“Dor incomoda, machuca, arrasa; não é pra ser prazerosa, existe pra provocar ação.”
Mishael Mendes [Romanos 8.18]
Dói, um tapinha não dói
Desde tomar um pedala pra ficar esperto, ser beliscado e até se machucar, nada dói mais que chutar algo com o dedinho. Quando o batemos, o tropicão provoca uma força de duas a três vezes a de nosso corpo, assim, mesmo tendo uma quantidade menor de receptores de dor, por ele ser menor e ter menos gordura, o sofrimento provocado é de arrancar lágrimas. Da mesma forma acontece, quando temos toda alegria sugada por um vazio no peito. Por se apresentar com aparência e formatos diferentes, a tarefa de descrever a sensação é difícil de fazer. Porém, algo é certo: uma dor incomoda muita gente, e causa sofrimento.
O dicionário Houaiss a define como: “sensação desagradável produzida pela excitação de terminações nervosas sensíveis aos estímulos dolorosos e classificada conforme o seu lugar, tipo, intensidade, periodicidade, difusão e caráter”.
Meu corpo, minhas dores
Apesar do consenso da dor se tratar de algo desagradável, cada um de nós a “experimenta” de forma singular; aprendendo a utilizar esse substantivo com o que vivenciamos. A real é que ela se trata de um fenômeno solitário, que mesmo duas pessoas falando da mesma experiência, parecem conversar sobre coisas diferentes, como apontou Kalpna Gupta, cientista da Universidade da Califórnia, Irvine. Já a Sociedade Brasileira pro Estudo da Dor (SBED), aponta que essa variação também ocorre conforme o aspecto cultural.
É fato que ninguém gosta de senti-la, mas nosso corpo é propenso a se adaptar a diferentes ambientes, inclusive a uma realidade onde reina o sofrimento. Dependendo do relacionamento com a dor, nossa qualidade de vida pode reduzir, levando a ansiedade e outros problemas psicológicos que a tornam profunda a ponto de criar raízes na alma. Assim, entramos num estado de repetição, em direção a um espiral infinito; onde ela rouba o sentido e o prazer de viver, nos fazendo esquecer que a vida é um processo diário de gratidão – como descobre dona Lourdes de forma arrasadora em “Interrompido – A curva no vale da sombra da morte“.
Pimenta nos olhos é refresco
Desde que seja nos olhos do outro, a situação de ter as vistas temperadas com pimenta pode até ser engraçada – o fato da dor alheia causar risos é o motivo do sucesso das vídeo-cacetadas e até de alguns youtubers e tiktokers sem noção. Mas é preciso entender que a dor do outro, ainda que não faça alarde – se condicionando a ficar no próprio quadrado – é real. Possuir diferentes intensidades e divergir quanto a causa, não reduz sua verdade. Por isso devemos ser solidários e demonstrar empatia – como visto aqui – sem a exagerar ou desprezá-la, só porque não é a gente que a experimenta. Não sabemos quanto tempo a pessoa está sofrendo e se sua dor se tornou crônica – que pode ser uma das condições mais debilitantes.
Com um impacto psicológico intenso, a dor crônica pode alterar o estado da mente ao estressá-la, com efeitos que podem ser tão severos quanto a própria dor física. Aumentando as chances em até três vezes de desenvolver depressão; condição essa que nem mesmo um masoquista aguentaria viver. O assunto é tão sério, que apenas nos EUA os custos médicos, em 2016, foram cerca de US$ 560 bilhões – valor maior que os gastos com câncer, doenças cardíacas e diabetes juntos.
Independentemente da dor ser física ou na alma, é preciso respeitar o outro e ser solidário. Fazer diferente do que a contagiante cantiga pop, “Samba Lelê” – de origem desconhecida e mais comum no Sudeste – cuja letra se monstra insensível ao pedir pro protagonista sambar mesmo estando doente, com a cabeça quebrada; fazendo sua indisposição parecer frescura, ao dizer que ele precisava mesmo “é de umas boas palmadas” pra se curar de vez. É preciso se solidarizar dos sentimentos das pessoas, seja sorrindo ou chorando [Romanos 12.15], ao invés de fazer comentários insensíveis ou tentar justificar o indefensável.
É só questão de opinião
Pode até parecer contraditório, mas no livro “Phantoms in the Brain – Probing the Mysteries of the Human Mind” (em livre pt-BR: “Fantasmas no cérebro – Sondando os mistérios da mente humana”, de 1999), o neurologista e cientista V. S. Ramachandran declarou que a dor é uma opinião. Uma afirmação que daria o maior bafafá, com direito até a cancelamento, não fosse o contexto em que foi dita: “a dor é uma opinião sobre o estado de saúde do organismo e não uma mera resposta reflexiva a uma lesão”.
É que apesar da maioria das experiências desagradáveis ocorrerem no cérebro, as informações recebidas são mediadas e processadas com base em nossas experiências; além de outros estímulos, fatores ambientais, percepção pessoal e o meio social.
Ó céus! Ó vida! Ó dor!
Diferentemente do que sugeriu René Descartes, a sensação não possui apenas uma entrada pro cérebro, como reflexo dos receptores de dor no corpo pra uma central de dor. Existe todo um sistema complexo envolvendo a percepção e a interpretação de dor corporal, inclusive em sua intensidade. A dor física pode começar na alma [Provérbios 17.22], e transmitida por cargas eletroquímicos que envolvem uma cascata de reações biológicas; cujos estados mentais e emocionais têm um efeito profundo em sua experiência – inclusive a memória. Razão pela qual ao ver o fogo, a gente evita se aproximar muito ou larga um objeto quando o percebemos quente demais.
Devido a essas nuances, em 2020, a Associação Internacional pro Estudo da Dor (IASP), atualizou o seu entendimento sobre a sensação, pra “uma experiência sensorial e emocional desagradável associada a danos reais ou potenciais nos tecidos”. Dor é algo sério, coisa de gente grande e pequena. Sem se importar com raça, credo ou etnia, ela afeta o organismo de forma ampla; uma simples dor de garganta é suficiente pra deixar todo corpo enfermo. Quem nunca ficou prostrado por conta disso?
É coisa da sua cabeça
Entendemos que a percepção de dor é o resultado de várias interpretações que chegam a mente? Entendemos! Aí que está o plot twist ou a reviravolta dessa história: como nosso cérebro é quem decide se o corpo dá ou não atenção a sensação, ele pode enviar uma mensagem de volta aos nervos pra silenciá-los se achar a situação segura ou essa ação necessária. Quem nunca encontrou um machucado sem ideia alguma de como ele foi parar ali?
Da mesma forma, a mente pode exagerar e prolongar a dor, ao instruir os nervos a continuar disparando mesmo quando desnecessário. O estado mental emocional também tem um papel importante no desenrolar dessa trama, já que a ansiedade faz o cérebro pedir mais sinais dos nervos; aumentando o comprimento e a intensidade da dor.
Sem importar a real dimensão da ferida, tendemos a sentir mais dor quando acreditamos que a lesão é maior e menos quando ela parece menor. Essa manipulação do cérebro nos bastidores da mente, fica perceptível ao considerarmos a eficácia do uso de placebo que produz alívio mesmo sem princípio ativo algum, também quando pessoas que sofreram amputação sentem dor no membro fantasma, ou ainda quando dói mais aquela ferida no momento em que a olhamos.
O penetrante som vindo das entranhas
O grito pode expressar a dor do dedinho que batemos lá encima, perplexidade – dando origem a gíria berro, gritada pra exprimir surpresa, animação e estado de choque – chamar a atenção, avisar do perigo e expressar liberdade – embora o do Ipiranga, pintado em “Independência ou Morte“, de 1888, por Pedro Américo, não seja um retrato fiel da realidade, mas criado pra despertar o nacionalismo. Berrar também pode induzir ao medo, nos gritos de guerra e como ilustra “O grito” (“The Scream”, de 1910), pintado por Edvard Munch – especialista em reproduzir em seus quadros: solidão, angústia, dúvida existencial e morte.
Uma pesquisa publicada na revista Current Biology, constatou que gritos agem direto na amígdala, ativando os circuitos de medo, aumentando a consciência e nos deixando alerta. Sendo desagradável e impossível de ignorar, quanto maior a variação do grito mais o som é percebido como aterrorizante, igual acontece com alarmes. Porém, ele também serve de válvula de escape – como mostra o poema “Quando grita o desespero em mim“. Se a música pode afastar energias ruins [1 Samuel 16.14-18,23] e cantar espantar os males, quem grita suas dores alivia, porque ao extravasar o sofrimento, sua passagem pelo cérebro é bloqueada, tirando o foco da dor, além de liberar endorfinas que dão a sensação de bem-estar e permitem resistir a aflição por mais tempo.
Grito de Independência
Berrar é uma ação automática quando nos machucamos, que também ajuda a aliviar dores internas, desde que feito num lugar afastado, como uma montanha ou mesmo o abafando com o travesseiro. Foi observando seus benefícios que Arthur Janov lançou “The Primal Scream” (em livre pt-BR: “O grito primal”, de 1970), onde explica que a neurose é causada pela dor reprimida de traumas na infância, assim, a solução seria reviver a dor ao abraçar lágrimas e gritos – inclusive usando um simulador de nascimento.
Sua teoria inspirou personalidades, como John Lennon, cuja influência pode ser percebida em “Plastic Ono Band” (em livre pt-BR: “Banda Ono de Plástico”, de 1970) – explicando a quantidade de gritos presentes, além da crueza e humanidade expostas. A banda “Tears for Fears” (em livre pt-BR: “Lágrimas por medo”) surgiu, em 1981, a partir do livro de Janov que ainda influenciou suas composições, sendo a mais famosa “Shout” (em livre pt-BR: “Grite”) – sampleada em “Let it go” (em livre pt-BR: “Deixe ir”, de 2005), composta por Kirk Franklin, Roland Orzabal e Ian Stanley; onde Franklin fala de seus traumas e do abandono materno que matou sua alma.
Porém, por mais que gritar traga alívio – ao liberar substâncias que aliviam o estresse – seu excesso tem o efeito contrário e causa transtornos de ansiedade e depressão, conforme apontou Anderson Siqueira Pereira, psicólogo e doutor em psicologia pela UFRGS, em entrevista ao VivaBem. O melhor seria utilizar a técnica bioenergética, onde são trabalhadas questões corporais, emocionais e energéticas pra resgatar a natureza primária e espontaneidade, permitindo aliviar tensões, ampliar a intimidade e a saúde, além de possibilitar lidar com os problemas ao invés de se deixar afogar por eles.
Cachorro com medo de linguiça
Como gato escaldado tem medo de água fria, cachorro mordido de cobra tem medo de linguiça. Ambos os ditados lembram que quando alguém tem uma experiência ruim, fica alerta com qualquer coisa parecida àquilo que lhe proporcionou o amargor. A dor causa estragos, separação, incomoda e pode até traumatizar, embora seu propósito não seja esse, sim, criar anticorpos que alertam a mente. No caso dos gatos nem é preciso terem sido escaldados, naturalmente os bichanos possuem pavor de água fria – algo relacionado com seu sistema respiratório frágil.
Por mais desagradável que seja: a dor é fundamental pra nossa sobrevivência. Dor indica desequilíbrio, sinalizando que algo de errado não está certo, assim, quando nosso corpo é ferido ou ameaçado, as fibras nervosas enviam uma mensagem ao cérebro pra nos afastar da situação nociva. Sem isso, a gente não se daria conta da decadência do organismo, sendo impossível mantê-lo intacto e acabaríamos nos desfazendo por aí feito manequim defeituoso. Dor serve pra nos impulsionar a agir e resolver o que precisa; se dói é porque ainda se faz necessário haver mudança.
Artigo publicado originalmente no LinkedIn, também está disponível no Medium.
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Ósculos e amplexos,
Autor de Interrompido – A curva no vale da sombra da morte, é um cara apaixonado total por música, se deixar não faz nada sem uma boa trilha sonora. Bota em suas histórias um pouco de seus amores e do que sua visão inversível o permite enxergar da vida.