorme impacto em nossas relações. Enquanto ouvir, do latim audire, significa perceber um som através do sistema auditivo; escutar, do latim auscultare, é “ouvir com cuidado, inclinar a orelha”. Ainda que a gente seja simpático, respondendo em sintonia com a pessoa, essa atitude não é suficiente. Como acontece com uma técnica da Programação Neurolinguística (PNL), bastante utilizada por coaches, vendedores e até tiktokers pra criar conexão e gerar engajamento: o rapport. Vindo do francês rapporter, “trazer de volta” ou “criar uma relação”, a técnica consiste em sintonizar a pessoa através de sorrisos, o uso de otimismo e paciência, do tratamento pelo nome e a busca de coisas em comum entre ambos.
Se aproveitando de nossa tendência em confiar em quem se parece conosco, o rapport agiliza o processo de conexão ao criar uma comunicação harmoniosa e cordial pro outro ficar mais receptivo e aberto pra interação, recebendo e trocando mais informações, com menos resistência. A partir dessa demonstração de interesse, sua necessidade de relacionamento é suprida e ele compra ou divulga o que é oferecido. Essa forma de sugestionar ou persuadir o outro é ensinado com eficácia por Dale Carnegie em “Como fazer amigos e influenciar pessoas” (“How to Win Friends and Influence People“, de 1936) – existe inclusive a versão atualizada: “Como fazer amigos e influenciar pessoas na era digital” (“How to Win Friends and Influence People in the Digital Age“, de 2011).
Tudo pode ser
Utilizar o rapport funciona real, explicando o sucesso de tantos vloggers e atores, que mesmo criando conexão instantânea com as pessoas através das telas são antipáticos total fora delas. O problema na técnica é que essas interações acontecem visando como objetivo obter algo do outro, não em experimentar uma conexão real que traga mudanças significativas e duradouras pra ambos os lados. Ainda mais quando a hiperatenção dissolve nossa atenção sólida e profunda pra alternarmos com rapidez entre diversas atividades e informações; fora os ruídos que disputam nossa atenção e aumentam o nível de distração.
Inquietos, a gente entra numa busca frenética por satisfação que possui baixa tolerância ao tédio, que prejudica e até inviabiliza a criatividade ao ponto de isolar cada vez mais das conexões reais e nos fazer sofrer de solidão mesmo cercados de pessoas – esse afastamento em nosso mundinho virtual pode até causar acidentes e mortes. A gente se pega numa feira social ocupados com a própria dor, onde cada um grita mais alto pra tentar ser ouvido – como abordado por aqui. Nessa constante alternância de foco não conseguimos escutar e prestar atenção, assim, acabamos por não demonstrar empatia com o outro.
Segura essa atenção
Considerada um aspecto da inteligência emocional, a empatia é uma habilidade socioemocional que consiste em perceber o estado do outro e se colocar no lugar dele, compartilhando de suas alegrias e dores [Romanos 12.15], e mantendo o respeito por seus sentimentos ao expressar solidariedade. Pra isso acontecer é necessário observar a pessoa, afinal, empatia não é uma emoção, mas um ímpeto gerado pela atenção que percebe seus sentimentos e ativa os neurônios espelho que o copiam e nos permite assumir a perspectiva do outro.
Ter empatia “ajuda a entender as perspectivas, necessidades e intenções dos outros”, conforme aponta o Greater Good Science Center, quanto mais alto seu nível, melhor funcionamos em sociedade e a construção de relações interpessoais são bem-sucedidas nos círculos sociais maiores e as relações mais satisfatórias, seja no trabalho ou no ambiente escolar e familiar, causando mudanças mais significativas que o uso da razão. Porém, é preciso lembrar que ao ser impactado pelo sentimento do outro, temos que controlar os nossos, caso isso não aconteça podemos reagir à sua dor como motivo, irritação ou um ataque.
A vida imita a arte
A palavra empatia surgiu em 1909 com psicólogo inglês Edward Tichener como empathy, formada a partir do grego empatheia, composta por en-, “em”, mais pathos, “emoção, sentimento”, pra traduzir o termo alemão einfuhlung, cujo sentido literal é sentir dentro; usada pela primeira vez pelo psicólogo alemão Theodor Lipps, em 1903. Em 1916 a filósofa e psicóloga alemã Edith Stein, dissertou em sua tese de doutorado sobre empatia, a diferenciando da simpatia.
Quando usada pela primeira vez einfuhlung estava associada ao efeito emocional das formas e a relação entre o artista e o espectador que introjeta a obra, como uma projeção sentimental. A origem do termo surgiu com os estudos de Johann Gottfried Herder, que em “Ensaio sobre a origem da linguagem” (“Abhandlung uber den Ursprung der Sprache“, de 1772), e em publicações posteriores elaborou sua própria teoria estética, onde a empatia é apontada como fundamental pra interpretação de textos, história e culturas; explicando a unificação entre sujeitos e objetos. As implicações da empatia são tamanhas que podem até mesmo provocar sensações e emocionar quando aplicadas em ambientes.
Inclinando os ouvidos
Uma forma de praticar a empatia é através da escuta ativa. O termo foi criado pelo psicólogo clínico Thomas Gordon, em 1970, pra reforçar a ideia de estar presente na conversa, demonstrando um interesse sincero, ao utilizar mente e coração pra dar sentido ao que é percebido pelos ouvidos. Mesmo sem estar acostumado, a prática da escuta ativa é simples, basta manter contato visual com a pessoa e observar sua comunicação corporal. Demostrar interesse ao acenar a cabeça, dizer “aham” ou reagir com expressões faciais conforme o que é contado, seja com sorrisos, seriedade ou surpresa – até porque fazer isso nos força a estar presentes.
Quando necessário, traduzir com nossas palavras o que foi dito pra confirmar se o entendido está correto ou foi distorcido por filtros pessoais de crenças, suposições e julgamentos. A interrupção nunca deve acontecer pra adivinhar algo ou mudar de assunto, apenas confirmar o entendimento ou estimular a continuidade no compartilhamento de informações – com perguntas abertas, pra saber o que acontece de fato e qual a opinião da pessoa; até porque se envolver na conversa impede do papo virar monólogo e ficar entediante. Por último, é preciso respeito e compreensão, dando opiniões que não atacam ou colocam a pessoa pra baixo – porque isso apernas enfraquece a amizade e não acrescenta nada. Ao exercer a escuta ativa e a empatia, podemos evitar que nossa positividade cause intoxicação – a positividade só se torna tóxica no exato momento em que deixamos de atentar pros sentimentos do outro.
Ver com outros olhos
Segundo o Cone da Experiência, de Edgar Dale, ao ouvir de forma passiva lembramos apenas 20% das informações, já quando participamos da troca, a retenção salta pra 70%. Por isso, ao invés de se distrair com algo, ou formar contra-argumentos enquanto a outra pessoa fala, embarque na história contada – esse exercício de reflexão aumentará o nível de empatia. Conversar implica em se expor, e se a pessoa o faz merece atenção, ao fazer isso proporcionamos a sensação de entendimento que tranquiliza. Manter uma escuta ativa estimula no fornecimento de informações e perspectivas que podem mostrar o quanto a pessoa é incrível, além de facilitar a criação de vínculos, porque descobrimos preferências em comum que a gente nem imaginava existir. O risco disso é a conexão aumentar a tal ponto que as histórias se cruzem e passem a ser contadas juntas.
Como disse Neil Gaiman: “todo mundo tem um mundo secreto dentro de si; não importa quão chatos sejam do lado de fora, por dentro todos têm mundos inimagináveis, magníficos, maravilhosos, estúpidos e incríveis”. Assim, demonstrar um interesse genuíno pela opinião e pensamentos do outro não apenas o permite se sentir valorizado. Conforme melhoramos nossa capacidade de escutar, maior se torna o impacto positivo em nossos relacionamentos interpessoais; nossa produtividade se eleva, bem como a capacidade de influenciar, persuadir ou negociar. Ainda evitamos conflitos e mal-entendidos, sem precisar apelar pro uso de gatilhos mentais pra provocar emoções e reações. O interesse genuíno e profundo é suficiente pra criar empatia – coisas boas acontecem quando a gente dá oportunidade pra elas surgirem.
Comunicação vertical
A capacidade de relacionamento está entre as habilidades humanas imprescindíveis e será uma das mais valorizadas no futuro, já que competências técnicas estão sendo substituídas por robôs – até porque máquinas não tem problemas de temperamento, nem precisam de descanso remunerado, como lembra o conto curto “Sorry Dan, but it’s no longer necessary for a human to serve as CEO of this company” (em livre pt-BR: “Desculpe Dan, não é mais necessário um CEO humano nesta empresa”, de 2014), do Erik Cofer. Graças a inteligência artificial aprimorada com o uso de aprendizagem profunda e aprendizagem de máquina, muito do que eram atividades exclusivamente humanas estão sendo remodeladas pela tecnologia, que já consegue gerar relatórios financeiros, fazer o atendimento e até aconselhar clientes. A tendência é que até o conhecimento seja dominado por robôs que, assim como o idioma, deixará de existir, mas enquanto os hard skills desaparecem, a compaixão e as conexões humanas continuarão – como falado aqui.
Estamos num ponto de hiperconexão em que é preciso reavaliar nossas decisões e buscar conexões reais e profundas que não poderão ser sintetizadas por qualquer tecnologia ou inteligência artificial. Por que não aproveitar pra recuperar a comunicação vertical que tivemos um dia? Afinal, mesmo nossos desvios tendo quebrado essa relação, D-s está perto de quem o chama com sinceridade [Salmos 145.18], ele ouve nossa voz ao falarmos com ele e inclina os ouvidos quando o invocamos [Salmos 116.1-2].
Contextualizando
A frase que originou essa reflexão faz parte de “Interrompido – A curva no vale da sombra da morte“, uma minissérie que mostra que nossa humanidade é que nos leva a viver os desejos mais profundos e a cometer os erros mais insanos. Ela surge após Luan se admirar da luz que Socorro derrama e resolver descobrir o que motivava a enfermeira a ser tão incrível.
Artigo publicado originalmente no LinkedIn, também está disponível no Medium.
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Ósculos e amplexos,
Autor de Interrompido – A curva no vale da sombra da morte, é um cara apaixonado total por música, se deixar não faz nada sem uma boa trilha sonora. Bota em suas histórias um pouco de seus amores e do que sua visão inversível o permite enxergar da vida.