Atravessando o interior da noite, o tempo alcançou um escuro de meter o dedo no olho e o frio cercou; embalado pelas ondas, o silêncio ensurdeceu o menor movimento. Até um vento feroz se levantar agitando as águas e revoltar o oceano. O negrume das nuvens foi iluminado por raios cortando o céu e de fúria se encheu a atmosfera, soprada pelos trovões a berrar ameaças de todas as direções.
Quando o horizonte se iluminou, uma figura nebulosa foi vista sobre as águas, numa visão fantasmagórica que ecoou um grito no homem presente na embarcação, o inundando de medo. A tempestade a se formar provocava a violência das águas que alvoroçadas se erguiam sobre a barca tentando engoli-la com os aperitivos ali dentro. Tamanho terror tornou possível ver a face da morte nos olhos do homem enquanto esculpia o desespero em seu rosto esbranquiçado.
Sem ter pra onde olhar, restou encarar a tempestade que tomava corpo em meio a escuridão e flashes anunciando o pior por vir. Cada raio tornava as entranhas da escuridão mais obscuras, enquanto o pavor agitava as águas. Reparando a força do vento e das ondas, o homem começou a afundar no medo. Sua atenção foi sugada e seus olhos não conseguiam desviar da tempestade. O que ele não esperou foi ser olhado de volta e isso causou um choque que o esmagou de dentro pra fora, lhe deixando zonzo e sem ar.
Em apuros, o barco lutava contra o vento e as ondas, e essa agitação quase fez o homem cair da proa, ele se segurou a tempo de antecipar a tragédia que ganhava intensidade. Não sem levar um tapa que fez água entrar por seu nariz e boca, a qual cuspiu apressado.
Contemplando o grande desconhecido – de profundeza onde seus pés falhariam – o homem se deixou envolver pelo mistério abrigado no oceano. Quanto do sal ali eram lágrimas arrancadas pela fúria das ondas? Perdido em meio a escuridade das reflexões, uma voz sobre as águas atravessou a tempestade e lhe pediu pra compartilhar o que tinha, “mas não há ninguém aqui”, ele se preparou pra dizer. No instante em que olhou em volta, percebeu não estar só; havia outras pessoas na embarcação, mais do que dava pra contar. Todas tomadas pelo pavor em ondas que faziam o oceano surgir maior e mais tempestuoso.
Como se sua vida dependesse do que tinha, o homem se agarrou ao que lhe restava enquanto tudo estava prestes a se desfazer. Mesmo sabendo que o máximo que aquilo podia garantir era morrer de barriga cheia – o apego não o deixou soltar suas posses.
Em meio ao clarão que dava um tom sombrio ao desespero e a gritaria, uma silhueta, pouco maior que um toco, começou a se deslocar entre as árvores agitadas pelo medo. Ele caminhava seguro, vinha sem temer ser atropelado, trazendo consigo um cesto. Ao se aproximar o entregou ao homem dizendo pra compartilhar aquilo com os passageiros. Tal desprendimento em dar tudo quanto possuía e com um sorriso por todo rosto, deixou o homem desconcertado. Colocando seus pertences debaixo do braço, ele descobriu a cesta pra conferi-la, ali dentro havia cinco pães e dois peixinhos, mas o que era isso pra tantos?
— É só repartir! Divisão não se trata de perda, mas botar pra fora nossos recursos pra multiplicar.
Quem é esse garoto com tanta sabedoria e como me respondeu com essa precisão, foi o que ocupou os pensamentos do homem enquanto dividia em pedaços os alimentos que lhe foram confiados. Terminada a tarefa, entregou o cesto ao garoto que ficou lhe observando. Como ele não demonstrou nenhuma reação ou pareceu que faria algo, o homem questionou se ele não ia entregar o alimento as pessoas.
— Elas estão ocupadas demais com elas mesmas pra me dar atenção. Precisa ser você! – Receando o que as pessoas podiam achar de um velho acompanhado de uma criança, oferecendo comida quando tudo estava pra ser devorado pelas entranhas famintas da tempestade, o garoto segurou a sua mão. No olhar dele, o homem viu uma segurança mais profunda que o oceano que o impulsionou a seguir sem atentar pro pavor a sua volta.
O pequeno o conduziu em direção a jovem mais desesperada ali, embora tivesse aceitado a missão, o homem se questionava sobre a finalidade daquilo. Como alimentar a multidão assustada ajudaria num momento daqueles? Seria pra oferecer um banquete melhor nutrido pras tripas da tempestade? Porém, bastou tocar a jovem e ela acalmou, então ele a ofereceu peixe e pão. Após comê-los, ela começou a emanar luz, seus olhos brilharam expulsando qualquer sombra de aflição. Disposta a ajudar, a garota se juntou na tarefa de alimentar pessoas que desconheciam ter fome daquele alimento, assim como ela; e querendo fazer mais, compartilhou o que trazia consigo.
A cada toque outro acalmava e passava a brilhar após engolir sua porção, daí aderia ao grupo compartilhando também o que tinha. Independentemente das condições que aparentavam, todos tinham algo pra dar e também podiam receber. O movimento continuou pela embarcação, cujas dimensões estavam maiores que o homem lembrava. O número de voluntários foi aumentando até geral brilhar.
Restava apenas o homem pra provar do alimento, mas quando ele se preparava pra saboreá-lo, o garoto segurou seu braço e disse que ele não precisava daquilo, porque tinha acesso a outro tipo de sustento.
— Lança seu pão sobre as águas. – Ele pediu. O desapontamento do homem tomou seu rosto, ainda assim ele obedeceu. Afinal, ainda trazia algo consigo que podia provar antes de seus olhos se fecharem de vez.
— Isso também! – O garoto apontou pro que ele mantinha debaixo do braço.
— Mas… – O olhar do garoto o silenciou e ele desistiu de debater. Mantendo os olhos sobre as ondas, levantou o que trazia protegido e lançou no oceano, se desfazendo de todas as suas posses e com elas a amargura que se agarrara as lembranças. Mesmo com o convés encharcado e sendo chacoalhada, a embarcação resistia. Mas quanto tempo ainda se manteria inteira até ser destroçada pela fúria do vento e das águas a socá-la vez após vez?
O movimento das pessoas tirou o homem das reflexões, onde a tempestade atingira seu limite e a morte de mostrava uma certeza. Geral se movia arrumando o barco, fazendo remendos, ajeitando as velas e remando num esforço coletivo pra escapar da tempestade. Quando a embarcação começou a se mover, o vento a arrastou e a escuridão devorava pela luz. A medida que o temporal ficava pra trás, a altura das ondas diminuiu até virar espuma a lamber o casco do barco.
No momento em que a firmeza da terra acenou, todos remaram com disposição dobrada. Ao atracar em Salvador, o homem teve a alma abraçada por um vento agradável enquanto andava prancha abaixo. A experiência lhe mostrou não ser grande demais pra aprender a sabedoria dos pequenos. Crianças não enxergam barreias, sua crença é suficiente pra manter os olhos no que importa, mas a medida que crescemos aprendemos a olhar em volta e absorvemos limites do que pode ser alcançado e até onde é possível chegar – ficando com olhos errados.
Já no cais, ele aguardou o garoto e o pequeno não surgiu mesmo após todos descerem. Temendo que ele tivesse caído na escuridão do oceano e engolido sem ninguém perceber, o homem saiu a procurá-lo entre as pessoas, pra saber se o haviam visto. Antes de poder dizer algo, foi cercado pela gratidão dos que ajudou; graças ao seu empenho geral se viu no mesmo barco, a navegar pelas águas da vida. Então se uniram porque a direção escolhida por um, importava a todos, assim, a tempestade que destrói a estrutura não conseguiu lhes arrancar as raízes da esperança.
Após a gritaria, apertos de mãos, abraços e até beijos, ao perguntar sobre o garoto que segurava sua mão, ele conseguiu a atenção necessária pra obter respostas. Entretanto, o silêncio que surgiu não se deu por admiração, mas por espanto: ninguém havia segurado a sua mão, se quer tinha algum garoto presente na embarcação.
Enquanto cada um se afastava, tomando o próprio rumo, os olhos do homem foram atraídos pela distância do horizonte. Ao seu redor, tudo estava carregado de vida e cores que tornavam a experiência vivenciada em algo surreal demais pra qualquer um que não passara por aquilo, acreditar em tudo que aconteceu. Quando subiu no barco, ele desejava seguir até atravessar a quarta extensão em busca de descanso, mas o que precisava mesmo era passar além da dor, cujas águas tentaram afogá-lo e as tristezas o sufocar. Agora ele transbordava uma paz que expulsara a dor de perder sua esposa e filha de maneira tão cruel.
Desse dia em diante o homem se tornou navegante, indo pros lugares menos desejados, porque onde habita o perigo e o abismo é onde o céu se espalha e a essência abunda das mais profundas águas. Sem temer pela vida – já que ao tentar salvá-la quase se perde de vez – se deixa guiar pelo chamado, seguindo pra onde jamais alcançaria de consciência sã. Vai avançando pra onde os recursos e capacidade podem falhar e o medo cercar ameaçando sua segurança, mas onde a confiança transborda as fronteiras das possibilidades e a esperança se fortalece, porque em suas fraquezas se revela o verdadeiro poder.
Navegando pelas águas da vida e na insegurança de suas ondas, ele prossegue com a certeza que um dia o garoto virá novamente do outro lado do oceano, então poderá segurar sua mão outra vez e com ele andar sobre as águas.
#papolivre
A inspiração pode surgir dos momentos mais improváveis e, sem ser aguardada, soprar criatividade revelando sua presença imaterial, mas certa. Foi assim que esse conto surgiu, a partir de uma introdução pro artigo “Forças disfarçadas de tragédias” pra mostrar como estamos conectados uns aos outros. Conforme aprofundava o tema nos parágrafos seguintes, aquela reflexão foi crescendo em mim, ganhando sensibilidade até eu me dar conta de precisar escrevê-la.
A história é baseada principalmente nos registros de Jesus quando anda sobre as águas [Mateus 14.22-33, Marcos 6.45-52, Marcos 6.45-52] e acalma a tempestade [Mateus 8.23-27, Marcos 4.35-41]. Também em “Oceans” (“Where Feet May Fail”), do Hillsong United e “Do outro lado do mar”, do João Alexandre – que fazem parte da trilha sonora – e uma pitada de “Segura na mão de Deus”, do Nelson Monteiro da Mota, “A vida é um rio”, do Raffa Torres e “Mar Português” do Fernando Pessoa, além de outras obras. A parte mais enigmática da travessia do homem surgiu na última revisão, ainda ia dar quatro horas da manhã quando acordei com a simbologia do quatro na mente – que representa a dimensão onde vivemos – então a inseri.
Ósculos e amplexos,


Autor de Interrompido – A curva no vale da sombra da morte, é um cara apaixonado total por música, se deixar não faz nada sem uma boa trilha sonora. Bota em suas histórias um pouco de seus amores e do que sua visão inversível o permite enxergar da vida.
ajudar o próximo amor ao próximo cegueira compaixão conto empatia escuridade escuridão falta de amor misericórdia nas entranhas da escuridão pão sobre as águas pavor semeando no futuro soundtrack terror trevas
Anterior Próxima