Um dia de trabalho bem executado traz um senso de realização e prazer espelhado por cada parte do corpo, também um cansaço difícil de se manter esperto por muito tempo. Era exatamente assim que ele se encontrava, apesar de feliz, estava só o pó da rabiola, todo moído, num misto de felicidade e exaustão. Tudo o que queria nesse momento era desfrutar o sono dos justos, mas sua visita o levara pra longe, ocupado como ficou nem deu pra procurar onde se hospedar, agora precisava dirigir um bocado antes de poder se lançar nos braços do sono. Com o cansaço pesando sobre a cabeça, os olhos se tornaram de chumbo.
— SCREENNNCH! – Seus olhos abriram de imediato quando o carro perdeu o controle. O alívio por não ter acontecido algum acidente o despertou – embora o vazio a se estender pela estrada tornasse isso difícil. Quanto tempo ficara de olhos fechados? A impressão é que tudo não durou mais que alguns segundos, mas suficientes pra pegar uma estrada desconhecida total, então tratou de redobrar a atenção procurando de ambos os lados, ao ver o relógio marcar três horas, a urgência em encontrar algum lugar onde passar o resto da noite cresceu. Porém, a tarefa era prejudicada pela escuridão e ter esquecido de arrumar a lanterna também não ajudava em nada, aumentando o nível de periculosidade de sua missão.
Ao atingir o ponto onde nem mesmo o vento soprava e as árvores que não estavam secas – com suas raízes fincadas nas trevas – se erguiam tomadas por um colorido carregado pelas forças das trevas, um hotel a beira da estrada se revelou. Num estado onde seu julgamento se encontrava prejudicado o suficiente pra avaliar o erro que estava pra cometer, ele estacionou. Apesar da estranheza envolvendo o lugar, a poucos metros dali as luzes da Cidade Zinha brilhavam convidativas.
Enquanto se dirigia pra recepção, o som de seus passos ecoando pelo estabelecimento denunciava que um longo abandono havia lhe aguçado a ressonância – um local que até podia ter saído do deserto, mas o deserto não saíra dele, ficou impregnado em sua estrutura a esvaziar tudo de sentido. Assim que entrou no quarto, ele ficou aliviado pela sorte lhe enviar aquele lugarzinho.
Com um olhar indiferente, observou através da janela, sem se atentar a nada de especial, até porque não havia outra coisa além da escuridão. A qual mostrava a densidade de suas profundezas, não havia qualquer luz artificial, a Cidade Zinha havia sido devorada pelas trevas que seguiam famintas. A lua a brilhar por trás das nuvens formava figuras assustadoras, num último sinal de que algo de errado não estava certo ali e o melhor era sair correndo com a maior urgência possível.
Fechando as cortinas, ele isolou pensamentos cavernosos que tentaram ocupar sua mente, guiados pela luz enferma da lua, a atravessar o vidro da janela, deixando a noite morrer na escuridão, enquanto o quarto era iluminado por uma claridade amarelada reconfortante. Ao ver uma cama daquele tamanho com lençóis brancos e suaves não resistiu e se deixou cair no mar de conforto, que o envolveu no abraço mais agradável que podia receber, num aveludado que acariciou a sua alma e lhe embebedou os sentidos. Esquecendo problemas e preocupações, se entregou por completo, deixando os olhos fechar sem pudor algum.
Porém, por mais aconchegante que a cama estivesse, ele acordava porque o lençol ficava enroscando, ora nas pernas, outra nos braços, e sem coragem suficiente pra abrir os olhos, apenas se desenganchava e voltava a dormir, até despertar sufocado. O lençol estava em volta de seu pescoço, com os olhos estatelados, ergueu ambas as mãos pra arrancar aquilo do pescoço, quando um nefasto “NÃO” o fez tremer até a alma e seus braços e pernas foram presos pelo lençol.
Com o pavor a lhe congelar, ele começou a ser tragado pela cama, afundando lentamente em sua maciez, quando foi gritar o lençol invadiu sua boca, entrando goela abaixo e tampando seu nariz. A medida em que era devorado, o ar reduziu a quantidades impossíveis de sustentar a respiração, ele começou a sufocar. Os pulmões queimavam, enquanto o corpo era esmagado pela pressão interna. Quando o estalo de ossos se partindo começaram a soar, ele estava tão dilacerado por dentro que não sentiu mais dor alguma, então foi rasgado numa quantidade de pedaços impossíveis de contar. E naquela escuridão, onde não se enxergava nada além da dor, tudo silenciou na profundidade das trevas mais abismais.
#papolivre
Ao fechar os olhos nos entregamos ao conforto que faz nosso corpo descansar e a mente é reiniciada através dos sonhos, que servem de faxina mental. Também é o momento em que ficamos mais expostos e frágeis, já que o corpo adormecido não pode se defender dos perigos noturnos que rondam a escuridão mais nefasta em suas profundezas.
Por mais confortável que seja a cama – nosso sagrado lugar de descanso – ela não é segura o suficiente pra manter longe ameaças terríveis, como mostrou Horacio Quiroga em “O travesseiro de penas” (“El Almohadón de Plumas”), publicado em “Contos de amor de loucura e de morte” (“Cuentos de amor de locura y de muerte“, de 1917), ou mesmo “Futon”, de Junji Ito, publicado em “Fragmentos do Horror” (“Ma no Kakera”, de 2014). Onde as sombras da obscuridade trazem pesadelos e paralisia do sono, mostrando quão poderosas as trevas podem ser ao invadir e se apossar de nosso corpo fragilizado.
A inspiração pra esse conto surgiu enquanto escrevia o artigo “Cada luta é um novo poema“, quando o forro da cama agarrou em meu pulso. Diferentemente das histórias citadas, optei por uma trama agoniante e perturbadora que não envolve horror científico, mas um realismo mágico macabro com uma pegada insana, cuja explicação só pode ocorrer nas mentes perturbadas de quem o ler – que corre o risco de não ver mais a cama da mesma forma.
Aproveite pra comentar embaixo os arrepios experimentados com essa leitura, e se gostou mesmo compartilhe com alguém que você sabe que também vai curtir uma pitada de terror. Continue acompanhando a #calafrio porque até o fim de novembro muitos sustos ainda te aguardam, assim como a união assustadora desse universo obscuro.
Ósculos e amplexos,
Autor de Interrompido – A curva no vale da sombra da morte, é um cara apaixonado total por música, se deixar não faz nada sem uma boa trilha sonora. Bota em suas histórias um pouco de seus amores e do que sua visão inversível o permite enxergar da vida.