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Articulário: O espelho nos outros - .inversivel
Articulário: O espelho nos outros
Ali Jouyandeh/ Unsplash

O espelho nos outros

“Quem vê apenas defeitos tem deficiência em reconhecer o real valor das pessoas.”

Mishael Mendes [Mateus 7.3]

Se eu fosse você

Segundo a cultura pop, existem dois superpoderes que permitem conhecer melhor as pessoas, o primeiro seria o de ler mentes, deixando saber o que o outro pensa, ao eliminar barreiras e tornar a comunicação mais direta e sincera, inclusive nossas atrações. O segundo é o de trocar de corpo, que nos colocaria de forma real no lugar do outro, permitindo uma experiência mais profunda de suas interações, vivência e percepções, levando a sermos mais compreensíveis com seus sentimentos e escolhas; como em “Your Name” (“Kimi no na wa”, de 2017), baseado no livro de mesmo nome, que conta a história da troca de corpos entre adolescentes, de sexos diferentes, que possuem uma conexão desconhecida – por seu tom poético e uma ilustração linda, é uma história que vale o play.

Apesar de tudo não passar de ficção, a gente tem esses superpoderes, embora os use sem mesmo se dar conta. Com a empatia, é possível ler a mente das pessoas – ou pelo menos saber o que se passa lá, como falado aqui – ao capturar o que a pessoa sente através dos neurônios espelho. Já trocar de corpo, acontece mais do que a gente gostaria, não de uma forma legal, essa habilidade acaba sendo tão ou mais confusa que em “Todo dia” (“Every Day”, de 2018), e aflitiva ou perturbadora, como em “A pele que habito” (“La Piel que Habito”, de 2011) – baseado no livro “Tarântula” (“Tarantula“, de 1984), de Thierry Jonquet. E essa troca acontece através da projeção, onde refletimos no outro aquilo que está em nós.

O santo não bateu

Às vezes, é bater o olho em alguém pra gente não gostar da pessoa, quando isso acontece dizemos que não fomos com a cara dela. Ainda bem que a expressão não passa de metáfora, ao contrário do que os apps de troca de rosto e o deepfake fazem parecer, se a coisa fosse literal seria algo entre o Leatherface (em livre pt-BR: “Cara de pele”), do filme “O massacre da serra elétrica” (“The Texas Chain Saw Massacre”, de 1974), cuja mascara é feita de pele humana, e “A outra face” (“Face/ Off”, de 1997), onde o agente do FBI, Sean Archer, troca de rosto com o terrorista Castor Troy, em busca de vingança, e vê sua vida se transformar em pesadelo.

Essa antipatia pode aumentar ao sermos forçados a interagir com a pessoa, criando um clima desconfortável. E validando nossa implicância e desprezo por ela, assim, encontramos motivos pros outros nos apoiarem em nossa decisão de não gostar de fulano, nem que a vaca tussa. Contudo, por mais desagradável que a pessoa seja, os defeitos que vemos, às vezes até exagerados, a ponto de incomodar só de imaginá-la, podem não se tratar do que aparenta, mas ter a ver com algo mais profundo que uma característica insuportável que a pessoa não consegue mudar.

Sentados no próprio rabo

Quando há algo desagradável no outro, pode ser que o defeito enxergado se trate do nosso, de algo relacionado a ele ou daquilo que achamos que nos identifica, ainda que de forma inconsciente. Isso é causado pelo mecanismo de defesa da mente, que espelha no outro aquilo condenado em nós. Assim, no momento em que algo se assemelha com atitudes, ou desperta impulsos condenados em nós, os medos e inseguranças ativam o sistema de defesa, fazendo a projeção acontecer, daí passamos a ver comportamentos e sentimentos inaceitáveis. Isso acontece porque como é difícil lidar com questões intangíveis escondidas em nós – algo que não ocorre com o que está diante dos olhos – a mente projeta nossas falhas, num deslocamento inconsciente, pra lembrar o quanto essas imperfeições são ruins e prejudiciais. Ao lançar o reprovável longe de nós, o atribuindo a outra pessoa, objeto ou animal, se torna possível lidar com esse problema e suas implicações,  de distância suficientemente segura pra preservar nossa autoestima. A ideia não é condená-los abertamente, mas ver o quanto aquilo é ruim e não fazer mais.

A sabedoria pop tem um ditado vintage que ilustra essa situação: “macaco senta no próprio rabo pra falar mal do rabo dos outros”. Segundo Sílvio Romero, certo macaco preocupado com a cotia acabou esquecendo de cuidar do próprio rabo e o perdeu, mesmo após maior trabalho pra recuperá-lo, não deu em nada. Isso continua a acontecer quando esquecemos que pra ajudar ou apontar algo no outro é preciso primeiro enxergar com clareza [Mateus 7.3-5]. Como vemos e tratamos o outro – alvo de nossa projeção – diz mais sobre como nos sentimos sobre nós mesmos, que como o percebemos – como falado aqui. Assim, se vemos apenas defeitos, isso dificulta gostar da pessoa e de nós mesmos, afinal, o outro é espelho do que somos e não enxergamos em nós, a não ser de frente pro semelhante.

A projeção no divã

Apesar da projeção surgir logo após o ser humano se tornar autoconsciente, como forma de explicar o motivo de seu erro, atribuindo a culpa ao outro [Gênesis 3.6-19], ao invés de assumir a própria responsabilidade. Esse mecanismo de defesa da mente só foi notado por Freud após algumas seções, onde pacientes acusavam outras pessoas de terem os mesmos sentimentos que demonstravam ter. Seu primeiro relato sobre a projeção ocorreu numa carta, de 1895, na qual descrevia uma paciente que tentou evitar confrontar os sentimentos de vergonha, imaginando os vizinhos fofocando dela.

A identificação desses mecanismos foi refinada por sua filha, Anna Freud, em “O ego e os mecanismos de defesa” (“Le Moi et les mécanismes de défense”, de 1936), e pelos psicólogos Carl Jung e Marie-Louise von Franz, os quais argumentaram que a projeção também é usada pra nos proteger do medo do desconhecido, ainda que nos cause danos. Como o caso de histeria, que deixou onze pessoas feridas e provocou a morte de um bebê, após verem o diabo num dos parentes, algo que fez geral se jogar do 3º andar. O perigo da projeção é que ela utiliza ideias preconcebidas em coisas que não entendemos pra tornar o mundo mais previsível e padronizado.

Campo de distorção

Pode ser que a realidade que experenciamos não passe de uma ilusão bem elaborada, ao estilo “Matrix” (“The Matrix”, de 1999) – abordei as implicações disso nesse vídeo – o que facilitaria modificar a realidade. Entretanto, deixando de lado o conceito de multiverso, como mostrado de forma surreal em “Doutor Estranho no Multiverso da Loucura” (“Doctor Strange in the Multiverse of Madness”, de 2022), ou mesmo como mágica, na graphic novel “Repeteco” (“Seconds“, de 2014), do Bryan Lee O’Malley. Caso fosse real, o multiverso pareceria mais uma grande confusão, como em “Tudo em todo o lugar ao mesmo tempo” (“Everything Everywhere All at Once”, de 2022); ainda assim, indo além do papo místico, a realidade pode ser moldada por nossa mente.

De acordo com Freud, os mecanismos de defesa mentais podem corromper a percepção ao fornecer uma representação imperfeita e deformada da realidade; onde não apenas nossas experiências são alteradas, mas o mundo se torna um lugar hostil. Culminando numa visão impregnada de ceticismo, como ocorreu com o movimento decadentista, surgido no final do século XIX, pro qual o mundo se encontrava numa decadência moral resultante da busca pelo prazer que lhe fazia transbordar infelicidade e egoísmo  – conceito esse surgido no século XVII, através dos escritos de Montesquieu. E cujo verso de Verlaine, “eu sou o império ao fim da decadência”, ilustra essa percepção deteriorada, onde nossa visão de mundo acaba por alterar a vivência, também sendo  alterada por ela, fazendo a realidade se deformar.

Sartre, um dos principais filósofos do existencialismo, apesar de mimado pelos avós, perdeu o pai ainda bebê e seu relacionamento com a mãe não passava de amizade; sem contato com outras crianças, acabou forçado a alcançar a maturidade intelectual precocemente, pra conseguir a atenção dos adultos. Essas experiências distorceram sua interpretação de mundo, o levando a projetar seu pessimismo na existência – cujo vício em anfetamina também não ajudou nada. Assim, ele excluiu total a presença de D-s, chegando a um pessimismo cru e visceral que destituiu a vida total de sentido, deixando a existência sem propósito nenhum – como abordado por aqui [Articulário 16]. Outro que também projetou seu pessimismo foi H.P. Lovecraft, ao criar o cosmicismo, filosofia literária onde o ser humano não passa de insignificância na vastidão universal; apesar do brilhantismo, o pessimismo o levou ao racismo e a acreditar que dificilmente o mundo se tornaria mais justo e o autor acabou morrendo empobrecido e desnutrido, em 1937, após uma vida difícil.

O inferno são os outros

Segundo Sartre, passamos a existir a partir de nossas escolhas e toda essa liberdade resulta em angústia, ainda mais porque devemos nos ajustar a existência dos outros. O que causa vergonha e nos objetifica, já que somos reduzidos a uma fração de nossa existência pelo que é percebido de nós. Assim, entramos em conflito com os desejos do outro, que nos tiram parte da autonomia, impedindo a gente de desfrutar da liberdade porque aliena e nos prende num tipo particular de ser – dessa forma, o outro é o responsável por nossos males. Por isso o melhor é viver o hedonismo, a busca do prazer, sem deixar o outro interferir em nossas escolhas. A peça “Entre quatro paredes” (“Huis clos“, de 1943), ilustra essa problemática: ao chegar no inferno, três personagens precisam penar algo diferente total do que imaginavam: passar a eternidade numa sala na companhia dos companheiros, onde descobrirão que “o inferno são os outros” – como canta os Titãs, sobre o direito de viver um estilo largado.

Por pior que o outro seja pintado na projeção de Sartre, ele acaba por admitir que o olhar do próximo – que expõe, enfraquece e fragiliza – é o que nos transforma em sujeito. Afinal, nossas decisões não são tomadas apenas porque o outro nos observa, mas seu olhar lembra existir algo maior que a busca do prazer [Hebreus 12.1], sendo preciso conter nossa liberdade e ter uma boa convivência [1 Coríntios 8.8-13], porque o que nos fortalece é o amor [1 Coríntios 8.1]. Até Auguste Comte que, em 1819, afirmou que tudo é relativo, reconheceu dependemos uns dos outros pra haver ordem e progresso na sociedade – princípio esse expresso na bandeira do Brasil, cujo lema foi retirado de sua frase “o amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim”. Assim, o inferno não são os outros, nem neles está, mas na forma que vemos nossas falhas projetadas e em como lidamos com elas em nossos relacionamentos.

Identificações cruzadas

Como a projeção e a distorção nem sempre são identificáveis, podemos enxergar inseguranças ou motivos pra manter distância do outro, o rejeitar, tentar justificar algum embaraço nosso e até arrumar desculpas pra terminar um relacionamento; ou causar agressões passivas, como fazer algo que a pessoa não gosta pra provocar ou irritá-la. A continuidade dessas práticas leva a um grau de distorção mais profunda chamada identificação projetiva, que é quando o alvo passa a expressar os sentimentos projetados e até incorporá-los a sua identidade, após ser maltratado ou receber diversas acusações de algo que não é, se tornando inseguro, distante ou reativo – dessa maneira acabamos por fazê-lo ficar como a gente.

Existe ainda a projeção complementar, ela assume que as pessoas compartilham as mesmas opiniões e habilidades que nós, o que pode causar espanto ao ver como elas agem e pensam dissonante, inclusive seu ritmo diferente provocar impaciência – na real se quer vemos uma cor de forma igual, e até ouvimos algo diferente mesmo que a palavra dita seja a mesma. Além de tornar a realidade complicada – conforme vimos por aqui – a projeção pode nos prender no efeito bolha, ou filtro de bolha, onde as buscas e feeds de notícias reforçam nossas percepções através de algoritmos que exibem informações conforme nossas preferências, não a realidade dos fatos.

Janelas de Johari

Apesar do nome místico, Johari vem da junção do nome de seus criadores, os pesquisadores americanos Joseph Luft e Harry Ingham. A Janela de Johari analisa as camadas do relacionamento interpessoal, as separando em quarto tipos: o “eu aberto”, o “eu oculto”, o “eu cego” e o “eu desconhecido”. As duas primeiras são conhecidas pela própria pessoa, já as últimas são ignoradas por ela. Apesar de diferentes, uma se inter-relaciona com a outra, refletindo em nossas ações ativas, proativas e reativas, implicando ainda em como as pessoas enxergam nossos comportamentos e atitudes, embora da forma deles.

Na camada aberta ficam as percepções conhecidas pela pessoa e os outros, quanto melhor o alinhamento aqui, melhor os problemas podem ser enfrentados e resolvidos, exigindo sinceridade e confiança. Na oculta é onde fica o que tentamos esconder e se reflete em nossa atitude defensiva e em como somos vistos. Já na cega está o que as pessoas veem em nós, mas que não notamos por sermos guiados pelas percepções ocultas, podendo levar a atitudes hostis. E na desconhecida estão impulsos, sentimentos reprimidos,   potencialidades, talentos e habilidades ignoradas, e criatividade bloqueada, adormecidos no inconsciente, longe do conhecimento de todos, inclusive de nós mesmos.

Fuga das projeções

A gente tem uma deficiência enorme em reconhecer as próprias falhas, o mesmo não acontece com os defeitos alheios, mas pode ser que a falta de limpeza da casa vizinha seja causada por nossa janela suja – por isso, é preciso ver direito antes de apontar falhas no outro. Afinal, estamos todos sujeitos a errar em algum ponto, mesmo o que se acha melhor preparado [1 Coríntios 10.12]. É preciso evitar fazer críticas e controlar a língua, pra ela não causar incêndios irreparáveis [Tiago 3.1-10]. Nosso conhecimento é sempre superficial, vemos apenas uma parte da janela [1 Coríntios 13.12], e o que não enxergamos pode estar projetado no outro. Portanto, por mais que a gente pense saber de algo, esse julgamento será incompleto e injusto, como visto na cena mais comovente de “A cabana” (“The Shack”, de 2017) – baseado no livro “A cabana” (“The Shack“, de 2007), de William P. Young – o que nos levará a falsas presunções que vão retornar na mesma medida, e até maior pra gente [Mateus 7.1-2, Marcos 4.24].

O outro não é chamado de semelhante apenas por sermos da mesma espécie e natureza, mas por representar a identidade com a qual somos parecidos. Aprender a reconhecer a projeção, nos deixa mais consciente em nossas interações futuras e evita conflitos. Isso é possível prestando atenção nas reações negativas em nossos relacionamentos e buscando sua causa, feito isso, é preciso encarar os problemas e disputas ao invés de ficar na defensiva. Assim dá pra responder de forma positiva e reconhecer quando a outra pessoa projeta em nós, como quando surge uma reação forte sem causa aparente. Caso a gente se pegue num conflito de projeção, o melhor é se afastar pra pensar de forma racional, se causada pelo outro podemos reforçar o que dizemos e o que não foi dito, mantendo a calma – algo que pode ajudar nisso é o livro “Vivendo a comunicação não violenta” (“Living Nonviolent Communication“, de 2012), de Marshall Rosenberg, que ajuda a estabelecer conexões sinceras e a resolver conflitos de forma pacífica e eficaz. Fazer isso, além de ajudar a desviar a projeção, e fazer a pessoa refletir ou assumir a responsabilidade, evita internalizarmos críticas injustas e culpa – o problema está em aceitar o que é dito. Se não der certo, o melhor é se retirar da conversa. Depois de tudo isso, se ainda for difícil pra mudança acontecer em nosso caráter, podemos lançar essas deficiências e necessidade de proteção sobre D-s [1 Pedro 5.7], assim poderemos viver em plenitude, sem as máscaras que a projeção coloca no outro com a nossa cara.

Artigo publicado originalmente no LinkedIn, também está disponível no Medium.


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Ósculos e amplexos,

Mishael Mendes Assinatura
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