Sol 40 °C, pelo menos era essa a sensação térmica; animado o sol estava disposto a esturricar quem ousasse permanecer sob seus raios. Pobre de quem precisava trabalhar no tempo aberto.
Coroado no céu, o astro se encontrava no pico de maior atividade, ofertando os 60 minutos mais quentes do resto do dia. Por permitir escapar de tamanha empolgação, aquele período acabou sendo adotado pro horário do almoço.
Sabendo que o calor é mais abrasador próximo à linha do Equador, o sol continuava quente a ponto de fazer qualquer um se desfazer num ensopado de suor. Em esplendor do alto de seu domínio, nada podia fugir de seu alcance, mesmo onde havia cobertura o mormaço tornava lugares fechados insuportáveis.
Antes de tudo se decompor em água, uma brisa, traga pelo vento Norte, começou a soprar, refrescando o clima sob a copa da árvore, tornando esse o lugar ideal pra se estar. Ainda mais de posse de uma nutritiva água de coco, razão suficiente pra entoar uma música de ritmo suave, justo o que Cigarra fazia naquele momento. E enquanto desfrutava do paraíso sombreado, o formigueiro labutava sob o sol que nem brisa podia aliviar.
Com o suor a escorrer, carregavam objetos 50 vezes mais pesados que elas mesmas, as mais fraquinhas levavam peso 30 vezes superior, mas tinha as que chegavam a transportar algo 100 vezes maior. Mesmo sendo os insetos com um cérebro maior em relação ao tamanho do corpo, preferiam gastar a energia diária em atividades braçais.
Sem se importar com o sol, cujos raios aumentavam o pigmento que as tornava mais resistentes a altas temperaturas – enquanto lhes bronzeava a pele – seguiam na atividade. Mostrando que perseverança no trabalho é a garantia de abastança em tempos ruins, enquanto o contrário só traz miséria [Provérbios 6.6-11].
— Cê não acha que tá à vontade demais, enquanto geral dá duro, criatura? – Formiga quis saber ao ver aquela vida boa enquanto labutava com as companheiras juntando alimento pro inverno [Provérbios 30.24-25].
— Relaxa, parça! A vida não é só trampar, também é diversão. É preciso saber viver! – E piscou, matreiro. – Cês levam tudo muito a sério, talvez ficar de boas ajudasse a refrescar as ideias.
— Tá pinel? Que ficar de boas o quê! – Formiga se indignou de ouvir tamanha sugestão absurda.
— Vixe… parece que o sol torrou os miolos de alguém. – Cigarra riu, fazendo graça.
— No teu caso foi a memória! – A resposta saltou da ponta da língua. – Cê esqueceu que nessa vida quem não dá duro não se prepara pro futuro?
Formiga exaltou seu princípio de vida, consistindo em muito suor pra conquistar o pão nosso de cada dia [Gênesis 3.19], mas pensou como seria prazerosa uma folga de vez em quando – ainda mais diante de uma sombra convidativa daquelas. Antes de largar o trabalho e se jogar no descanso, fez o José e se mandou, deixando a tentação pra trás; era só metade do dia e ainda havia muito a ser feito.
Tempo é brevidade de um instante a escorrer; que esvai independente dos esforços pra contê-lo, dessa forma se foram estações, ainda mais pra quem passou os dias curtindo. Cigarra só se deu conta do inverno, quando o manto frio estava sobre si.
— Poxa! Justo quando o sono tava tão bom. – Isso causou desapontamento. Antes de virar uma escultura congelada, ainda que a mais bela, deu um pulo e se pôs a caminhar.
Buscando encontrar abrigo e comida, os quais podia trocar por seus dons artísticos, Cigarra foi em direção à residência mais próxima. Só não esperou que fosse demorar pra chegar ao destino; soprando com violência, o vento frio exigiu força nas canelas pra não ser lançado longe, enquanto tentava não virar picolé.
Ao bater na porta, seu empenho mostrou-se não ter sido uma boa, feito visão aterradora uma carranca surgiu lhe fazendo tremer mais de medo que de frio e acabou dando um pulo pra trás.
Como não havia opção, Cigarra se encheu de coragem e deu mais alguns passos, com disposição pra enfrentar o terror real; foi quando percebeu que a figura não oferecia risco, apenas possuía uma careta no meio da cara, o que lhe arrancou um sorriso sem graça. Antes de poder se desculpar e pedir ajuda, a mal-encarada fechou a portinhola, o ignorando total.
Sem ter pra aonde ir, aceitou o inevitável fim e, na companhia do frio glacial, sentou-se meio afastado da construção de imensas proporções, entoando um lamento fúnebre com notas graves de pesar.
Esperando o toque da foice mortal, torceu pro encontro acontecer antes de perder a sensibilidade até pra isso. Foi quando o som de festejo soou, uma forte luz obrigou a fechar os olhos e, interrompendo a cantoria, abriu os braços, se entregando a alegria e as delícias a lhe aguardar do outro lado da vida. Após um tempo naquela posição, a única resposta foi o frio ficar mais intenso.
— E aí, dona Morte, dá pra agilizar? Tô congelando aqui já! – A agonia lhe fez quebrar o silêncio.
— Cigarra?
— Sim? Tô pronto, pode me levar! – E estendeu as patinhas, em sinal de rendição.
— Ei, Cigarra! Que cê faz brisando aí fora?
— Quê!? – Cigarra abriu um dos olhos, ainda desorientado.
Pra sua sorte, a acústica do formigueiro era excelente e, mesmo com o barulho de conversa e risadas, Formiga o ouviu, reconhecendo seu timbre e sonoridade característicos. Então correu pra porta, ao abri-la se deparou com Cigarra com cara de tonto, diante de tal cena engraçada, precisou de um tempo pra se recuperar, aí convidou pra entrar.
— Achei que não me queriam por aqui. – Ele estava confuso.
— Jamais! É que Ranzinza é meio impaciente. Com tanta felicidade circulando por aí, antes dele se invocar e acabar tendo alergia, a gente botou ele de guarda. Ele é meio ogro, mas não morde. – Seu tom abrandou. – Só às vezes… quando esquecemos de alimentar o bichão. – Após confessar num sussurro, Formiga apertou os passos.
— AAAH! – Cigarra deu um pulo ao ver Ranzinza surgir com sua carantonha de zanga. – Beleza!? – E, tentando fazer o simpático, deu uma risadinha que não continha uma grama de graça. Ao ver a cara ficar mais feia, tratou também de andar rápido.
Falante, Formiga batia maior papo, já Cigarra só conseguia prestar atenção a grandeza da construção. Por fora a estrutura não parecia possuir tamanha proporção – nem ser tão escura – cheia de túneis e cavernas pra tudo que é lado. À medida que avançavam, Cigarra foi tomando um susto atrás do outro devido aos pares de olhos brilhantes surgindo do escuro, sem serem esperados.
Um aroma fraco e desagradável dispersou no ar, e apesar de não identificar do que se tratava, desencadeou pavor. Somando isso ao fato do ambiente ficar mais e mais escuro, enquanto iam ao encontro do mundo dos mortos, lhe causou aflição.
O medo opressor nem vinha do visível – ele acostumou aos sustos – mas do que não podia ver. Do que se movia nas sombras, captado apenas pela visão periférica; desaparecendo quando olhava diretamente.
Pra aumentar o terror, a memória resgatou uma conversa que julgava esquecida, onde Mosca, fofoqueiro de tudo, alertou sobre o hábito alimentar carnívoro das formigas.
— Fica esperto! Cê dá um caldo bom pra elas. – A voz agudo-metálica de Mosca, falando em tom superior, soou em seus ouvidos e lhe arrepiou todinho. Um comichão foi espalhando pelo corpo, impulsionando a correr dali, mas cada brecha parecia vigiada.
Conforme desciam, mais denso e carregado ficava o ar, e seus nervos abalados; tornando até mesmo o som do vento motivo pro coração querer saltar boca afora. Preso a um trem-fantasma da vida real, seguia pra um fim que não lhe traria alívio.
“É sorte demais pra um inseto só! Fugi do frio pra virar refeição.” – Cigarra não conseguiu evitar pensar na ironia da situação, enquanto pingava de suor, mesmo nem estando calor ali.
Ao chegar no salão principal, uma chama, no meio do antro, proporcionava iluminação suficiente pra deixar aterradoras as figuras na penumbra, com sombras que se deformavam em proporções gigantes a se mover pelas paredes. Ao verem Cigarra entrar, geral silenciou e toda atenção se voltou pra si, mesmo com metade das faces sombreadas, era possível ver mandíbulas tremendo de felicidade, algumas até salivavam.
No mesmo instante ele olhou por onde entrara pra ver se ainda conseguia escapar do terrível fim, prestes a se desvelar ante os olhos. Ao invés disso, o que enxergou foi a cara assustadora de Ranzinza, com um sorriso maquiavélico e a visão da cabeça suspensa no escuro foi a gota pra ceder à pressão dos nervos em frangalhos.
— Tá bem! Sei que mereço isso! – Cigarra se jogou de joelhos, com as patinhas em posição de súplica. – Só não bota salsa em mim que isso vai estragar meu gosto bom.
— Levanta daí, parça! – Formiga colocou a pata em seu ombro e cochichou.
— Ué! Cês não vão me devorar? – Ele olhou o amigo com olhos pidões.
— Que nojo, parça! – E botou a língua pra fora. – A gente é vegana, só come planta!
— Poxa…! – Por essa Cigarra não esperava. – Mas sou tão apetitoso. – Ele se decepcionou.
— PAFF! – Formiga bateu na testa.
— Anda! Levanta logo que tá até faltando cabide de tanta vergonha que cê já passou. – Ele pediu em tom de confissão.
— Ah, é, né!? – Cigarra riu, meio sem graça, enquanto levantava.
No fim, ninguém queria devorá-lo, pelo contrário, estavam felizes com sua chegada. Formiga explicou que após a conversa que tiveram, ficou incomodado com aquilo, sindicalista como era, saiu compartilhando suas ideias, conseguindo convencer as companheiras em revezar o trabalho; dessa forma, cada uma podia descansar. Além disso, realocaram algumas pra ficar de reserva pro caso de acidente – que se revezavam pra cuidar da limpeza interna e do preparo da comida.
— Tô passado e engomado! Isso sim, é pensar diferente, aposto que cês começaram uma revolução.
— Não é porque as pessoas têm um conceito formado sobre a gente que não podemos agir diferente.
— Falou tudo! – Cigarra bateu palminhas, num orgulho só.
Formiga contou que o dia de descanso lhe dava mais vontade de trabalhar, além de lhe fazer perceber o quanto gostava daquilo que fazia. Fora as mudanças, geral entendeu que o sustento pelo suor do rosto não consiste em trabalho duro, mas em esforço. Afinal, o desgaste, seja ele físico ou mental, é que resulta na construção de algo, pois o que conta é o empenho, não a quantidade de exsudação expelida. Graças a nova percepção, todos entenderam a importância de Cigarra durante o árduo trabalho no verão, pois suas canções amenizavam a labuta, além de motivar.
Passado o susto, Cigarra viu que a multidão de olhos em si não possuíam nada além de admiração e respeito. E foi maior festança quando topou fazer um acústico ao vivo pra comemorar a chegada do inverno e o início de um longo tempo de união. Daquele dia em diante, as noites passaram a ser mais aconchegantes e animadas com apresentações que levavam a galera ao delírio, ovacionando cheia de animação.
A experiência ensinou ao formigueiro que ter um ritmo diferente não significa ociosidade. Assim, julgar pautado pelo que se vê pode incorrer em erros crassos, além de aprenderem a importância do descanso [Êxodo 20.9-11]. Já Cigarra adquiriu o entendimento que não se deve dar crédito a tudo que é dito [Provérbios 14.15], antes é preciso verificar os fatos pra não se equivocar com fake news. Também que plantar boas ações é uma ótima forma de fazer o futuro render abundância e fartura [Eclesiastes 11.1].
#papolivre
Criada por Esopo, no século VI a.C., “A Cigarra e a Formiga“, é uma das fábulas mais conhecidas. Já foi contada em diversos meios, e até usada na publicidade. Mesmo com toda essa fama, ela não reflete com exatidão a realidade e pode até induzir ao erro, por exaltar valores de uma sociedade capitalista, do século XVII, que pregava o acúmulo de bens, ao invés de estimular o repartir do pão [Provérbios 22.9].
A versão mais conhecida é a de La Fontaine – a qual tive acesso na infância – que trouxe algumas alterações na história original, como o inseto responsável pela cantoria. Só que a forma dos artistas serem retratados sempre me pareceu injusta e foi buscando lhe dar uma interpretação mais humanizada, com a cara de nossa realidade que a reescrevi. E adicionando alguns fatos interessantes – como o comportamento desconhecido das formigas – busquei ampliar o que originalmente se tratava de um curto poema. Focando no conceito incorreto que temos sobre o trabalho, algo aprofundado no artigo “Temperando com pedacinhos de nós“, afinal, o futuro se garante investindo mais em boas ações, como abordado em “Forças disfarçadas de tragédias“, que acumulando posses.
Entretanto, há tempos suas incoerências vêm incomodando escritores a ponto de alterá-la. Em Fábulas, de 1922, Monteiro Lobato a reescreveu fazendo uma crítica a falta de misericórdia da formiga. Na década de 60, a Coleção Disquinho lançou uma das mais belas reinterpretações. No ano de 1989, foi a vez do poeta José Paulo Paes lhe dar um fim mais reflexivo. Já Millôr Fernandes, em 2002, parodiou a fábula mostrando a Cigarra como VJ, estourada com vários shows agendados.
Foi uma descoberta agradável encontrar tanto conteúdo disruptivo, enquanto pesquisava pra escrever esse posfácio – até então eu não tinha tido contato com nenhuma dessas versões, fiquei igual criança em loja de doce. Foi um prazer fazer essa descoberta, que me incluiu entre os inconformados que atenderam ao chamado pra reescrever esse clássico e lhe dar outra perspectiva com nova roupagem. Tamanha foi a minha empolgação que escrevi uma postagem exclusiva com diversas curiosidades, mostrando como a fábula tem sido usada de forma moralista e filosófica – até como propaganda política, pela Disney.
Ósculos e amplexos,
Autor de Interrompido – A curva no vale da sombra da morte, é um cara apaixonado total por música, se deixar não faz nada sem uma boa trilha sonora. Bota em suas histórias um pouco de seus amores e do que sua visão inversível o permite enxergar da vida.