#episodioanterior
Ligações estranhas fazem os pelos de Jean arrepiar, principalmente quando ouve alguém fungar no telefone e instantaneamente sente um ar quente no cangote – ele só não se borrou porque esse não é um episódio do Jackass.
Diversas outras coisas estranhas aconteceram naquela noite, mas talvez a pior delas tenha sido o ser feito apenas de sombras, que tava no orelhão da esquina, e se olhar a aparição sem rosto a situação piorou quando ela virou fumaça, escurecendo tudo ao redor, enquanto no telefone uma voz medonha falou seu nome.
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Jean ouviu seu nome de novo, mas dessa vez a voz que o pronunciou saiu mais natural, não pareceu tão assustadora como antes, estava menos… robótica…
— Ah… oi… Kylie…?! – Ele ainda tava meio atordoado.
— Tá tudo bem com você? Cê parece tenso?
— Tá… tá, sim! – Num piscar de olho sumiu tudo, vulto, sombras, fumaças e toda aquela escuridão, então ele se afastou da janela e se jogou no colchão. – Cabô de ficar melhor!
— Mesmo?
— Mas é claro! Tô falando com você.
— É que cê atendeu de uma forma meio… bruta.
— Ah… desculpa! É que algum boróca tava ligando sem parar. Daí cê ligou, pensei que fosse ele.
— Tendeu, mas Jean…
— Oi, Kylie?
— Quem tava ligando era eu!
As bochechas dele enrubesceram assim que ela terminou de falar, ficando mais vermelhas a medida que Jean se sentiu observado por Kylie – ele tinha iniciado videochamada?
Jean até olhou pro celular pra checar – diante de tanta coisa confusa acontecendo, o melhor era confirmar – ele já não tinha mais certeza de nada, ainda assim se sentiu diminuir diante da manézice.
“O tempo é mistério que não pode ser controlado por relógio ou calendário, sendo relativo se desfaz e refaz, correndo ou se arrastando, enquanto segue, rumo ao infinito.”
Ela explicou que das duas primeiras vezes a ligação tava ruim demais e só deu pra ouvir ruídos – o fato de deixar o número oculto também não ajudou – daí tentou ligar do fixo, mas na primeira vez caiu, então ligou de novo e só chamou, daí esperou um tempo, foi quando ele atendeu.
Kylie ligou porque com aquele temporal era bem capaz de Jean pegar maior resfriado ou, na pior das hipóteses, encontrar uma pneumonia pelo caminho, mas ele garantiu ser resistente e que não era de adoecer fácil.
A conversa deslanchou noite adentro – o tempo é mistério que não pode ser controlado por relógio ou calendário, sendo relativo se desfaz e refaz, correndo ou se arrastando, enquanto segue, rumo ao infinito. O papo continuou até um – agora nem importa quem – entrar no assunto do beijo, ambos concordaram ter sentido maior química boa.
Ela acabou confessando que pagava madeirinha pra Jean fazia um tempo já, pois além de gatinho, ele era maior fofo.
— Mesmo?
— Sim!
— E por que rolou nada lá no cine? – Jean quis saber.
— Por quê…? – Kyllie sentiu as palavras embolar. – Porque…
Um silêncio constrangedor a obrigava a dizer o que tinha acontecido.
— Hum…?! – Após uma grande pausa Jean fez isso pra ver se ela continuava.
— É que…
Kylie sentiu Jean colar mais no telefone, pra saber da resposta que, agora que tinha começado, ia ter de dar.
— Ué… fiquei com vergonha quando acendeu a luz. Também não sou uma garota fácil e vai que cê só quisesse se aproveitar porque eu tava com medo. – Ela fez a ofendida.
As palavras dispararam, saindo mais rápido do que ela queria – a força usada pra fechar o registro acabou por quebrá-lo, deixando passar livremente uma enxurrada de consoantes e vogais.
— Aproveitar, eu? Jamais! – Ele bancou o inocente. – Queria só ser um ombro amigo…
— Sei! Ombro, peito, braço, boca… – Kylie soltou sua risada melodiosa, depois de ver que ele não deu importância pra sua explicação atrapalhada.
O som analógico de sua risada se converteu em digital, atravessando a complexa rede móvel e rapidamente chegou fazendo cocegas nos ouvidos de Jean, daí se espalhou pelo corpo dele, o deixando embriagado.
— Por isso achei melhor deixar quieto.
— Daí, quando chega na sua casa, cê me beija a queima-roupa?
— É que cê foi tão fofo que merecia um beijo.
Jean achou graça e mergulhou na conversa até ouvir miados de desespero.
— Kylie, tendo que desligar, a Yakut deve tá com algum problema.
— Tudo bem, os gatos que se entendam! – Ela riu.
— A gente se vê amanhã? – Jean achou graça da piadinha nerd.
— Claro!
— Passo aí pra gente ir junto, daí já tomamos um café.
— Fechou! Vô ficar te esperando, beijos.
— Beijos! – Ele desligou o Mi Note e o jogou na cama ao ouvir um estrondo vindo da cozinha.
Yakut miou como se tivesse sendo estrangulada, fazendo uns bens estranhos, como se tentasse falar algo gemendo ou tivesse usando uma língua maior sinistra, Jean viu que o céu ainda carregado, daí desceu as escadas correndo.
— Que cê aprontou aqui, bebê?
A porta superior do armário pendia torta, suspensa apenas por um pino, a ração de Yakut tava espalhada pelo chão, o saco rasgado por suas afiadas unhas, com quatro cortes certeiros, se encontrava caído, tudo tava uma bagunça só.
— Yakut! Posso nem tirar o olho um minuto que cê já apronta?
Ela lançou um olhar que dizia “não sabia que horas passaram valer um minuto”.
— Devia ter te levado pra contar as unhas. E, agora? Que faço contigo?
Ela apenas o encarou com aqueles grandes olhos azuis e a medida que ele brigava, abaixou a cabecinha, soltando um sonoro ronronar que sinalizava um pedido de desculpas.
— Tá bem, bebê! Vem cá!
Instantaneamente ela saiu do estado de tristeza e correu pra Jean que a pegou no braço – Yakut era a prova que dá pra dizer muito apenas com o olhar.
As pessoas costumam chamar de cara-de-gato alguém que faz algo errado e fica com cara-de-paisagem, como se nem tivesse ideia que aconteceu algo, fazendo parecer que gato tem apenas uma expressão – o que é incorreto total. Não tem bicho mais expressivo que os gatos, eles conseguem demonstrar diversas reações apenas com os olhos.
— Culpa minha, esqueci que cê tava na maior larica. – Daí ele a colocou no chão e pegou ração do saco rasgado.
Ao colocar o prato perto dela, Yakut se aproximou animada, mas se afastou com cara de snob, assim que cheirou.
— Cê não vai querer? – Jean ergueu a sobrancelha ao ver a cara de nojo dela.
— Miau! – Ela respondeu, reprovando e olhou na direção do outro saco no armário. – Miiiau! – Já esse foi felicidade.
— Cê é mesmo um abuso! Rasgou um pacote de ração e só porque caiu no chão, vai deixar tudo pras formigas? – Ele abriu da outra e colocou na tigelinha dela. – Cê sabe quanto custa isso, mocinha?
— Miaaau… – Ela deu aquela resposta vaga que a gente usa quando não dá atenção, direito, pra alguém e quer parecer o contrário. Ela só conseguia olhar pra porção generosa que caía na tigela.
— Cê tá mesmo mimada demais! Pior é que eu que tô te estragando. – Jean suspirou.
Enquanto limpava a bagunça, Jean ia conversando com Yakut, mas ocupada comendo, ela apenas respondia com ronronados pra mostrar que apesar da fome tava prestando atenção.
— Devia ter me tocado que ia dar ruim deixar ração na parte com defeito.
Jean preparou uma tapioca bem recheada com frango e creme de ricota. Após comer, foi assistir, mas quando ligou a TV a luz falhou algumas vezes, daí voltou a brilhar a ponto de o cegar, então a lâmpada estourou, Jean se protegeu com almofadas, escapando das farpas de vidro quente que voaram pela sala – lá se ia a energia mais uma vez.
Com a bateria já no fim e a escuridão em volta, ele ficou sem ter o que fazer, daí foi deitar.
Jean até fechou os olhos, mas a mente estava a mil, ele pensou várias coisas enquanto tentava calar os pensamentos, o silencioso era tanto que dava pra ouvir o tic tac do relógio se arrastando pela casa, em passos lerdos e arrastados, com um som meio… metálico.
Primeiro na cozinha, depois passou pra sala, daí foi subindo as escadas, passando pelo corredor… mais próximo, no banheiro… mais próximo, na frente do quarto… o som metálico ia arrastando pelo chão e paredes, mais próximo…
Um uivo soou do lado de fora da janela, assustado e bolado, ele tacou o travesseiro nela e tapou a cabeça com o edredom pra tentar abafar aquelas passadas.
O relógio continuou, avisando ter passado da meia-noite, o som metálico seguiu até Jean pegar no sono. Foi quando se percebeu deitado, sem controle dos movimentos, o corpo, pesado e duro feito rocha, tava preso na cama.
Uma sensação ruim começou a tomá-lo, sentindo-se asfixiado, Jean tentou gritar sem poder – ele tinha perdido total a capacidade de falar. Percebendo estar numa paralisia do sono, ele tentou se acalmar, respirando mais devagar.
Então vozes gritando surgiram de todos os lados, diversos lamentos, um mais desesperado que o outro, cercavam, trazendo um peso grande, ficando mais doloridos, alguns agudos, outros graves, mas todos assustadores. Vozes de crianças começaram a cantarolar algo estranho, mas familiar, onde contavam de um a dez.
O coração disparou, um espasmo fez o corpo dar um solavanco, então um grito tão aterrorizante, começando como lamúria, se elevou sobre as demais vozes, arrancou um arrepio que desceu da nuca até a ponta do dedão.
O grito cada vez mais alto e agudo, se tornou um som que não dava pra definir, mas que estava prestes a lhe estourar os tímpanos, o corpo de Jean começou a tremer e só depois de muito esforço ele conseguiu mexer um dedo e, assim, despertou daquela alucinação hipnopômpica.
Sentindo o corpo mole e ainda pesado, conseguiu apenas virar pro outro lado da cama e, respirando aliviado, voltou a dormir, mal o sonho sobreveio, caiu numa alucinação hipnagógica. O corpo solidificou novamente, sentindo-se marmorificado, não conseguiu demonstrar nenhuma reação, foi aí que uma voz desconhecida o chamou do outro lado da parede, bem próxima à porta que se encontrava aberta.
Dali algo parecia espiá-lo, aguardando apenas Jean ir de encontro do que quer que fosse aquilo, agoniado, ele se forçou ao máximo, tentando encontrar forças – que sentia não ter – até despertar bruscamente.
Dessa vez, por maior que fosse o cansaço, Jean preferiu escorregar encosto acima, até despertar total do torpor onírico. Ainda zonzo, olhou pra porta e viu chamas se aproximar, duas grandes bolas de fogo o miravam, chegando cada vez mais perto, até repentinamente saltar.
O sistema nervoso simpático se ativou automaticamente, graças aos adrenoreceptores a epinefrina acelerou a respiração e o batimento cardíaco, preparando-o pra se livrar do perigo.
As pupilas dilataram, permitindo ver mais do que gostaria da visão aterradora. O processo digestivo teve o ritmo reduzido pra energia ser direcionada pro músculo esquelético.
Ao sentir algo cair em cima de si, uma onda gelada passou pelo corpo que, molhado de suor fez os dentes se agitar uns contra os outros, o repentino frio desencadeou uma corrente elétrica que disparou pelos músculos.
Sentindo os pelos um a um eriçar na tentativa de reter o calor que esvaía, o reflexo de autodefesa fez Jean rapidamente jogar a coisa mole e quente pro mais longe possível de si.
#proximoepisodio
Depois de duas horríveis paralisias do sono – algo mais assustador que o próprio pesadelo – Jean se recuperava quando algo pula nele, mas tentar se livrar daquilo não pareceu ser uma boa – é, ele não devia mesmo ter feito isso.
Mesmo sem duvidar a coisa ficar pior – seguindo a Lei de Murphy – a noite ficou ainda mais assustadora e o pior que estava por vir, chega pontualmente às três, prestes a encontrá-lo no meio da escuridão. Com o nascer do sol, todo aquele pesadelo pareceu chegar ao fim ou será que tudo ficou tão terrível ao ponto dele pirar com algo tão perturbador que nem mesmo um intelecto acima do normal pode suportar.
Ósculos e amplexes,
Autor de Interrompido – A curva no vale da sombra da morte, é um cara apaixonado total por música, se deixar não faz nada sem uma boa trilha sonora. Bota em suas histórias um pouco de seus amores e do que sua visão inversível o permite enxergar da vida.