Despertada em meio a escuridão, os olhos se abriram pra ver o mundo girar, a cabeça zonza era pressionada na parte superior. O estômago se contorcia apertando a região abdominal, então um gosto de ferro espalhou pela boca. Ela precisava mesmo melhorar a higiene bucal pra se livrar daquele incômodo de vez, a quantidade estava maior que das outras.
Quando o gosto lhe impregnou no nariz, causou uma ânsia de vômito feroz que nem deu tempo de levantar e começou a botar toda ceia pra fora. Seu abdômen tremia a cada expulsão a lhe socar o estômago, forçando passagem garganta afora, por onde a cachoeira empurrada raspava as amídalas feito lixa.
Sem ter fim, o jorro continuava saindo, a transformando numa fonte de vômito. Como ela expelia toda aquela coisa desagradável quando nem havia comido tanto assim? Mesmo que estivesse botando pra fora o que comeu durante o dia, não ia sair toda aquela quantidade. Será que teria levantado dormindo e feito uma boquinha? Sua janta fora apenas folhas de alface mimosa com atum, uma escolha mais leve porque o estômago andava num nível de acidez incomum, além de exigente. Quando conseguiu se esvaziar a ponto de expelir a própria alma, a contração parou e ela precisou de mais ar pra reduzir seu estado ofegante.
Embora o mal-estar ainda estivesse em posse de seu corpo, a vontade de expelir tudo que havia dentro de si, parou. O chão do quarto estava lavado de vômito, com uma mancha negra que se espalhava por quase tudo, além de pedaços de alguma coisa que a fez tapar a boca pra segurar o grito quando o chão foi tocado pela luz. A mancha não era outra coisa além de sangue em abundância e entre pedaços grotescos que não dava pra definir: um olho, que piscou, a fazendo ficar em pé no mesmo instante.
Apavorada saiu pisando na gosma pra fora do quarto e quase se esborracha no corredor quando o pé deslizou, como conseguiu se segurar a tempo evitou a queda. Pra seu horror, a parede estava gosmenta, só aí percebeu as mãos ensanguentadas. Com o coração querendo rasgar o peito e a testa febril ensopada, entrou no quarto dos pais sem cerimônia alguma e foi acendendo a luz pra eles acordarem de vez.
Ao contrário do que esperava, a luminosidade não lhe trouxe o conforto e a segurança que precisava naquele instante, tudo o que ela conseguiu lhe entregar foi um horror ainda maior que as trevas em sua mente jamais poderiam dar à luz, nem mesmo no estado da mais enferma loucura: a cama dos pais estava ensanguentada, e eles cobertos de sangue com os rostos completamente rasgados. Dessa vez o mal-estar veio numa fúria incontrolável que lhe aumentou a febre e enquanto o abdômen levava uma série de golpes, ela foi finalizada e os olhos embranqueceram enquanto as paredes giraram trocando de lugar com o chão. E naquela madrugada macabra a escuridão furtou todos os sentidos que ainda não houvessem enlouquecido ou sido apagados pelas trevas.
#papolivre
Essa história veio do segundo insight que tive enquanto escrevia “Panapaná” – que se você ainda não leu, então precisa fazer esse favor a si mesmo, mas faça durante a noite pra dar aquela pontinha de medo. Enquanto pesquisava pra ambientar o outro conto – durante a madrugada, claro – li que o arrepio pode provocar náuseas e o insight surgiu no mesmo instante. Ele foi idealizado pra ser com um garoto, mas devido à capa alterei pra uma garota e no fim acabou casando ainda mais.
Esse é o segundo conto de terror da série #calafrio que está se tornando um universo de contos assombrosos, que ainda serão unidos num conto maior. Diferentemente de “Gizmo” que focou no abuso de tecnologia, esse trata de algo mais grotesco. Quem nunca passou pela sensação desagradável do vômito? Algo que por si só consegue ser assustador, nojento e agoniante ao mesmo tempo.
Aproveito pra deixar o alerta quanto ao gosto de sangue na boca que pode se tratar de algo simples ou mais complicado, melhor não deixar passar batido. Como não acredito em coincidências, queria ainda destacar a trilha sonora desse conto, cujo álbum surgiu assim que abri o Spotify, ao ouvi-la consegui entrar na história e a usei enquanto a escrevia. Deixe-se arrepiar pelas dissonâncias dela e seu peso que possuem uma harmonia capaz de levar nossa mente pra longe da realidade, no exato ponto onde esse conto se torna possível.
Ósculos e amplexos,
Autor de Interrompido – A curva no vale da sombra da morte, é um cara apaixonado total por música, se deixar não faz nada sem uma boa trilha sonora. Bota em suas histórias um pouco de seus amores e do que sua visão inversível o permite enxergar da vida.