“Até mesmo uma crise mundial proporciona algo de bom, ao dar as pessoas a oportunidade de exercer misericórdia.”
Mishael Mendes, Interrompido – A curva no vale da sombra da morte
Fúria em alto mar
O tempo havia atravessado o interior da noite quando o vento decidiu mostrar sua força e o oceano se revoltou. Uma tempestade começou a se formar, a violência das águas aumentaram querendo engolir o barco com você junto. Tamanho terror tornou possível ver a face da morte em seus olhos enquanto esculpia o desespero por seu rosto.
Sem ter pra onde olhar, você encara a tempestade e ela te olha de volta, lhe esmagando com sua opressão. Uma voz sobre as águas atravessa a tempestade e lhe pede pra compartilhar o seu sustento, “mas não há ninguém aqui”, você se prepara pra dizer e no instante em que olha em volta percebe não estar só; há outras pessoas na embarcação, tomadas pelo pavor em ondas que surgem cada vez maiores. Como se sua vida dependesse do que tem, você se agarra ao que lhe resta enquanto tudo está prestes a se desfazer, mesmo sabendo que o máximo que isso pode garantir é morrer de barriga cheia – leia na íntegra “Abisso – Quando o pavor agita as águas“, o conto que surgiu com essa intro.
O barraco desabou
A praticidade traga pela tecnologia, e a rotina corrida, têm cada vez nos isolado mais em nós mesmos enquanto dispensa o contato humano, afinal, é possível viver vidas inteiras através do streaming, fazer compras, comer e até nos comunicar sem precisar sair do conforto de nossa solidão. E quanto mais trabalhamos, mais temos bem-estar e menos tempo pra qualquer outra coisa além de nós mesmos. Só que a calmaria aliada a tanta praticidade reduz nosso mundo numa bolha que nos faz acreditar estarmos só.
Porém, fomos feitos pra nos relacionar, segundo Matthew Lieberman, professor de psicologia da UCLA, “estar socialmente conectado é a paixão vitalícia do nosso cérebro; está embutido em nosso sistema operacional há dezenas de milhões de anos.” Mas a dedicação e o comodismo acabam nos fazendo esquecer de olhar além de nosso umbigo e apenas quando o mundo começa a desabar percebemos haver outras pessoas. Não há como negar o impacto do COVID-19, ao expor a nudez de nossas fraquezas de forma cruel. O sofrimento, o isolamento e o medo destacaram nossas limitações e fragilidades – físicas e mentais – pondo a todos nós no mesmo patamar, independentemente de posses ou status.
Somos feitos de pó
Ainda não está sendo fácil atravessar a pandemia, embora ela não possua a mesma força de quando nos surpreendeu com proporções desastrosas. Mas, por mais destrutiva e apavorantes que tragédias com poder de sacudir o mundo sejam, nos fazem recordar sermos todos feitos da mesma matéria [Gênesis 2.7]. Humano é “pó, como todo mundo”, conforme aponta “Oficina G3”, em “Até quando? (Humanos)”, algo confirmado pela etimologia de sua raiz latina: humanus é “aquele que da terra surgiu”, estando ligada à raiz indo-europeia *dhghem-, terra.
Geral sentiu na pele que todo nosso cuidado não pode acrescentar um centímetro a nossa altura ou prolongar nossa vida em uma hora sequer [Mateus 6.27]. Nunca estamos preparados pro desconhecido que pode chegar a qualquer momento, bastando pra isso piscar. Por isso é preciso nos envolver e ajudar, ao invés de apenas esperar por uma solução, do governo ou de políticas públicas, fazer nossa parte impacta o todo.
Pão sobre as águas
Em Eclesiastes 11.1, Salomão aconselha “lance o seu pão sobre as águas, porque depois de muitos dias você o achará”, tal orientação pode soar problemática, mas a leitura dos versos seguintes nos leva a entender que ele está usando uma linguagem poética pra se referir a fazer boas obras. Ele prossegue dizendo que devemos ajudar o máximo de pessoas que der, porque desconhecemos o mal que pode surgir [Eclesiastes 11.2], como não temos controle sobre o tempo ou a natureza [Eclesiastes 11.3] devemos parar de tentar prever as condições [Eclesiastes 11.4], afinal, as coisas acontecem segundo os mistérios de D-s [Eclesiastes 11.5].
Exercer misericórdia é o mesmo que lançar o pão sobre as águas da vida, cujas correntezas do tempo levam nossos recursos investidos pra longe, sem que a gente saiba pra onde. Agir em meio a tempestade da vida fornecendo alimento ao necessitado nos faz semear esperança, ao mostrar que mesmo quando o mundo desaba é possível recomeçar. Isso provoca uma reação que desperta o desejo das outras pessoas em se unir pra buscarem a solução, levando as coisas a acontecerem em tempo recorde e dá a certeza que vale a pena recomeçar mesmo após ser esmagados pela fúria da destruição.
Investimento de alto risco
Gastar tempo e recursos ajudando as pessoas é um investimento de alto risco porque o cenário pode não ser favorável e existe a probabilidade de perdemos o que foi empregado. Algo que realmente vai acontecer se o fizermos com interesse egoísta [Filipenses 2.3], esperando alguma recompensa, seja reconhecimento e fama ou algum favor. Assim, devemos fazer o bem sem interesse ou expectativas de recompensa, exercendo justiça e salvando as pessoas da morte sem meter demência [Provérbios 24.11-12], agindo com desapego e o altruísmo de servir ao necessitado – nem mesmo uma mão deve saber a caridade que a outra executa [Mateus 6.1-4].
Tudo lançado na vida é carregado por sua correnteza, mas boas ações ultrapassam o espaço-tempo e retornam pro ponto de origem mesmo tendo passado muitos dias. Já dizia Esopo “nenhum ato de bondade, por menor que seja, é desperdiçado”. Abrir mão é o mesmo que assumir o controle de nosso destino porque garante que vamos encontrar o sustento no momento oportuno, assim, em situações de calamidade, o que garante nossa sobrevivência não é se agarrar as sobras que podem nos sustentar, mas compartilhar com quem precisa [1 Reis 17.10-16].
Viver é incerteza e investir na caridade é um risco que cria oportunidades pra sorte e rendimentos altamente rentáveis, como a aplicação é feita fora da dimensão temporal, garante que as ações passadas retornem no futuro, já que o empréstimo é feito a D-s que paga com juros vantajosos [Provérbios 19.17].
A vida é um rio
Exercer misericórdia abre a percepção pra vermos estar todos conectados, o que fazemos por um, vale pra todos. Geral está no mesmo barco, a remar pelo rio da vida – como poetiza Raffa Torres, em “A vida é um rio” – assim podemos e devemos ajudar sem nos cansar de fazer o bem [Gálatas 6.9], porque a direção que o outro rema: importa. Ao contrário do que se diz não “é cada um por si e Deus por todos”, mas cada um por todos e D-s conosco [Josué 1.9].
Em “Não existe amor em SP”, Criolo alerta: “não precisa morrer pra ver Deus”. Algo real, pois é possível dar-lhe de comer, saciar sua sede, hospedar, vestir, visitá-lo e até mesmo o ver no próximo [Mateus 25.34-45], em cada pessoa que necessita de ajuda [Lucas 10.25-39]. É fácil dizer que amamos a D-s – o amor já foi abordado com profundidade por aqui [Articulário 05] – mas como podemos amar quem não vemos e desprezar quem podemos tocar e oferecer ajuda [1 João 4.11-12,20-21]? Precisamos resgatar em nós o sentimento de misericórdia, exercer empatia e demonstrar responsabilidade afetiva, ao nos conectarmos com o outro através daquilo que nos equaliza: nossas necessidade e dependência uns dos outros. Deixar de fazer isso nos coloca em trevas abismais – como comento na crônica “O dia mais escuro da história da humanidade“.
Efeito bumerangue
Exercer os músculos da compaixão resulta em mais que um sorriso no rosto, traz realização e prosperidade a longo prazo nas esferas pessoal e profissional, além de nos desenvolver como melhores seres humanos a medida que fazemos a diferença na vida das pessoas. Isso traz mais que curtidas, conquista corações e cria os laços que precisamos pra florescer; além de uma valorização pessoal maior e conexões mais fortes e autênticas, enquanto as necessidades de afeto de ambos os lados são supridas.
Melhor é dar que receber [Atos 20.35], porque isso fortalece a mente afetando nosso bem-estar de dentro pra fora de maneira significativa. Nosso humor melhora fazendo o estresse sumir, a pressão arterial diminui devido à liberação de dopamina e serotonina no organismo, resultando em muita felicidade, redução nos quadros de depressão, aumento da longevidade e melhora da vitalidade.
Comece pelo começo
Nem sempre é fácil oferecer ajuda, especialmente quando as pessoas lidam com algo complexo ou quando não temos muito o que ofertar. Mas impactar a vida das pessoas não exige muitos recursos ou tempo, é possível começar com pequenas ações, como recolhendo o lixo ao sair, devolvendo carrinhos de compras perdidos, demonstrando gratidão às pessoas que tornam a sociedade melhor, como bombeiros, enfermeiros e professores. Até mesmo oferecendo um abraço à alguém, um elogio sincero ou mesmo conselhos [Provérbios 22.9] a quem precisar.
Tudo isso cria uma onda de bondade que deixa nosso coração mais receptivo e uma vez que o primeiro passo é dado fica mais fácil continuar na caminhada. Segundo Jim Blake, CEO da Unity World Headquarters, “uma vez que começamos a realmente ceder em nossas vidas, essa energia de generosidade cria uma reciprocidade que aumenta nossa própria prosperidade”. Quando começamos a procurar pequenas oportunidades de servir, o tempo – que mal costuma dar pra gente fazer as obrigações – se dilata e vemos o quanto dele temos disponível pra doar aos outros. A bondade diária é o que nos salva e recarrega o mundo de esperança, afinal, estamos conectados e fazemos parte na construção de uma sociedade renovada [Mateus 5.16].
Artigo publicado originalmente no LinkedIn, também está disponível no Medium.
Fortalece a firma
Ao adquirir o livro indicado você ajuda na produção de mais artigos como esse que informam enquanto te distrai.
Se você gosta muito de ler, o melhor é adquirir uma assinatura do Kindle Unlimited que possui milhares de livros. Agora se prefere lançamentos de filmes e séries, descontos nas compras com frete grátis, além de milhares de músicas e benefícios em jogos, opte por uma assinatura do Amazon Prime.
Aproveita pra reagir a esse artigo e deixar seu comentário sobre o quanto você curtiu. Ah! Compartilha também com aquele parça que você sabe que vai curtir a postagem. Antes de ir, salve esse artigo nos seus favoritos, assim você pode voltar depois e refletir um pouco mais.
Ósculos e amplexos,
Autor de Interrompido – A curva no vale da sombra da morte, é um cara apaixonado total por música, se deixar não faz nada sem uma boa trilha sonora. Bota em suas histórias um pouco de seus amores e do que sua visão inversível o permite enxergar da vida.