A escuridão oculta o desconhecido, sob seu manto negro o pavor pode se desenrolar sem a gente ter a menor dimensão de uma letalidade que pode vir de qualquer canto obscuro. Surgindo a partir do inesperado, onde sombras deformadas adquirem a aparência do terror, o melhor é não deixar pés e mãos desprotegidos, nem ficar acordado até ela se tornar forte demais pra ser vencida pelo amanhecer.
— A gente precisa mesmo assistir isso uma hora dessas? – Gael recolheu os pés que davam sopa fora da coberta.
— Claro! Foi como a gente combinou de passar o Halloween, cabeça! – Léo fez questão de lembrar. Disso o garoto recordava, mas de estarem na sua casa ele não havia combinado nada disso, eles que decidiram e o meteram no rolo.
— CLICK! – Quando ele pausou na parte em que a criatura abismal ia atacar, geral olhou de cara feia, querendo saber o motivo.
— Já dá pra ir de animação? – Mas as vaias e o banho de pipoca o fez ver que sua ideia não ia colar. – Não sei por que deixo cês fazer isso comigo? – Ele resmungou enquanto dava play outra vez.
— Deixa de ser mela-cueca, Gael! Nem minha irmãzinha se assusta com essas coisas bobas. – Léo cutucou o amigo, fazendo isso mais pra evitar ver o que se desenrolava na tela que pra provocar o mascote da turma.
— Deve ser porque ela é mais assustadora… – Gael se viu dizendo, mas calou a tiradinha fervilhando na ponta da língua. – Ainda acho que isso não é boa coisa, filme de terror hoje, ainda mais de madrugada.
Ele estava prestes a lembrar das coisas estranhas que andavam acontecendo, mas foi interrompido quando Léo, esparramado no sofá logo acima dele, abaixou e peidou em sua cara. Saindo numa mistura de sentimentos que coloria sua cara com tons de raiva e falta de ar, Gael tentou se recuperar longe dali, enquanto a turma ria; algo que não durou.
— Caramba, parça! Essa veio caprichada! – Beto deu um pulo pra abrir a janela.
— Cara, cê tá podre! Comeu o quê? – Lili o empurrou com os pés, sem conseguir decifrar os mistérios daquela podridão.
— Sei lá! Não vô no banheiro tem uns dias já. – Ele tentou puxar pela memória, mas acabou dando de ombros.
— Por que cê acha que a gente preferiu o chão ao ficar do lado do Léo? – Bia esclareceu rindo, enquanto tentava inalar o ar puro vindo da janela.
— PLOFT! – Gael levou uma almofadada na cara enquanto o pulmão terminava de se recuperar, ficando sem fôlego novamente.
— Traz mais pipoca aí pra gente, cabeça!
— FÚUUU! – O garoto bufou, mas foi pra cozinha. Aquilo era o cubo do abuso, até mesmo a conta do streaming e a pipoca ele é quem bancava, mas os amigos marcaram ali só porque sua TV era quase do tamanho da sala e seus pais nunca estavam em casa. Nem adiantou contra-argumentar quando vieram com essa ideia furada, Léo destacou que a experiência seria boa pra ele enfrentar de vez aquele medo bobo; afinal, ele estava grandinho demais pra ainda se assustar com a escuridão.
Respirando fundo, Gael encheu um copo d’água e o bebeu de vez, como se isso também ajudasse a engolir a aflição que lhe vinha pressionando o peito. De todos os seus medos, nada o assustava mais que a escuridão, não pelo escuro em si, o que metia maior cagaço era a sensação de ser vigiado, algo que o rondava constantemente, mas que ganhava força a ponto de ficar palpável quando as luzes se apagavam e davam lugar a escuridão e a tudo o de desagradável que pode se desenvolver em suas entranhas. Numa cidade onde nem mesmo as luzes da rua ficavam acesas, ele era obrigado a se concentrar em outras coisas pra ignorar todo o terror que se desenrolava no breu, esperando apenas um espaço em sua mente pra lhe contar os segredos mais obscuros de uma verdade que ele preferia ignorar pra que ela não pudesse lhe possuir o corpo por completo.
Gael retornou pra sala sem disfarçar a falta de vontade de ficar ali, ele adorava a companhia dos amigos, mas desde que inventaram essa de ver terror na noite de Halloween, isso o deixou nem um pouco contente. Foi ele aparecer na porta e Léo fez o som de peido com o sovaco, arrancando risos da galera e uma risadinha amarela dele. Por mais irritante que o amigo fosse, pelo menos suas graças acabavam com qualquer clima que tivesse rolando, inclusive terror, então até que era uma boa ter ele por perto.
Pra Beto tanto fazia, ele só sabia ficar se pegando com Ana, e nenhum dos dois prestava a menor atenção nos terrores apresentados com sanguinolência na tela, cujo tamanho e definição os tornavam reais demais pra ignorar. Lili de delicada tinha só o apelido, toda corajosa, nada assustava aquela garota, inclusive os valentões da escola, eles que não saíssem da frente pra ver; a lição dada em Fabrício quando ele colocou o pé pra ela cair, fez qualquer engraçadinho desistir de se meter com a baixinha, algo que ficou marcado, ainda mais porque depois desse ocorrido foi que a turma se juntou.
— Senta aqui! – Com aquele sorriso espontâneo e tão conhecido, ele bateu na almofada ao seu lado, convidando todo fofo. Esse era Dézinho, o último componente da turma e o mais tranquilo, até com terror, Gael não lembrava da vez que o viu se estressar, o que o amigo fazia era espalhar felicidade.
Apesar de se conhecerem a um bom tempo – antes mesmo da geral se juntar – Gael ainda não tinha sacado qual era a dele. É que apesar de muleke-piranha, o amigo vivia de chamego com ele. Reparando naqueles olhos pidões puxados, os cabelos arrepiados e os brinquinhos maior chave, as bochechas acabaram por denunciar seu grau de embaraço, ele ficou grato pela luz da cozinha possuir sensor que a desligava quando não havia ninguém, assim não deu pra perceber seu rosto corado – Gael nunca pensou que algum dia a escuridão fosse lhe deixar feliz. Ele pretendia voltar pra seu lugar, antes do casal e bem abaixo de Léo, mas resolveu atender ao convite e andando feito robô, se sentou todo duro ao lado do amigo tentando evitar o máximo de contato possível naquele canto apertado, foi quando uma mão tocou seu ombro o fazendo arrepiar e dar um soluço.
— Relaxa, tô aqui, maninho! – Dézinho soprou no ouvido quando seu corpo tremeu. A temperatura do hálito dele terminou de torrar suas bochechas. Então o amigo o puxou encostando o corpo dele ao seu, ficou abraçadinho, com a cabeça sobre seu ombro. Isso fez o medo derreter de vez enquanto o corpo de Gael espalhava um calorzinho bom.
— Ei! Cadê minha pipoca, cabeça! – Léo cobrou, animado.
— Esqueci! Pega lá, mano! – A resposta saiu sem a menor preocupação e sem Gael mover um músculo porque não queria atrapalhar aquele encaixe.
— Xá queto! Quero mais não, mesmo. – Ele fechou a cara apertando os olhos.
Como estava bom de mais pra ser verdade, no meio do filme a luz acaba. Com o corpo mole, Gael foi pego de surpresa e nem teve tempo de reagir, quando percebeu havia mais alguém na sala tomada pela obscuridade, mas a sétima presença não era humana, mais de uma coisa inominável que ele não ousaria se quer pensar em defini-la. De olhos fechados, seu corpo começou a soltar espasmos que não desapareceram, inclusive com os braços de Dézinho o mantendo seguro. Mesmo a presença macabra se aproximando cada vez mais, algo denunciado pela temperatura decaindo, ele não ousava olhar. Então aquilo atravessou suas pálpebras lhe enchendo os olhos de um terror violento, sem poder mais conter o pavor que fazia cada célula em seu corpo gritar, Gael soltou um berro tão fino que fez os amigos se acabar na risada. Eles apenas o aguardavam fazer isso, mas quando aconteceu foi ainda mais hilário que o esperado – com um agudo daqueles ele desbancava fácil Mariah Carey do Livro dos Recordes. Mas o berro ficou tão agudo que obrigou geral tapar os ouvidos, e Dézinho o soltou, no mesmo instante um impulso os jogou pra trás com uma repulsa que chega provocou zonzeira.
Logo o berro virou um esguicho a sair do nariz de Gael, o fazendo gritar mais, até todo som emitido se transformar num trissar, num “ti ti ti ti ti” que virou um farfalhar, então ele se calou. No momento em que Léo ligou novamente a chave geral, localizada próxima ao sofá, todos estavam de olhos esbugalhados, cabelos e pelos arrepiados, com um frio agarrado na alma e sem a menor noção do que acontecera, a ponto de se arrepender da peça pregada no amigo. Quando Léo sugeriu a pegadinha pro amigo superar o medo, a galera topou, só Dézinho quis dar pra trás, dizendo que isso não era bacana de fazer, então preferia ficar de fora, mas a turma insistiu, porque sem ele não rolava. Afinal, Dézinho era a melhor pessoa pra cuidar de distrair o mascote e ele não perceber nada.
— E por que eu? – Ele ergueu a sobrancelha.
— Cês são mó grude, cara! Ele vai desconfiar de nada se cê topar. – Lili destacou o óbvio.
— Nada a ver! Ele é só meu mano!
— Ele também é nosso, mas cês são mais chegados. – Léo recordou. Ainda assim, Dézinho ficou apreensivo.
— Bora, parça! É pro bem do nosso mascote! – Com um sorriso, Beto socou o braço dele.
— Tá bom! Se é assim, tô dentro! – Ele aceitou após muita insistência. Mas depois do que aconteceu, geral viu o tamanho do erro cometido, além do susto descabelado que levaram, Gael havia desaparecido. Eles o procuraram pela casa toda, sem sucesso. Olharam em tudo que é lugar, berrando por ele e nada de encontrar se quer sombra do mascote, nem mesmo do lado de fora da casa. Geral viu em tudo que foi lugar, menos acima de suas cabeças, quando Léo apontou com uma careta sem sangue algum na cara, as cabeças se ergueram já com os olhos esbugalhados pro teto. A tempo de ver o maior morcego que surgira por aquela área, que soltou um esguicho e foi faminto pra cima deles, enquanto o relógio marcava a exata hora do início da maldição.
— CLICK! – Sem acreditar que perdeu preciosos minutos vendo aquilo na TV, ele a desligou.
— Mas que lugarzinho vim amarrar meu burro? Não tem nem um canal que preste e a única coisa que tá passando é esse filmezinho trash adolescente! Melhor dormir que ganho mais. – Pronto pra se jogar na cama, ele viu manchas brancas no lençol. Foi olhar pro teto e sua cara fechou, na mesma hora ligou na recepção pra reclamar. – Não acredito que vocês me deram um quarto com morcego?
O atendente explicou que os animais eram comuns na região e de noite acabavam entrando pelas janelas abertas. Se desculpando pelo ocorrido, disse que a camareira ia resolver isso. Nem adiantou ele pedir outro quarto, estava tudo lotado. Bufando, teve de aceitar o que restava, e se preparou pra soltar os cachorros na camareira, ainda mais após vê-la, mas bastou ela entrar e levantar a vassoura, dando um golpe certeiro no ser noturno – que espantou pra longe o fôlego de vida presente no pedaço de trevas voador – pro hóspede desistir total de enumerar todas as reclamações que surgiram na mente conforme aguardava o serviço de quarto. A despeito de seu tamanho, ela não era nada do que a aparência fazia acreditar, e engolindo seco, o hóspede esqueceu qualquer coisa que um dia a raiva o fez pensar dizer.
— Mais alguma coisa, senhor? – Sua voz saiu arranhada, vinda de uma caverna abismal, onde as entranhas nutriam o pavor imaginável que pôs todos seus pelos em pé.
— Nã… não! Tudo certo, ‘brigado… dona… – Ele até se perdeu no que dizer.
— Joana!
— Sim, obrigado, dona Joana!
— A seu dispor! – E pegou o defunto pela asa, numa frieza que demonstrava estar acostumada àquilo. – Qualquer coisa só chamar.
— Tudo… bem…
— TOMP! – A força usada pra fechar a porta fez um ar quente ser soprado em sua cara. Mesmo assim ele se sentiu aliviado, no final das contas, a presença da velhinha de olhos profundos, onde a escuridão dançava desvairada, o fez temer mais que a possibilidade de pegar raiva. O perfume que chegou ao seu nariz o fez perceber que ao menos ela fizera um trabalho decente, a cama estava arrumadinha e aconchegante, como se não tivesse sofrido acidente algum.
Ainda impressionado com a braveza a ocupar reduzidas proporções, reparou que a despeito do golpe desferido pela senhora, não havia mancha alguma, ele até subiu na cadeira pra se certificar e nada, nem no chão, era como se o morcego estivesse completamente sem sangue. Deixando de lado as observações da curiosidade, ele se jogou na cama convidativa e foi recebido pela escuridão.
— TOC! TOC! TOC! – Como passou do horário do check-out e nada do hóspede aparecer, o gerente mandou o concierge atrás dele. Após um tempo de espera sem movimento algum, o garoto percebeu a porta aberta e entrou se desculpando, porém, não havia ninguém ali. A cama estava impecável, bem como o quarto.
— O chefão não vai gostar nada disso. – Zeca falou consigo mesmo. – Mais um que sai fugido pra não pagar a diária. Talvez se o chefe não metesse a faca, isso não acontecia tanto. – Ele balançou a cabeça enquanto se afastava. Apesar do que rodava a boca pequena, Zeca preferia acreditar que esse era o motivo, assim, o fato do hóspede sair cedo a ponto de não ser visto nem mesmo pelas câmeras, largando pra trás todas as suas coisas, inclusive o carro no qual chegou, se tornava menos assustador. Ao fechar a porta, o ar soprado balançou o morcego pendurado no teto, mas sem se incomodar ele continuou a dormir.
#papolivre
Enquanto fazia a edição final de “Gizmo“, me deparei com a informação que morcegos emitem sua ecolocalização através do focinho e ia inserir de alguma forma esse dado no conto, mas como a história já estava redonda, eliminando qualquer chance disso acontecer, ele acabou se tornando um insight pra um futuro conto – que você acabou de ler – até porque essa informação não dava encaixe em lugar nenhum.
Quando o comecei a desenvolver essa tarde, não tinha muita expectativa e quase o boto de lado por outros mais adiantados, mas como precisava dar continuidade ao universo #calafrio me forcei a escrevê-lo e amei a experiência com toques das realidades observadas. As coisas se transformam e se tornam especiais a medida em que nos dedicamos a elas, nada é grandioso ou importante até botarmos a mão na massa – e essa história ganhou desdobramentos fantásticos que podem ser apresentados no conto que irá conectar esse universo arrepiante. Espero que você tenha gostado de mais essa viagem e volte outras vezes, durante o mês do horror e dos mortos (outubro e novembro) estou testando novas formas de escrever terror e te convido pra experimentar aquela pontinha de medo, principalmente se você for corajoso suficiente pra ler esses contos a noite.
Ósculos e amplexos,
Autor de Interrompido – A curva no vale da sombra da morte, é um cara apaixonado total por música, se deixar não faz nada sem uma boa trilha sonora. Bota em suas histórias um pouco de seus amores e do que sua visão inversível o permite enxergar da vida.