Um chamado no meio da escuridão o despertou do sono onde era massageado pelo conforto. Por mais profundo que fosse o mergulho no descanso – a ponto de permanecer nesse estado mesmo se a casa desabasse – bastava um sussurro daquela vozinha pra arrancá-lo de volta a realidade, como se tivesse apenas fechado os olhos pra descansá-los. Jogando o lençol de lado, os pés mal tocaram a friagem do chão e ele saiu tateando como quem conhece o caminho da escuridão.
Ao contrário de seu quarto, o corredor estava retocado pelos tons azuis do luar entrando pela claraboia que acompanhava toda sua extensão. Então ele seguiu na direção de onde veio o pedido de ajuda.
Chegou ao cômodo mais iluminado da casa: a cozinha; onde além das portas e janelas de vidro, uma claraboia derramava iluminação natural sobre a bancada da pia que se estendia por toda parede. Após dar a volta na ilha, ele encontrou o filho agachado próximo à pia, seu olhar vago contemplava as estrelas tentando se fundir ao brilho delas.
— Ô, meu filho, que aconteceu? – Ele envolveu o pequeno entre os braços pra espantar o pavor que tomava seu rostinho. O que o comoveu não foi ver o filho encolhido, mas agarrado a um copo com os bracinhos por não alcançar a torneira.
— Algo ruim… entrou no meu quarto… papai. – As palavras soltas carregavam a insegurança em descrever aquela coisa. Seu reflexo o fez olhar na direção contrária do quarto, a simples menção do acontecido tornava a mente solo fértil pra ser dominada pelos terrores noturnos. Ele cravou as unhas nos ombros do pai.
— Ei! Calma, filho. – E ofereceu um pouco mais de segurança através do abraço. – Papai tá aqui, não precisa ter mais medo.
— Tá bem. – A voz saiu baixa, mas confiante.
— Aqui, bebe! Você deve tá morrendo de sede.
— Brigado, papai! – Um sorriso espantou a sombra que se apoderara de seu rosto, dando tranquilidade ao pai enquanto tomava toda água de uma vez. – Mais! – Ele pediu estendendo as mãozinhas.
— Eita! Parece que alguém veio a pé do nordeste! – O comentário fez o garoto rir, ele também, mas por estar impressionado com toda aquela quantidade de água podia caber numa criaturinha daquelas.
Com o filho mais calmo, perguntou o que deixou daquele jeito. O garoto disse que um barulho de algo voando na orelha o acordou, nisso viu uma coisa flutuar pelo quarto e se esconder nas sombras. A eloquência em descrever a cena impressionou; que o garoto era esperto, isso ficou claro poucos meses após seu nascimento, mas essa precisão era concedida pelo medo, até porque ele usou palavras pras quais ainda desconhecia o sentido.
Ficando na mesma altura dele, o pai explicou que aquilo não passava de um pesadelo, não havia motivos pra ter medo, daí que o pequeno podia dormir, porém, o filho se agarrou a sua perna e segurou firme. Insistir que não havia nada foi insuficiente pra convencê-lo, dizer que ele precisava voltar pra cama porque tinha escolinha cedo também não colou.
— Se quiser, a gente pode assistir ou jogar até tarde, amanhã é sábado mesmo! – O garoto abriu a boquinha e logo fechou. Não precisou de mais que poucos segundos pra considerar que não valia a pena voltar ao quarto mesmo rolando pizza e sorvete. – Se você não vai… – Ele segurou as mãos pequeninas falando aos seus olhos. – …então, vou ter que lutar com o que tiver lá. – Vendo o rosto do filho iluminar, o convidou. – Quer ir comigo?
— Aham! – Ele confirmou agitando a cabeça. E de mãos dadas os dois deixaram a cozinha seguros de seu destino. No meio do caminho a valentia se desfez num aperto e em toda resistência que o corpo do garoto conseguiu exercer pra evitar prosseguir com a marcha.
— Você não quer mais derrotar o que tem lá? – Sem resposta, o filho ficou olhando assustado, o que não era possível ver.
— Tem algo muito mal lá dentro, papai. – O terror o fez soltar as palavras num sopro. Como o filho se recusasse a prosseguir, ele o tomou nos braços e começou a caminhar. A cada passo o garoto ficava mais agitado, primeiro se agarrou na tentativa de pará-lo, como não conseguiu, tentou se soltar, sem sucesso e a poucos metros do quarto chorou num desespero que fez o pai parar e o botar no chão.
— Filho, ei! Papai tá aqui, não precisa ter medo de nada. – O garoto começou a acalmar, mas a recusa em adentrar a escuridão escapando pela porta aberta era nítida em seus olhos. – Faz o seguinte: você fica aqui que o papai vai lá espantar o que tiver no seu quarto. Daí você vem pra dormir, pode ser? – Como o garoto acenou positivamente, ele seguiu o resto do trecho sozinho.
O que quer que o filho tivesse visto ou estava ali, quando o pai se aproximou da porta, uma presença medonha e palpável se misturava as sombras. Ele se moveu pra entrar, mas uma força ruim o empurrou pra fora. Inundando o ar de opressão, suas pernas precisaram de toda musculatura pra se deslocar na direção desejada, indo contra a correnteza daquele rio maligno.
Sem desviar os olhos do que precisava encarar, ele sondou o interior em busca de algo, percebeu que acima da janela, próxima à cama, havia tanta escuridão que mesmo a luz entrando não chegava ali; na real aquele ponto estava mais escuro que as entranhas da noite. Os pelos foram se erguendo, um frio lhe provocou uma descarga elétrica na coluna e os olhos encheram de água. Tudo no seu corpo dizia pra dar meia volta e correr por sua vida, mas ele não podia fazer isso, precisava ser forte pelo filho e mostrar não haver nada ali. Embora a crescente sensação de morte tentava mantê-lo longe do que quer que estivesse na escuridão. Não fosse pelo filho o observando sem piscar, ele estaria a quilômetros dali, mas a paternidade muda as pessoas, ela empodera de uma coragem alucinante que torna possível encarar até mesmo a cara do perigo.
Embora desejasse a pequena luz emanada pelo filho pra afastar a escuridão que se apossava de si, não podia olhar em sua direção pra seus olhos lacrimejando serem percebidos; seguindo contra o instinto de sobrevivência, manteve a atenção focada no que provocava aquela enxurrada de mal-estar: o buraco negro da não existência que engolia toda luz.
Quando passou o batente da porta, a mão procurou o interruptor, mas as sombras o esconderam, deixando sem poder alcançá-lo. Uma ânsia de vômito lhe embolou o estômago e foi piorando sua agonia a medida que não tinha sucesso em acender a luz. Prestes a vomitar tudo de dentro de si, a mão alcançou algo e a luz encheu o ambiente. Ao ver o que havia sobre a janela, a tensão desceu de seus ombros e ele sorriu.
— Filho, você não acredita no que tem aqui! – Ele enxugou os olhos e virou pro pequeno com seu melhor sorriso. Movido pela curiosidade, o garoto correu pra trás do pai. – É uma borboleta! – Ele apontou, animado.
— Uau! Que grande, ela, pai! – Mais confiante, entrou no quarto.
— Não disse que você não precisava ter medo? – E enxugou o suor da testa.
— Como ela foi parar aí?
— Você não gosta de dormir com a janela aberta? Ela aproveitou pra entrar.
— Mas, papai… ela tava fechada.
— Como ela tá aberta, então? Será que sua mãe não esqueceu de fechar?
— Não! Ela tava fechada mesmo.
— Certeza? – A insistência deixou o garoto em dúvidas. – Não tem problema, filho. Borboleta é sinal de boa sorte. – Isso tranquilizou o garoto. – Agora vem aqui que papai vai contar a história do morcego que se apaixonou por uma borboleta. – Ele sentou na cama e bateu no colchão, no mesmo instante o garoto pulou animado pra debaixo das cobertas.
— Morcego apaixonado por borboleta, como assim, papai? – O som de felicidade na voz e em sua risadinha encheram o quarto de bem-estar.
— Isso aconteceu há muito tempo… – A contação de história, somada a luz acesa e a presença paterna, faz o garoto cair no sono sem qualquer preocupação. O pai ficou observando o sono de seu anjinho, a tranquilidade nele nem fazia parecer que a pouco o pequeno estava no maior pavor.
Agasalhando bem o filho, fechou a janela, já que a visitante não demostrou que se moveria tão cedo, ele deixaria pra retirá-la pela manhã. Ao apagar a luz, olhou acima da janela: não viu ou presenciou coisa alguma ali, nem em outro lugar do cômodo. Então deixou a porta entreaberta e seguiu pro próprio quarto com os olhos quase fechando de cansaço. Um pensamento lhe tomou a mente, provocando riso por ele se deixar impressionar pelo medo do filho a ponto de manifestá-lo no corpo; no fim o calafrio foi causado pela janela aberta e o escuro mais negro que a escuridão não passou de ilusão de ótica.
Não foi preciso esforço algum pra voltar ao sono de pedra, bastou deitar e como estava calor descoberto mesmo caiu no sono. Porém, o sono acabou interrompido por um esguicho estranho feito uma gargalhada horrenda que o despertou num sobressalto. Ainda grogue e sem certeza se a risada fora real ou uma presença maligna que se projetou de seu sonho pra fora da mente, olhou o relógio marcando três da madrugada. Em volta estava tudo calmo, mas a agitação permaneceu nele e enquanto tentava voltar a dormir se deu conta que o inseto vigiando o sono do filho não se tratava de borboleta. Se ele não percebeu de cara pela mente funcionar num nível mais lento, devia ter notado após contar a história, onde falava da impossibilidade do amor entre um ser noturno e outro diurno.
— Aquilo é… uma mariposa! – Ele ergueu o tronco, impulsionadas pelo terror as palavras saíram contra a sua vontade. O inseto significava o extremo oposto da sorte, se tratava de um mau agouro a prenunciar a morte rondando a casa. Sem saber como, no instante seguinte estava no quarto do filho a procura da maldita, ela não estava lá. Ele aproveitou pra vigiar o sono do filho e o que viu provocou um choque: o inseto estava pousado sobre a boca dele, maior que antes. Ele precisava urgente espantar a coisa sem tocá-la pra não aumentar o azar, mas bastou se mover pra ela voltar pra cima da janela.
Com uma sensação ruim acelerando seu coração, os pulmões ficaram mais apertados e o ar difícil de respirar, ele precisava abater a coisa agourenta e queimá-la com álcool e sal grosso pra espantar o mau agouro que ela trazia sob as asas. Bastou abaixar pra pegar o chinelo do filho e a mariposa negra bateu asas e voou porta afora. Deixando a Bruxa de lado, sentou na cama, como o garoto estava com frio tratou de aquecê-lo.
— O que você fez, Mário Jorge? – Dando-se conta de quem era, ele olhou através da janela. Só aí percebeu a passagem do tempo, já era dia, borrados de trevas, os olhos não distinguiam mais a luz da escuridão. Notando sua falta quando o sol chegou, a esposa foi procurá-lo, vendo a porta do quarto do filho escancarada, o encontrou agarrado ao corpo imóvel e branco do garoto. – Lucas, acorda. – Ela tomou o filho dos braços do marido, mas ele estava frio como a sepultura.
— Que cheiro de álcool é esse, Laila?
— Mário Jorge, você matou o Lucas!
— Não… eu… ele… – Forçado a se dar conta da situação, seu mundo se desfez num terremoto que destruiu e revirou tudo de ponta-cabeça, o fazendo entrar em choque e a consciência apagou. Quando ela retornou, ele estava algemado e sendo levado pela polícia, tudo que pode fazer foi gritar que não fizera nada daquilo, mas ninguém lhe deu moral e ele foi colocado no camburão. Enquanto o carro se afastava, ele recordou o que sua vó costumava dizer, mas como ele e os irmãos foram criados sem crendices religiosas, achavam que suas preocupações não passavam de bobagens.
— Meu filho, nunca esqueça! – Ela agarrou o terço, olhando ao redor. – O mal pode assumir diversas formas e uma vez que você o aceita, ele para de causar medo. Não porque deixou de existir, mas por se tornar parte de você.
Condenado sem direito a apelação ou qualquer recurso pra redução da pena, Mário Jorge foi encarcerado. Não pode comparecer ao funeral do próprio filho e se despedir de forma decente da parte de si que tanto brilho trouxe ao seu mundo, o fazendo um homem melhor e ensinando a amar como nunca imaginou possível até sua chegada, além de salvar o seu casamento. No velório, Laila estava desolada, não conseguia conter o choro e quando o fazia ele vinha mais forte. Seus cunhados tentaram consolá-la, embora se negassem a acreditar que o irmão mais novo pudesse realizar uma barbaridade daquelas. Eles viram a mudança que o pequeno causou num moleque que só queria curtir e não respeitava a esposa; após o nascimento de Lucas, ele, que nunca ligou pra família, se reaproximou deles e largou de vez os bailes pra curtir o filho e a esposa.
Se Laila estava devastada, suas seis irmãs não estavam distantes dessa dor, o amor delas por Lucas era coisa de mãe, como se ele tivesse saído do ventre delas; sua chegada derramou tanta luz e felicidade numa família devastada pela perda, ele era a promessa que tempos melhores se aproximavam e que a maldição chegara ao fim.
Num lugar onde o maior evento era se dessa vez o time ia se classificar, a desgraça que se abateu sobre a família doriana chocou a comunidade, o assunto alastrou ganhando ares de lenda. As pessoas preferiam dar todo tipo de explicação sobrenatural a aceitar o fato que um pai amoroso cometera uma brutalidade daquelas, afinal, como era possível um homem dedicado a família drenar completamente o sangue do próprio filho? Só mesmo sendo coisa de outro mundo – ou de outra dimensão. Sem poder lidar com isso de maneira racional, as pessoas foram revivendo as crendices ensinadas por suas mães e avós, tornando as lendas reais; as superstições cresceram a ponto de evitarem passar na frente da casa pro fado ruim a rondar a propriedade não as perseguir e garrar nelas.
Sem condições de dar aulas, Laila se afastou, embora amasse suas crianças. Agora só conseguia alimentar o luto, cuja preferência gustativa era o amargo. Era trágico alguém tão empoderada e desprendida, que largou um emprego de sucesso numa multinacional em Sampham pra viver num bairro pequeno de Elham e dar aulas numa escolinha pra se dedicar a família, perder os dois garotos de sua vida numa única jogada do destino. Embora não fosse dada a religião, só podia ter tacado pedregulho na cruz pra merecer aquilo.
— TIM-DOM! – O som da campainha interrompeu seu processo de afundar na própria miséria. Um policial, chegou se desculpando, seu nervosismo e o rosto sombreado de tristeza alertavam: ele não vinha trazer notícia boa.
— Sei que esse não é o melhor momento, mas… um animal atacou a delegacia nessa madrugada e destruiu a cela de seu marido. O corpo dele está desaparecido.
— Animal! Como assim? Que animal fez isso e por quê?
— Não sabemos, senhora. – O policial estava agitado, se ele não teve sorte suficiente na hora de tirar o palitinho só podia significar que não era um bom sinal permanecer tempo demais ali. – Foi algum bicho desconhecido e muito forte pra rasgar as barras de ferro da sela daquele jeito.
— Então, vocês não têm nenhuma resposta concreta. E isso só confirma que minha família foi mesmo amaldiçoada?
— Bem… é o que tão dizendo, senhora…
— Sei o que tão dizendo, policial. Não posso evitar não saber dos comentários.
— Me perdoa, madame! Vim só fazer meu trabalho. É bom ter cuidado porque o que quer que pegou seu marido, pode tá atrás da senhora também.
— Pode deixar! – E fechou a porta encerrando o assunto. Agora, sua desgraça estava completa. Que mais faltava acontecer de ruim que já não estivesse pior?
Foi então que um barulho na parte de trás da casa chamou sua atenção, esperando algum xereta ela direcionou os passos na direção do som, prestes a enxotar quem quer que fosse.
— Mário Jorge! Você tá vivo!? Mas… como? – Ela nem sabia como ou o que dizer.
— Foi você, sua maldita!
— Eu o quê? Do que você tá falando?
— Foi você quem matou o meu filho!
— Você tá louco? Matar o Lucas não foi suficiente? Agora você aparece pra me culpar e poder conviver com a sua consciência.
— Como nunca percebi isso antes? – Conversando com os botões, ele ignorou as alegações da mulher. – Todos seus sobrinhos não resistiram a primeira semana de nascimento, nosso filho foi o único bebê a escapar dessa sentença.
— Como ousa me acusar de uma coisa dessas? O tempo na prisão roubou o resto de sua sanidade? Minhas irmãs moram longe daqui e seus bebês não sobreviveram porque eram fracos demais. Que tipo de monstro acha que sou? Você sabe que passei aquela noite toda dormindo!
— Sei que você tava quieta! Em nenhum momento te vi na cama, na real, tava tão preocupado com meu filho que nem lembrei que você existia ou de ver se tava mesmo dormindo do outro lado da cama. Afinal, como você não ouviu nosso filho pedir ajuda?
— Depois de colocar o Lucas pra dormir, eu tava com uma baita enxaqueca, então tomei uma aspirina. Você sabe como sou fraca com essas coisas: o remédio me derrubou.
— Então como você estava cheirando a álcool quando apareceu no quarto do meu filho? Isso não fazia o menor sentido, você sempre foi fraca pra bebida e remédio; pelo menos era o que dizia. Como pode, então, misturar os dois? Mas tive muito tempo pra pensar. Depois de beber todo o sangue do meu filho, você atacou meu bar pra disfarçar o cheiro de sangue e apagar da mente a maldade que fez, porque atacar uma criança é o pior pecado que existe; daí ficou bêbada e acabou soltando sua maldade através daquela gargalhada horrível. Como nunca enxerguei o que tava bem na minha cara?
— Ora, Mário Jorge! Mesmo a gente dando várias pistas, as pessoas só veem o que querem. – Seus lábios se moveram formando um sorriso macabro.
— Só me diga por que fez isso com meu filho! Ele nunca deu trabalho, era um garoto doce.
— O sangue dele era ainda mais doce! – Ela lambeu os lábios e riu, deixando o marido enojado e com a indignação transbordando. – O garoto era importante pra mim, me fazia ser vista como uma boa mãe e ninguém desconfiava de mim; o que houve foi um acidente de percurso. Sabe o quanto precisei me esforçar naquele enterro pra gentinha acreditar em mim? Além disso, tive que largar meu emprego, onde recebia informação de primeira sobre novos bebês da região, tudo porque não falavam de outra coisa. Você não faz ideia do que é dedicar três anos de sua vida a um fedelho, além de trabalhar e com isso não ter mais tempo nem energia pra caçar. Todos esses anos sem beber sangue acabei ficando tentada a provar o do Lucas, embora eu prefira o de bebês, e tava tão bom que só consegui parar quando não tinha mais nada.
— Você é o ser mais desprezível que existe! Como pode fazer isso com o próprio filho? Você não conseguiu amá-lo mesmo ele saindo de você?
— Diferente de você, Mário Jorge, sou mais prática. Meus sentimentos por ele não iam além da educação. Você bem sabe que nunca foi dada a sentimentalismo, por isso você começou a me trair, pra ver se conseguia um pouco de amor, já que nunca conseguiu despertar isso em mim. Seu patético!
— Sua psicopata maldita!
— Cuidado com o que diz, Mário Jorge! Se você sabe quem sou, então sabe bem o quanto posso ser perigosa. – Após terminar de falar, o céu começou a escurecer, ocultando os raios de sol por trás de uma nuvem densa de escuridão que foi se aproximando. Mas, espere, aquilo não era uma nuvem qualquer, era um panapaná; numa quantidade que não deixava passar qualquer luz.
— Hoje a noite vai ser longa, mas a lua não vai brilhar pra você! – Antes de Mário Jorge poder agir, seus pés e mãos foram presos por trepadeiras o deixando imóvel. Furioso e desesperado, ele soltou um urro que ecoou pelas ruas. O ódio contido naquele som o tornou indistinguível de um uivo que instigou a cachorrada. Ele continuou a berrar, se não podia se mover, ia gritar até alguém aparecer pra ajudar, mas, com exceção dos cachorros a latir em sintonia ao seu desespero, geral no bairro dormia. Tudo que lhe restava era gritar enquanto sua humanidade se desfazia na dor pro prazer de Laila que soltava seu gutural som aterrador.
#papolivre
Pra homenagear o dia do folclore, instituído em 1965 pelo decreto 56.747, celebrado nacionalmente em 22 de agosto, nada como um terror antigo com nova roupagem. Já que a maioria das histórias folclóricas abordam o medo, criei esse conto nem tanto tecnológico, mas com uma pegada mais urbana.
O insight surgiu enquanto assistia o episódio “Sanatório Waverly Hills” da terceira temporada de “Destinos aterrorizantes” (“Destination Fear”, de 2019) pra destacar a mania dos adultos de não acreditar em crianças, tornando suas experiências assustadoras ainda mais tenebrosas. Algo que pode acontecer pelo esquecimento do quanto o medo é aterrador pros pequenos, por saber que tudo não passa de “bobagem” ou numa tentativa de parar a projeção do próprio medo nos filhos ao negar a existência do inexplicável. Mas, como disse Shakespeare, em “Hamlet” (“Hamlet“, de 1603): “há mais coisas entre terra e céu que sonha nossa vã filosofia”, assim, a coragem pode não ser suficiente pra vencer o medo – como abordei nesse artigo e nesse outro.
Escrito durante a madrugada, o nome do conto vem do tupi, panapaná, panapanã, cuja repetição pa’nã, forma reduzida de pa’nama, “borboleta”, é usada pro coletivo de insetos que chega a formar nuvens quando migra. Também pode se referir a apenas uma borboleta ou denominar trepadeiras do gênero Phaseolus, cujo parente mais famoso é o feijão. Já o subtítulo é inspirado no filme “O silêncio dos inocentes” (“The Silence of the Lambs”, de 1991), baseado no livro homônimo de Thomas Harris, de 1988, que traz na capa uma mariposa com uma caveira tapando a boca de Jodie Foster. Enquanto a capa original do livro trazia uma mariposa caveira, a caveira do filme é uma mensagem subliminar que reproduz a foto “In Voluptas Mors” (em livre pt-BR: “No prazer da morte”), concebida por Dali em 1951, não um crânio como pode parecer aos olhos destreinados.
Apesar de bastante presente em mitos e no folclore – num fascínio antigo e intrigante, abordado nessa postagem exclusiva – como cria da cidade, desconhecia as lendas ao redor da mariposa e da borboleta, o que chegou a mim na adolescência foi o sentido de transformação e evolução atribuídos ao panapaná – que pocava na época. Meu primeiro contato “místico” com esses seres alados se deu através do Bleach, onde as Jigokuchō (em livre pt-BR: “Borboletas infernais”) são responsáveis por carregar mensagens e ordens importantes entre os Shinigamis, além de ajudar na travessia entre a Soul Society e nossa dimensão – evitando passar pelo Dangai (em livre pt-BR: “Precipício”), a dimensão que conecta as outras duas flutuando no vazio fora do espaço-tempo.
No mangá Tite Kubo comentava sobre inspirações e acontecimentos envolvendo Bleach, cujo título era freetalk, num deles borboletas infernais o ilustravam, a partir disso passei a adotar uma seção onde comentava um pouco do processo de criação e reflexão sobre as postagens chamada #freetalk, até no começo desse ano mudar pra #papolivre – inspirado no nome do Programa Livre – pra deixá-lo mais pt-BR. O Tite também me inspirou na minissérie Fragrante – a primeira publicada aqui – cuja garota não acredita no amor ou mesmo na existência do coração.
Até “Cidade Invisível“, de 2021, desconhecia que bruxas podiam se transformar em bicho ou borboleta, ainda mais a Cuca, que segundo o folclorista Andriolli Costa, em entrevista ao Jovem Nerd, isso aconteceu porque ela foi entendida como bruxa pela produção da série. A escolha pode ter parecido estranha porque a gente acostumou a vê-la retratada de outra forma, só que essa nada tem a ver com a versão de Monteiro Lobato, ele a descreveu como “velha como o Tempo” e com “cara de jacaré e garras nos dedos como os gaviões” pra reforçar sua feiura, não pra dizer que tivesse cara de réptil – menos ainda que fosse um. Apesar dela fazer apenas uma participação especial em “O Saci“, de 1921, de toda saga de livros do Sítio, acabou ficando estourada por ele resgatar uma personagem que se perdeu no inconsciente coletivo, restando dela apenas uma citação na cantiga “Nana, neném“, graças a essa fama a Cuca ganhou o status de principal vilã na série, estando muito mais presente na rotina do Sítio.
Ósculos e amplexos,
Autor de Interrompido – A curva no vale da sombra da morte, é um cara apaixonado total por música, se deixar não faz nada sem uma boa trilha sonora. Bota em suas histórias um pouco de seus amores e do que sua visão inversível o permite enxergar da vida.