“Quanto mais se mexe maior é a tendência da massa desandar.”
Mishael Mendes, Interrompido – A curva no vale da sombra da morte
Fica, vai ter bolo
Fazer um bolo leve e fofinho não é difícil, independentemente se ele será preparado no modo tradicional, usando apenas as mãos, ou de forma prática, com liquidificador ou batedeira: basta utilizar os ingredientes em temperatura ambiente, misturando primeiro os líquidos, que exigem mais tempo de mistura pra incorporarem bem, como ovos e manteiga. Pra evitar bolinhas, que atrapalham o crescimento da massa, o ideal é peneirar os ingredientes secos, como farinha, açúcar e chocolate em pó; com exceção da farinha e do fermento, os demais secos podem ser batidos.
Ao terminar o processo, é só transferir a mistura pra outro recipiente onde a farinha deve ser adicionada aos poucos e mexida com leveza até formar uma massa homogênea, finalizando com o fermento. Chegar no ponto de homogeneidade é mexer até os ingredientes estarem bem misturados e não mais que isso, assim conseguimos uma textura agradável, macia e um bolo saboroso.
Mexe, mexe, mexe com as mãos
Um dos principais erros no preparo do bolo está em mexer demais a massa, exagerar nesse passo pode até deixar o bolo com um aspecto mais bonito e melhor aparência, mas fica borrachudo e denso a ponto de grudar no céu da boca. Já quando misturado apenas pra incorporar a farinha, ele ganha um aspecto leve e areado. Isso acontece porque como as farinhas são utilizadas pro preparo de diferentes alimentos, possuem uma quantidade maior de glúten. Quando a massa é mexida além do necessário, acaba por ativar o glúten, deixando o bolo solado e pesado.
Ao contrário do que se imagina, o glúten não é vilão, os problemas atribuídos a ele se dão pelo excesso de carboidratos; fora quem tem intolerância, ele não causa dano algum. É ele quem dá a elasticidade necessária aos pães, e entra em ação quando a farinha é combinada aos líquidos, retendo o ar criado por agentes como o fermento – que dão crescimento ao bolo. Da mesma forma acontece com o perfeccionismo, ele exige mais atenção a detalhes que não serão vistos ou percebidos, gastando um tempo desnecessário ao aumentar o número de erros devido a tantas alterações, que ocasionam ainda mais correções.
Um hino ao perfeccionismo
Exaltado como algo bom por personalidades geniais – mas problemáticas e de difícil relacionamento – como Steve Jobs, o perfeccionismo faz mal mesmo em pequena quantidade. No caso de Jobs, trouxe gastos elevados e desnecessários à Apple – sendo uma das causas dos preços altos de seus dispositivos – e atrasos em importantes lançamentos; além de criar uma cultura polarizada de oito ou oitenta, que deixava funcionários exaustos pelo retrabalho e atenção aos detalhes que não costumam ser notados, como revela Walter Isaacson em “Steve Jobs – A biografia” (“Steve Jobs – The Exclusive Biography“, de 2011), a biografia oficial que gerou o filme “steve jobs”, de 2015.
O perfeccionismo cria uma necessidade de tentar aperfeiçoar ao máximo cada coisa que nos chegam as mãos, sem nunca estar satisfeito com o resultado, já que por mais que o polimos há sempre arestas e imperfeições que precisam ser trabalhadas pra lhe dar uma aparência melhor, lhe tornar mais compreensível ou acrescentar valor ao que é desenvolvido.
Gigantes de moinhos de vento
O perfeccionismo enraizado na mente, torna os olhos errados e nos faz perceber defeitos inexistentes ou desnecessárias, onde se trava uma luta com gigantes de moinhos. Desafios esses que apenas nós podemos ver, mas necessários serem vencidos pra avançar de fase e trazer o reconhecimento do gênio que somos. Mesmo sem freio, ele empurra ladeira abaixo, numa necessidade urgente de buscar uma imagem que só pode existir numa mente doentia, que tenta concretizar um ideal que nunca será atingido, porque muda constantemente exigindo mais e mais. Apesar do estereótipo da busca pela perfeição, cada perfeccionista possui o próprio ideal pessoal.
O mundo é um caos e se não há como consertá-lo, ao menos o perfeccionista pode melhorar tudo que estiver ao seu redor, criando padrões e regras que precisam ser seguidas a risca pra haver harmonia, e o meio ficar mais bonito e simétrico aos seus olhos errados. Em um mundo de imperfeição, tudo que é feito passa a necessitar de significado e profundidade, e pra garantir isso são estabelecidos padrões que não podem expressar a realidade, tanto pra si, como pros que convivem consigo – podendo ser ainda mais duros pros sob sua supervisão, já que são rápidos em achar falhas e críticos demais com elas.
Expectativas desleais
Prendendo a expectativas desleais, o perfeccionismo atrela a identidade e a capacidade, a resultados fixos e em sua obtenção, por isso, acredita que quanto melhor a apresentação final, menor as chances de erros e de seu desempenho ser superior. Dessa forma, a autoestima fica a mercê de como as realizações são recebidas. Na expectativa de ganhar elogios, o perfeccionista deixa de celebrar o próprio sucesso, buscando aprovação e validação de pessoas específicas em sua vida.
Em busca de cumprir padrões altos e delirantes, ele dá o sangue em tudo que faz, temendo não se destacar ou ser confundido com alguém medíocre. Uma dedicação exagerada se faz necessária, porque há sempre algo que o desqualifica, e o que é feito nunca é bom o suficiente. Tudo isso acaba causando descontentamento e infelicidade que podem resultar em ansiedade, distúrbios alimentares e automutilação – já que a dor permite alterar o foco e acalmar a amente – até causar depressão; levando a desistência em tentar obter sucesso, resultando em inconstância no que faz. Até mesmo casos leves podem interferir na qualidade de vida ao afetar as relações pessoais, a educação e o trabalho.
Bola de neve
A perfeição se manifesta em três domínios: o perfeccionismo auto-orientado que impõe um desejo irrealista a si mesmo, o perfeccionismo orientado aos outros que estabelece padrões inexistentes pra geral, e o perfeccionismo socialmente prescrito que consiste em perceber expectativas falsas de perfeição vindas das pessoas, sejam elas próximas ou não. Conforme atinge seus objetivos, o nível de exigência aumenta, se tornando uma bola de neve – aprova de derretimento – que vai sobrecarregando a pessoa mais e mais.
Tão impossível ficam os padrões impostos, que a mente se torna cadeia sem que de lá se possa sair, porque fazer isso é admitir que se é comum, afinal, nosso valor está em diferir da média. Objetivando se destacar, o anonimato faz dele um inútil, irrelevante, motivo de vergonha, e diante das incertezas ele murcha, porque o desconhecido representa risco, que traz uma grande chance de fracasso e pode revelar que ele não passa de algo descartável. Aterrorizado com o vazio que pode lhe atrapalhar, o perfeccionista busca refúgio em lugares conhecidos ou repetição de tarefas por lhe dar segurança, como verificar se há alguma atualização pela enésima vez, ou seguir a rolagem infinita do feed de sua rede social preferida; assim perde tempo com coisas desnecessárias, que proporcionam certo alívio e aumentam a sua agonia por lhe sugar a produtividade.
Complexo de Frankenstein
Diferente do que a cultura pop espanou, Frankenstein é o nome do médico, não do monstro. Lançando as bases da ficção cientifica, a obra “Frankenstein ou o Prometeu Moderno” (“Frankenstein“, de 1818), de Mary Shelley, traz a história de um médico que, buscando a perfeição, cria um monstro e sua tentativa acaba por metê-lo na maior enrascada. Essa criação destrói tudo o que ele possui e as pessoas que ama, o obrigando a se afastar da sociedade enquanto passa a sofrer uma perseguição insana. Apesar de cansativa, a narrativa não impediu do livro se tornar um dos clássicos da literatura mundial – uma opção mais dinâmica, e ilustrada, é a adaptação “Frankenstein e outras histórias de horror” (“Frankenstein – Junji Ito Story Collection“, de 1998), que conta com outras excelentes histórias de Junji Ito, um dos mangakas mestres do terror, a obra ficou tão boa que ganhou inclusive um Eisne, em 2018, o Oscar das HQ’s.
Assim como o monstro persegue Frankenstein incansavelmente, o perfeccionismo passa a estar em todo canto, criando padrões pra tudo, sejam realizações, cumprimento de metas, etapas específicas que precisam ser atingidas; se manifestando até em comportamentos e relacionamentos que fazem o perfeccionista ser visto como intransigente, pouco afetuoso, até mesmo artificial. Além de gerar a síndrome do impostor, no momento em que é preciso agir com naturalidade, ou causar insegurança ao precisar enfrentar o desconhecido.
O amanhã pode não existir
Tornando tudo complicado e esmagador, o perfeccionismo faz adiar projetos, prazeres perderem o encanto, e o hoje deixar de ser o ideal; porque falta inspiração, não se está bem, e o excesso de padrão que precisa ser alcançado, ou o medo do fracasso, leva a procrastinação ao empurrar as coisas pra incerteza do amanhã que não sabemos o que trará [Provérbios 27.1] e pode mesmo nem chegar, já que não nos pertence. Como disse Dalai Lama, “só existem dois dias no ano que nada pode ser feito; um se chama ontem e o outro amanhã, portanto hoje é o dia certo pra amar, acreditar, fazer e principalmente viver”.
Antes da execução é preciso planejar pra um melhor desenvolvimento, mas não podemos esquecer que nossos passos são dirigidos por D-s [Provérbios 16.9] e que o processo irá sendo aperfeiçoado durante a caminhada – como abordado aqui. Por isso, por mais imperfeito que algo esteja, o melhor momento de começar será sempre o agora, já que “o ontem não existe mais e o amanhã ainda não chegou, restando apenas o hoje; o dia em que D-s age”, como destacou Max Lucado. Devemos deixar as preocupações pra cada dia, sem adiantá-las [Mateus 6.34], porque ficar apenas aguardando o momento ideal nos impede de construir algo e alcançar o que desejamos [Eclesiastes 11.4]. Pra D-s o melhor tempo é sempre o hoje [2 Coríntios 6.2], já dizia o provérbio Iídiche: “o homem planeja e Deus ri”.
A cura logo vem, não há como impedir
Se você acha que a busca do minimalismo é uma alternativa pra se livrar do perfeccionismo, está enganado total – seja você redondo ou quadrado! O minimalismo nada mais é que outra face do perfeccionismo, só que voltado em encontrar um padrão de perfeição através da redução máxima – mal esse que, no início dos anos 1980, fez Jobs viver numa mansão com poucos móveis enquanto dormia num colchão rodeado de fotografias gigantes, conforme revelou Leander Kahney, em “A cabeça de Steve Jobs“. Algumas formas de diminuir a opressão do perfeccionismo são: definir metas realistas e alcançáveis, quebrar tarefas sufocantes em etapas menores – como vimos por aqui – manter o foco em uma atividade por vez; reconhecer que errar não é uma falha moral, mas uma característica humana que nos concede a oportunidade de aprendizagem. Além de confrontar o medo do fracasso se mantendo realista sobre os possíveis resultados.
É preciso querer muito pra se libertar das amarras do perfeccionismo, já que se desfazer dele parece fazer perder uma parte importante de nossa identidade; às vezes o desejo de mudança surge após muita autorreflexão ou sofrimento. A saída pra suportar a imperfeição da realidade pode ser alcançada através da terapia cognitivo-comportamental (TCC), que treina a mente pra combater pensamentos distorcidos; e da atenção plena que nos mantém alerta as armadilhas da mente. Também envolvendo a autoestima com autocompaixão por meio de um diário de gratidão; e fazer tudo de forma constante e diária, mesmo que no começo pareça antinatural. Pra ajudar na fuga das garras do perfeccionismo e de suas maldições, podemos trocar nosso fardo esmagador pelo de peso suave e jugo leve de Cristo, que convida a todos os cansados e sobrecarregados, precisando de descanso [Mateus 11.28-30].
Contextualizando
A frase que originou essa reflexão faz parte de “Interrompido – A curva no vale da sombra da morte“, uma minissérie que mostra que nossa humanidade é que nos leva a viver os desejos mais profundos e a cometer os erros mais insanos. Ela surge após Luan recordar que as inconsistências e erros jornalísticos se dão pelo excesso de edição, porque o perfeccionismo mais lhe atrapalha que torna algo melhor.
*Artigo publicado originalmente no LinkedIn, também está disponível no Medium.
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Ósculos e amplexos,
Autor de Interrompido – A curva no vale da sombra da morte, é um cara apaixonado total por música, se deixar não faz nada sem uma boa trilha sonora. Bota em suas histórias um pouco de seus amores e do que sua visão inversível o permite enxergar da vida.