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Articulário: Fazendo cortes em busca da alma - .inversivel
Articulário: Fazendo cortes em busca da alma
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Fazendo cortes em busca da alma

“Precisamos sofrer alguns cortes pra que as feridas internas possam ser tratadas.”

Mishael Mendes [Romanos 8.37]

De volta para o passado

Machucado é uma das lesões mais comuns que podemos sofrer. Alguns corpos trazem mais feridas e marcas que outros, mas todas contam histórias; seja de rebeldia e ousadia, surgindo em aventuras, ou até mesmo causadas por imprudência. Pegando carona no Delorean pra revisitar a infância – de preferência a versão elétrica que é menos poluente e toda moderninha – talvez uma das memórias mais doloridas nem seja a dos machucados, mas o que vinha quando o conseguíamos – e olha que a gente tentava bastante pra isso acontecer. Após um acidente, era chorar que vinha a mãe pra acudir e não sendo suficiente dizer que o machucado sararia apenas quando a gente casasse – quem ficou pra titio deu ruim, né? – vinha o golpe final: o mertiolate pra aumentar o nível de drama e de lágrimas, mas um sopro mágico bastava pra fazer a dor passar.

Os novinhos nunca vão saber o que é uma dor raiz, já que os cremes antissépticos atuais ajudam a aliviar a dor ao invés de aumentá-la. Real, o medo do mertiolate era maior até que a ferida, razão que levava a gente a preferir esconder os machucados da mãe que evitar uma sentença daquelas – foi dessa forma que me especializei em estancar meus cortes e machucados, algo comum pra quem não conseguia ficar quieto, e até superá-los.

Ferida exposta

Por mais que ardesse esse trem, não era apenas por sadismo ou maldade que nossa mãe fazia a gente sofrer tamanha pena. Deixar uma ferida exposta pode causar contaminação por bactérias, dificultando a cicatrização, além de aumentar o risco da infecção se espalhar pelo corpo. Por isso o mertiolate era utilizado, como ele possui propriedades antissépticas e antifúngicas, era escolhido pra ajudar a evitar contaminação. É claro que tinham opções melhores e menos dolorosas, como a violeta de genciana, mas a preferência das mães era o mertiolate justamente pelo fato de doer parecer torná-lo mais eficaz.

Embora ainda exista, a versão nutella deixou de arder. Isso aconteceu porque o mercúrio – cujo uso na preparação do feltro deixou fabricantes de chapéus loucos; aquele salve pro Chapeleiro – foi proibido, ainda que por motivos infundados. Daí o fabricante removeu o ingrediente responsável pela ardência – o álcool – que nem era necessário pro remédio fazer efeito. Talvez tudo não passasse mesmo de um plano infalível pra gente evitar se machucar por medo do mertiolate. No meu caso, como não foi possível isso, eu apenas lavava o corte, enrolava num pano ou papel e pressionava até a ferida fechar.

Você é a minha ferida curada

Quedas ou descuidos são suficientes pra causar acidentes com algo cortante e provocar feridas. Imediatamente o sangue começa a jorrar da ruptura, pra coagulação destruir as bactérias que podem tentar invadir o corpo, e fechar a ferida. Como o próprio organismo se encarrega da defesa, ao causar alguma ruptura leve, o melhor procedimento é lavar o local, pressionar um pano limpo e deixar o processo de recuperação ocorrer naturalmente. Está vendo como o medo pode ser poderoso? Mesmo eu não sabendo de base científica alguma, acertava agindo por instinto – o empoderamento causado pelo medo já foi abordado aqui e também nesse outro artigo. E, pasme: na real, o uso de mertiolate deve ser evitado porque pode interferir na cicatrização.

O trauma a cortes pode ter menos relação com lacerações profundas e mais com ferimentos superficiais, como os feitos pelo papel, que – pro nosso sofrimento – é um dos acidentes mais comuns e dolorosos – pelo menos até o material ser substituído total por dispositivos e telas que possuem apenas as características que amamos nele. Esse tipo de experiência costuma ser extremamente dolorosa, pelos dedos possuírem mais terminações nervosas que o resto do corpo, também pelo formato do papel – que no microscópio revela sua aparência cortante, lembrando uma serra composta de inúmeras lascas de madeira. Porém, o que realmente provoca a dor é que a superficialidade do corte apenas expõe as terminações nervosas que ficam disparando loucamente, como não há abertura suficiente pro sangue coagular a dor continua – por isso, esse tipo de corte possui uma cicatrização demorada. Assim, a melhor forma de parar a dor é lavar a ferida e tapá-la com band-aid – pra todas outras feridas, o uso desse tipo de curativo pode até piorar a situação.

Início macabro

Por sua fácil identificação, machucados na pele são simples de cuidar, já quando se trata de uma ferida interna o processo se torna complexo; exigindo cortes pra acessar as partes afetadas. A ideia de passar pela faca pode causar tremores e palpitações – principalmente pra quem nem consegue ver a agulha entrando no braço 🙋🏻‍♂️ – mas a cirurgia é importante pra obter um melhor diagnóstico, remover ou reparar tecidos e órgãos doentes, retirar obstruções, reposicionar estruturas ou redirecionar vasos sanguíneos e até pra fazer transplantes. Com eficácia comprovada, a cirurgia como conhecemos só surgiu no final de 1800, e evoluiu bastante até o processo se tornar mais seguro e dispensar cortes. Mas a ideia de ser necessária uma exposição pra tratar partes internas afetadas, surgiu com a primeira cirurgia, realizada em 6.500 a.C. – embora utilizasse métodos cruéis e nada funcionais pra isso.

A própria evolução cirúrgica passou por momentos macabros, como a necessidade do uso de força bruta e velocidade que gerou espetáculos, além de movimentar o comércio ilegal de corpos entre outros absurdos como aborda Lindsey Fitzharris em “Medicina dos Horrores” (“The Butchering Art“, de 2017), recheada de absurdos como revela Thomas Morris em “Medicina Macabra” (“The Mystery of the Exploding Teeth – And Other Curiosities from the History of Medicine“, de 2018), charlatanismo, como expõe Lydia Kang e Nate Pedersen em “Medicina Macabra 2” (“Quackery“, de 2017), e onde a falta de higiene permitia a epidemias e germes reinarem, como mostra Barry E. Zimmerman e David J. Zimmerman em “Medicina Macabra 3” (“Killer Germs“, de 2002).

O peso do mundo

Além da dor habitual – como vimos aqui – existe ainda a dor emocional que não costuma ter uma origem física, mas que às vezes pode ser identificada por manifestações, como aquele peso nos ombros de quem carrega um mundo de sentimentos – como a depressão existencial, falada nesse artigo. Pela coluna vertebral servir de proteção pro sistema nervoso, ela acaba sustentando as cargas emocionais que trazemos.

Assim, quando emoções negativas como o medo, ansiedade e estresse se manifestam, criam tensão muscular. Resultando em torção da coluna, desalinhamento das omoplatas, torcicolo, bico de papagaio e rigidez no peito que pode dificultar a respiração; todos causados pela má postura. Quando a vergonha ou preocupação tomam os pensamentos, nosso olhar se volta pra baixo forçando o pescoço. Já quando estamos felizes, o pescoço fica ereto, o rosto relaxado e os músculos livres de tensão. Assim, guardar emoções só faz aumentar o peso que se manifesta tensionando os ombros, daí a gente se torna Atlas a carregar um mundo de sentimentos, sem mesmo perceber o peso extra – como se não bastasse a força da atmosfera sobre a gente, como comenta a minissérie “Fragrante“.

Cuidado com a dor, que a dor te pega! E pega daqui e pega de lá!

Mesmo surgindo devido aos nossos pensamentos, a dor emocional pode interferir na capacidade de realizar atividades diárias. Sendo tão forte quanto a física, a ponto de provocar reações por todo corpo. Como diarreia, tontura, dores de cabeça e muscular, principalmente no pescoço; náusea, deixar braços e pernas doloridos e causar desconforto gastrointestinal. Isso porque tanto a dor física quanto a emocional compartilham semelhanças neurológicas, estando ligadas a alterações nas mesmas áreas da mente. Inclusive, pesquisadores sugerem que ambas devem ser consideradas parte de um conceito mais amplo de dor.

A dor emocional se tornou tão presente que a Associação Internacional pro Estudo da Dor (IASP), cuja definição universal traduzia a dor como “uma experiência sensorial e emocional desagradável, associada a danos reais ou potenciais no tecido”, fez um adendo, em 2007, sobre as causas psicológicas: “se as pessoas consideram sua experiência como dor e a denunciarem da mesma forma que a dor causada por danos teciduais, ela deve ser aceita como dor”.

Não fuja da dor

A complexidade da dor envolve sensações, comportamento, sentimento, cognição e memória, tudo guiado pelos sentimentos; sem os quais ela perde seu valor biológico. Além de outras implicações, como abordado aqui. Com tudo isso, parece que o melhor é a fuga, que quando a dor surgir devemos dopá-la com remédios e enteógenos, ou afogá-la em bebidas e em diversões que inundam o corpo de prazer, e até ocultá-la.

Mesmo assustadora, a dor é necessária. Sem ela a gente não tomaria as medidas de proteção necessárias, logo, nossa existência depende da sensação de dor. “Fugir da dor é fugir da própria cura”, alertou os Titãs na música “Não fuja da dor”, canção essa, composta pela própria banda. Nem agir no desespero porque “quando a ferida é motivo pra mudar a direção, a memória curta é perigosa e paralisa”, lembra Arthur Vinih, em “Ferida exposta”, o que facilita pra cometermos erros.

Algo de errado não está certo

Cientistas da Northwestern University, nos EUA, criaram um implante que pode resfriar nervos sob a pele, pro sinal de dor não chegar ao cérebro; dispensando o uso de opioides, que viciam e podem criar tolerância. Biodegradável, o implante é absorvido pelo corpo conforme a dor desaparece, mas os estudos ainda estão em estágio inicial, e o dispositivo deverá ser utilizado na redução de dores crônicas e severas.

Enquanto esse mundo não for transformado – como vimos aqui – até o riso pode conter uma porção de sofrimento [Provérbios 14.13], assim, a dor continuará afligindo e sendo importante pra alertar que algo de errado precisa mudar. O que podemos fazer é aceitar, entender a dor e buscar a cura. Dores na alma exigem exposição que apenas cortes cirúrgicos podem trazer, assim ela estará aberta ao soprar do vento e receberá o toque do sol, que traz a cura em suas asas [Malaquias 4.2].

Recebe a cura

Uma forma de alcançar a cura é conversando com alguém de confiança, sejam pais, irmãos, amigos e até profissionais de saúde. Fazer isso reduz a carga emocional nos ombros. Outro jeito é realizando atividades físicas, já que, além de gastar a anergia extra acumulada e ajudar na organização dos pensamentos, o processo libera hormônios que melhoram o humor.

A prática da atenção plena também pode ser útil porque o processo envolve estar mais consciente das emoções e a ceder o desejo de tentar controlar ou eliminá-las. De todas essas intervenções, a mais profunda é falar com D-s através da oração; desabafar com quem não julga e pode nos fazer transbordar de uma paz que excede todo entendimento, e guarda nossa mente e coração [Filipenses 4.7]. Buscá-lo num lugar secreto, onde sob sua proteção é possível lançar toda nossa ansiedade em quem cuida de nós [1 Pedro 5.7]. Além de meditar na Palavra, que pode ir até à divisão entre alma e espírito, junta e medula, trazendo à luz os pensamentos e desejos mais íntimos [Hebreus 4.12].

*Artigo publicado originalmente no LinkedIn, também está disponível no Medium.


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Ósculos e amplexos,

Mishael Mendes Assinatura
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