Articulário: Larga mão do sofrimento e aprende de vez
kevin laminto/ Unsplash

Larga mão do sofrimento e aprende de vez

“A vida ensina o que é preciso. Basta não se prender a dor que a gente vê as lições.”

Mishael Mendes, Interrompido – A curva no vale da sombra da morte

Preto no branco

A vida não é uma paleta monocromática. Existe toda uma gama de cores entre a ausência e a adição de luz, que vai além dos polos negativos e positivos de um yin yang; o equilíbrio é menos extremista e complicado do que fazem parecer. Se a vida não se divide entre a dualidade de dois polos, ela pode ser preto no branco. Como registra Câmara Cascudo em “Locuções tradicionais no Brasil“, de 1970, a expressão “preto no branco” surgiu no século XIX pra substituir outra de 870 (século IX): “cum cornu et cum alvende”, do latim “com tinteiro e alvará”. Cornu era o tinteiro, normalmente feito de chifre e o alvende, era o alvará, documento; ou seja, um decreto escrito e assinado com “tinta e papel” – como se dizia em Portugal, no século XVIII – o que lhe dava autoridade legítima. Essa afirmação, significa “esclarecer uma situação, tornar algo claro, sem oferecer nenhuma dúvida”, também tornar “algo por escrito, registado; fazer uma promessa, acordo”.

E se tem algo claro como a luz da manhã – inclusive registrado – é que por mais desagradável que o sofrimento seja, estamos todos sujeitos a dias ruins e a passar pela dor, que pode ser pesada [Eclesiastes 8.6]; mesmo sem aceitar essa condição e que reconhecer nossas limitações faça parecer uma atitude de fracasso ou falta de fé. Aliás, tentar negar os problemas pode gerar mais aflição, sendo desgastante a ponto de provocar suicídio, como aconteceu com diversos líderes espirituais – mesmo eles sendo pessoas mais iluminadas que nós.

Há poder em suas palavras

Segundo a confissão positiva – base da teologia da prosperidade – basta dizer aquilo que queremos pro desejo acontecer – sem mesmo precisar esfregar alguma lâmpada. E como declarar desejos possibilita a sua materialização, é preciso dizer apenas coisas positivas, se não as negativas irão nos afetar e impedir a ação de D-s; logo passar por sofrimento e necessidades é inadmissível. Essa visão começou com Norman Vincent Peale, que popularizou o conceito de pensamento positivo, principalmente após o lançamento de “O poder do pensamento positivo” (“The Power of Positive Thinking“, de 1952). Que acabou ganhando forma com a publicação “Há poder em suas palavras” (“What You Say Is What You Get“, de 1976) de Don Gossett, seguido do livro “A quarta dimensão” (“The Fourth Dimension“, de 1979), de David Yonggi Cho.

Se dizer algo pode ser poderoso, quanto mais pensar? A visualização mental – presente no ensino de Yonggi Cho – consiste em imaginar a realidade desejada com o máximo de sensações envolvidas. Já a autoajuda se apropriou da técnica psicológica usada pra melhorar condições mentais, e mudar comportamentos através de pensamentos positivos, pra ensinar a possibilidade de alterar a realidade através da lei da atração – termo surgido, num artigo de 1879, do New York Times, que passou a ser usado como o conceito atual a partir da publicação de “A lei da atração e o poder do pensamento” (“Thought Vibration or the Law of Attraction in the Thought World“, de 1906), de William Walker Atkinson.

Morte e vida ocultas na língua

O que dizemos influencia as pessoas [Provérbios 12.18] e a nós também, por isso devemos escolher o que dizer pra que nossas palavras não provoquem dano e, sim, tragam edificação e comunique graça [Efésios 4.29] – até porque elas têm o poder de nos condenar [Mateus 12.37]. Esse cuidado importa porque a morte e a vida estão em poder da língua, e se utilizada da maneira correta traz bons frutos [Provérbios 18.21], como isso não é simples de fazer quanto é falar, o livro “Comunicação não violenta” (“Nonviolent Communication“, de 1999), do psicólogo Marshall Rosenberg, ajuda a fortalecer a comunicação mantendo a humanidade, mesmo em situações difíceis. Porém, não dá pra controlar tudo que é dito e mesmo que desse não faria sentido filtrar cada palavra dita, isso só atrasaria a comunicação, e dificultaria de nos expressar; além disso, o excesso em ser “certinho” afasta as pessoas e pode levar a ruína [Eclesiastes 7.16] – daí a importância de uma comunicação mais humana, ainda que imperfeita.

Por mais cuidado que se tenha, é difícil domar a língua. Se a gente pudesse controlar esse membro de tamanho reduzido – capaz de incendiar uma floresta – teríamos um poder imenso sobre nós mesmos [Tiago 3.2-9], além da disciplina. Por isso devemos cuidar pra não ser incoerentes e maldizer as pessoas [Tiago 3.10-12]. Devido a essa dificuldade, falar algo negativo não significa que vamos atrair coisas ruins, assim como só falar coisas boas não trará apenas riqueza e bem-estar. Contudo, o que sai de nossa boca mostra o que há no coração [Mateus 12.34], assim se falamos mais coisas ruins é porque é isso que ocupa nossa mente. Não adianta ficar invocando harmonia e positividade se a realidade em nós está um caos e precisa ser mudada.

Cobras e lagartos

Embora a mistura de cobras e lagartos não se trate de um prato exótico, o chefe, Anthony Bourdain, chegou a provar essas iguarias, inclusive engolindo o coração de uma cobra ainda batendo. Ambos os répteis são usados na expressão “dizer cobras e lagartos”, com o sentido de maldizer, seja ofendendo, insultando ou falando mal de alguém. Segundo João Ribeiro, em “Frases Feitas“, de 1908, cobras é a forma antiga de coplas, estrofes usadas na poesia trovadoresca – durante a Idade Média – pra zombar ou ridicularizar alguém. O costume se tornou comum a ponto que “dizer cobras” passou a significar zombaria, insulto ou crítica. Com o tempo a palavra acabou designando apenas o animal e precisando de intensificação, assim como “alhos e bugalhos”, os lagartos foram adicionados as injúrias por influência da Bíblia – referência essa que não exista nas versões modernas. Quando houve a tradução do hebraico pro grego, a Septuaginta (LXX), de 270, Salmos 90.13 – atual Salmos 91.13 – foi transportado com pouca exatidão do original ganhando outro sentido. Essa versão influenciou a Vulgata, de 405, que acabou por inspirar as traduções seguintes, como a Reina-Valera Antigua, de 1569 – a única versão moderna que se aproxima da encontrada na LXX é a da CNBB, de 2002.

A livre tradução do versículo encontrado na Septuaginta, seria “andarás sobre a áspide e o basilisco, pisarás o leão e o dragão”. Onde áspide é cobra e basilisco, do grego basilískos, “pequeno rei”, se tratava de um lagarto ou serpente que se acreditava matar com um olhar – isso porque essa galera não chegou a conhecer a minha mãe. Em “Harry Potter e a câmara secreta” (“Harry Potter and the Chamber of Secrets”, de 2002), baseado no livro homônimo, de 1998, dá pra ver o quanto o bicho é perigoso, pra Leonardo da Vinci, a coisa era tão ruim que quando não conseguia matar algum animal com sua visão venenosa, secava plantas e ervas aromáticas fixando nelas o olhar. Atualmente basilisco é usado como nome científico de um lagarto da família das iguanas, encontrado nas florestas úmidas da América Central e do Sul. Com o superpoder de correr sobre as águas por curtas distâncias – que lhe rendeu o apelido de lagarto-jesus – ele também é um ótimo nadador e escalador.

Caminhos da vida

Da Idade Média pra cá passou um bocado de tempo, mas a expressão “dizer cobras e lagartos” é mais resistente que erva daninha e difícil de morrer feito zumbi. Usada pra ilustrar que algo falado, além de desagradável e deselegante, pode ser ruim e nocivo, ainda que tenha origem em nosso interior. Como mostra o conto “As fadas” (“Les Fées”), presente em “Contos de Fadas de Perrault” (“Contes de ma mère l’Oye” ou “Histoires ou Contes du Temps passé”, de 1697), que diferente de outras versões, ao invés de ganhar presentes, duas irmãs recebem o dom de ter materializada cada palavra dita. Enquanto da boca da bondosa saltam flores e joias, da má pulam cobras e sapos; assim se externa o que havia no interior de cada. Afinal de contas, quem é bom, tira bondade do tesouro em seu coração, já os ruins apenas coisas más [Mateus 12.35].

É o coração “quem despeja na boca as palavras, transformando-se em pedra ou cristal”, conforme poetizou João Alexandre, em “Coração”. Localizado no cérebro, a sede das emoções se encontra no sistema límbico, assim, a mente é quem dita os caminhos da vida, por isso devemos cuidar dela [Provérbios 4.23], mantendo apenas o que dá esperança [Lamentações 3.21]. Fazer isso provoca maior felicidade, descanso e reduz a ansiedade, conforme um estudo publicado no Journal of Behavior Research and Therapy. Pra sermos transformados é preciso mudar nossa mentalidade [Romanos 12.2] aliando isso a atitudes condizentes; dizer ou pensar positivo, por si só, não faz nada acontecer – apesar de termos que prestar conta pelas bobagens ditas [Mateus 12.36] – assim como apenas dizer que vai malhar não nos deixa definido, exceto se a gente se dedicar a puxar ferro.

Atirando pela culatra

Culatra é a parte de trás da arma, quando o tiro sai por lá é o mesmo que dar murro em ponta de faca e atirar no próprio pé. A gente tenta se livrar de algo mais acaba piorando a situação, que é exatamente o que acontece com a positividade tóxica. Segundo essa corrente, pensamentos e situações ruins devem ser empurrados pra baixo do tapete em favor da positividade. Porém, quanto mais tentamos esconder, esquecer ou fugir do que sentimos, mais atrofiamos a habilidade de lidar com nossos dilemas, gerando uma bomba-relógio que pode explodir a qualquer momento, motivada por situações indefinidas.

Emoções precisam ser extravasadas de alguma forma, e se as reprimimos elas encontram uma alternativa pra serem expurgadas, somatizando em doenças pelo corpo. Agir como se momentos ruins não devessem subsistir, não anula a sua existência. Também ignorar os sentimentos negativos e focar apenas nos pontos positivos, só servirá pra tornar a vida mais dolorosa. Esconder emoções pode turbinar o estresse emocional, já admiti-lo aumenta a probabilidade de buscar a ajuda necessária. Daí, assumir que não está tudo bem é o primeiro passo pra uma vida mais equilibrada – algo que Moon Kang Tae aprende na marra, em “Tudo bem não ser normal” (“Psycho But It’s Okay”, de 2020), após perceber que não precisava sempre ser forte por todos.

Como uma onda

Até a felicidade contém sua carga de sofrimento, um sorriso pode ocultar a dor gritando em desespero dentro de nós, e o fim da alegria pode trazer tristeza [Provérbios 14.13]. Por ele surgir através de diferentes motivos: nervosismo ou ansiedade, adquirindo um tom sem graça quando forçado ou fingido; de sarcasmo ou zombaria e até antagônico pra ocultar a tristeza. Inclusive pode ser causado por alguma desordem neurológica, como o transtorno da expressão emocional involuntária que nos faz rir à toa, e até como resultado de tumor no hipotálamo – região cerebral responsável por controlar as emoções – conforme apontou uma pesquisa publicada na revista Neurology.

Na real, uma hora a conta chega e o sofrimento nos atinge, afinal, cada época traz o seu próprio mal. É impossível estar bem o tempo inteiro e aceitar isso é ir na contramão da “positividade tóxica”, que tenta negar a existência dos problemas. Apesar do que nossos feeds fazem parecer – como visto aqui – não é possível esbanjar felicidade constantemente, já disse Mario Sergio Cortella: “ser feliz o tempo todo é uma tolice; ser infeliz o tempo todo, um desperdício de vida”.

O sofrimento é onda que ganha intensidade e altura até se espalhar em espuma e desaparecer – como mostra o conto “Abisso – Quando o pavor agita as águas“. E mesmo sendo a noite longa e fria quando o dia perfeito rompe, o choro que durou toda escuridão tem fim [Salmo 30.5], basta pra isso não dar atenção demais a dor, porque quando olhamos “o suficiente um abismo, o abismo olha de volta”, apontou Friedrich Nietzsche. É preciso saber que felicidade não é estável ou permanente, menos ainda natural, trata-se de um processo diário de construção, com doses de autoconhecimento e inteligência emocional.

O sofrimento é opcional

Nem sempre existe uma explicação pra dor, “o porquê do sofrimento não se prende a causa e efeito”, lembra Laura Morena na canção “De graça”, composta pelos irmãos Gabriel e Lucas Iglesias. Ela pode nos afligir mesmo sem haver qualquer motivo pra isso e até ser mortal, como pro modelo, que mesmo adepto da prática esportiva, sofreu um mal súbito enquanto desfilava na São Paulo Fashion Week. Ou ainda o garoto de 12 anos que após passar mal faleceu na escola, inclusive após o processo de reanimação durar 55 minutos. Como a sabedoria pop diz: “pra morrer, basta estar vivo”, ampliando esse conceito é possível dizer que pra sofrer, basta estar vivo, afinal, a dor é uma certeza dessa vida decaída [João 16.33].

Em “You Gotta Keep Dancin’” (em livre pt-BR: “Você deve continuar dançando”), livro de 1985, Tim Hansel lembra que “a dor é inevitável, o sofrimento opcional; não podemos evitar sofrer, mas é possível conter a alegria”. É fato que o sofrimento é desagradável e às vezes causa um incômodo ao qual não estamos preparados pra lidar, mas mesmo a vida sendo difícil, podemos escolher ter atitudes positivas e ser alegres ao invés de deixar que o estresse, a decepção e a dor – parte de nossa humanidade nessa dimensão corrompida – se transformar em sofrimento.

Continue a dançar

No livro, Tim compartilha seu sofrimento envolvendo uma dor crônica que durou dez anos e como encontrou alegria pra continuar dançando [Salmos 30.11]. Focar nos aspectos positivos da vida é importante, mas é preciso reconhecer que ela é feita de momentos bons e ruins. Emoções negativas fazem parte e são importantes, pois avisam que algo de errado não está certo – como vimos por aqui. É preciso sentir a dor, nos deixar atravessar por ela; entender como somos afetados, e lapidá-la pra seguir com resiliência. Essa é a positividade necessária, “precisamos disso, nos dias de luta”, como destacou Chorão e Thiago Castanho em “Só os loucos sabem”.

É preciso entender que fraquezas, necessidades e tristezas, além de parte de nossa humanidade, constituem em força [2 Coríntios 12.10] – que não vem de nós [Neemias 8.10] – não em derrota ou falha de caráter e, que o renovo vem mesmo a gente estando esgotado e sem forças [Isaías 40.29-31]. Negar a existência das dificuldades só aumenta o abismo em nós, assim como se prender a elas amarga a vida, é preciso deixá-las florescer o bem em nós [Romanos 8.28]. Ainda que no estado atual não pareça, as coisas sempre acabam bem, até lá vai haver dor e sofrimento, e se o bem até o momento não se instalou, nem a harmonia está presente, é porque, como diria Fernando Pessoa[s] “é porque ainda não chegou ao fim”.

Contextualizando

A frase que originou essa reflexão faz parte de “Interrompido – A curva no vale da sombra da morte“, uma minissérie que mostra que nossa humanidade é que nos leva a viver os desejos mais profundos e a cometer os erros mais insanos. Ela surge quando Socorro é questionada por Luan sobre como suporta tantas dificuldades, então ela lhe explica como se dá esse mistério em sua vida.

Artigo publicado originalmente no LinkedIn, também está disponível no Medium.


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Ósculos e amplexos,

Mishael Mendes Assinatura
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