Novamente a solidão se estendia pela casa hostil, onde ela vivia dias adormecidos. Ali, o vazio e a quietude eram tantos que às vezes a capacidade de reproduzir sons desaparecia, não importando o quanto ela se movesse ou fizesse barulho, tudo era emudecido pelas paredes que feito carpete absorviam o menor ruído. Em outras vezes o eco de seus passos espalhava, ampliando o exílio esmagador em meio a cômodos que se perdiam nas contas. Afinal, pra que todo aquele espaço, se ninguém a visitava? E mesmo que isso acontecesse, ela não tinha ânimo pra sair do próprio aposento.
Com exceção de uma moldura coberta por um lençol, não havia nada em seu quarto, onde o tempo sobrava. Sem ter o que fazer naquele mundaréu de cômodo, ela se pegava encarando a pintura impecável das paredes, onde não se via nem um grão de sujeira. Ainda assim, buscava por manchas ou riscos que formassem alguma figura abstrata, observando cada milímetro sem nada encontrar; como uma friagem congelante se desprendia da nuance impregnada nas paredes, a tarefa era realizada em uma distância segura. A falta de cor a se estender pelo quarto, aumentava a seriedade em seu rosto, a procura de algo que não podia ser localizado, e impedindo o surgimento de sorrisos.
Mesmo sem nada achar, seus olhos eram atraídos, numa contemplação hipnótica que a mantinha presa até o reflexo da luz intensificar, fazendo tudo irradiar fragmentos afiados, cujo brilho lhe perfurava a retina; até um impulso mergulhar sua visão nas trevas. Mas se a ausência de cor não conseguia remover sua visão, cada vez que encarava a pintura, a mente era atravessada e suas memórias boas ou ruins cegavam, sem que pudessem ser recuperadas.
Por mais que tentasse, era difícil não encarar as paredes, sempre limpas e com tintura fresca. Quem as mantinha daquele jeito? Ela nunca via ninguém por ali, ainda assim possuíam um asseio que deixaria o maior maníaco por limpeza em êxtase. Assim, como não havia mais o que fazer naquele minimalismo gritante, ela voltava a encarar as estruturas e cada vez que fazia isso, perdia um pouco mais de si. O fato de sua roupa ser da mesma cor, contribuía pra se perder a ponto de esquecer a própria identidade. Tanto mais encarava as paredes, menos se pertencia, sabia quem era, de onde vinha e o que fazia ali.
Ela continuou a persistir na tarefa que a consumia, até o fardo de examinar as estruturas tingidas de solidão se tornar pesado pra suportar. Tamanha era a opressão que as horas se arrastavam num ritmo vagaroso pelas paredes, porém sem deixar marca alguma, nem mesmo um filete brilhante e prateado, feito caracol. Esses fios invisíveis que se desprendiam, teciam cada uma de suas memórias arrancadas pela tristeza pegajosa da parede, que ela evitava encostar a todo custo pra não ficar agarrada e acabar desaparecendo de vez. Ainda que a mente não desejasse, seus olhos ficavam voltando a esmiuçar atrás de algo que precisava ser recuperado, uma parte importante de si que não era alcançada nem ali ou mesmo em sua memória; nisso o nível de tensão só fazia aumentar.
Sem condições de suportar uma ansiedade que a levava a se perder mais, ela seguiu em direção ao único móvel existente ali que vinha ignorando. Embora as memórias estivessem se desfazendo em pó, conforme o peso de um tempo desconhecido caía sobre si, a lembrança que não devia chegar perto daquilo, permanecia intacta. Ela nunca ousou desobedecer à ordem, apenas a intenção de olhar em sua direção era suficiente pra lhe encher de pavor.
Porém, agora que lhe restavam poucas partes de si que ainda não haviam sido envolvidas pela inexistência, ela perdeu o medo suficiente pra se aproximar. O que podia haver de tão horripilante ali pra ser aconselhada a manter distância? Conforme mais perto ficava, arrepios começaram a estourar pelo corpo, os músculos tremeram, querendo levá-la na direção contrária e os olhos encheram d’água. Afinal, quem a havia lhe ordenado aquilo? De onde partira tal restrição que por tanto tempo impediu sua aproximação?
Um clima seco e poeirento foi sugando todo ar da sala, tornando o espaço sufocante, enquanto ela era envolvida pela ausência de cor num abraço que a esmagava, tentando arrastá-la no sentido contrário. Mas sua teimosia foi mais forte e ela conseguiu vencer a força de empuxo, cuja pressão desejava mudar a direção de seu destino. Ainda que a percepção alertasse pra gravidade do erro prestes a ser cometido, com reações contrárias por todo corpo, ela seguiu em direção ao horror iminente.
Quando sua mão alcançou o lençol e ela se preparou pra puxar o manto, soou em sua mente “NUNCA OLHE NO ESPELHO!”, num tom ameaçador que a arrepiou por completo. Ao cair o pano, o objeto brilhante a sua frente não mostrava o reflexo dela, apenas paredes brancas, até uma multidão se formar. No momento em que isso aconteceu, o horror a golpeou a nuca, acertando sua consciência.
O bando de olhos esbugalhados refletiam um terror real demais pra ela suportar, trazendo uma percepção sombria: ELES ESTAVAM VIVOS! E o pior: não eram eles que se encontravam presos no espelho. Um pavor ao qual nem mesmo sua mente febril poderia conceber, trouxe de volta suas memórias.
Num momento que se perdeu na inexistência, antes dela se tornar uma teia de lembranças prestes a se desfazer, soube que o único museu da Cidade Zinha estava com uma mostra que vinha recebendo críticas variadas por seu teor macabro, e até de mal gosto. Separando um tempo, ela foi pra verificar se a exposição era mesmo isso tudo que diziam.
Conforme trafegava entre as galerias, teve a certeza de tudo não passar de exagero, apenas um golpe de marketing, até se aproximar de uma sala meio escondida, onde todos os quadros estavam cobertos. Um deles com uma moldura dourada de seu tamanho lhe chamou a atenção, ao puxar o lençol que o cobria, a pintura composta de cores nefastas, mostrava uma garota devorada pelo brancor, observando um espelho de onde se via rostos impregnados de terror.
Mesmo sem qualquer legenda ou explicação, ela soube ser ela ali. A realidade infundida na tela foi de um pavor tão tenebroso que sua mente começou a colapsar e as mãos a tremer. O horror que tomou seu corpo provocou um infarto fulminante, a fazendo cair ali mesmo. Então uma moça bonita, do laço de fita, vestindo uma capa que trançava as horas mais obscuras da noite, lhe estendeu a mão, a ajudando a levantar, e levou ela pra um quarto onde lhe disse pra nunca se aproximar do espelho.
— No dia em que você fizer isso jamais poderá retornar ao mundo mortal. – O alerta foi assustador suficiente pra fazê-la temer apenas olhar na direção do objeto. Mesmo quando a memória começou a apagar, a sensação de evitá-lo permaneceu.
Ela só precisava esperar até todas as suas memórias serem deletadas pra voltar num novo corpo, mas agora suas chances já eram.
— Por isso, uma vez que se deixa a terra dos viventes, mortal nenhum consegue retornar pra lá. – A voz da mulher soou em sua mente.
— NÃAAAAO! – Seu desespero saiu berrado. A agonia por perder sua única oportunidade a fez bater no espelho, que se quebrou na frente dos espectadores que assistiam sem poder acreditar existir mesmo um fantasma preso ali.
#papolivre
Já era noite, e mergulhado na escuridão, eu tentava recuperar um insight pra uma história. Comecei a repassar mentalmente um dos episódios de “O Clube da Meia-noite” (“The Midnight Club”, de 2022), pra encontrar a palavra ou o momento-chave que a concebeu, foi quando o conceito dessa história surgiu, seguida da ordem: “Nunca olhe no espelho!”. Enquanto a rascunhava, a impressão que me impregnou a mente foi a sensação agoniante causada por se estar cercado de uma cor que ao invés de traduzir pureza sufoca, até se tornar claustrofóbica – levando a um esquecimento que faz a personagem ser roubada de si mesma, como acontece com o Alzheimer.
Assim, preferi focar na ausência como forma de causar pavor, ao invés de figuras deformadas e assustadoras, ocultando algo por baixo de uma cor doentia, como acontece em “O papel de parede amarelo” (“The Yellow Wallpaper”, de 1892) – um dos primeiros textos feministas disponíveis – reunido em “O papel de parede amarelo e outros contos” (“The Yellow Wallpaper and Other Stories“, de 2006), onde o terror psicológico de Charlotte Perkins Gilman, mostra o enlouquecimento da personagem principal após ser mantida em prisão domiciliar pelo marido ao demonstrar sinal de depressão e ansiedade. História essa surgida após a própria Charlotte sofrer um severo surto de depressão pós-parto.
Apesar de não parecer, o uso excessivo de branco pode ser prejudicial. Quartos pintados apenas nessa cor projetam sensação de vazio e solidão, inclusive tornando o ambiente frio, monótono e sem felicidade. Essa cor – ou a ausência de pigmentação – costuma ser considerada triste em culturas orientais – estando relacionada a morte na Índia e na China. Inclusive, durante a Idade Média, o branco era a cor oficial do luto pra realeza europeia, algo que perdurou até fins do século XVI, conforme registrou Câmara Cascudo, em “Contos tradicionais do Brasil“, de 1967.
Embora o costume de envolver mortos com tecidos claros seja uma herança ancestral, como os egípcios faziam com as múmias dos faraós, membros da nobreza, funcionários e até animais, os cobrindo com tiras de linho, porque isso ajudava na conservação do corpo, evitando sua decomposição. Também no caso de Lázaro, que ao ressuscitar surge envolvido por faixas e um lenço no rosto [João 11.44], algo que também aconteceu com Jesus, cujas bandagens foram encontradas largadas após sua ressurreição [Lucas 24.12, João 20.5-7]. Devido ao hábito de envolver defuntos em lenços e mantos ou bandagens brancas, a cor se tornou associada a tristeza no imaginário pop e fez fantasmas serem retratadas de branco ou envolvidas por um lençol nessa cor – já que era uma forma de reforçar que a aparição não se tratava de algo desse mundo, mas de uma assombração envolvida pela morte.
Na mitologia grega, existia o Lete, rio localizado no Hades, o mundo dos mortos, que provocava o completo esquecimento caso suas águas fossem bebidas ou até tocadas, já em Campos Elísios, o paraíso, sua ingestão servia pra fazer as pessoas esquecerem lentamente as vidas passadas até poderem retornar ao mundo material. Seu nome vem do grego lếthê, “esquecimento, ocultação”. Na “Divina Comédia“, (“La Divina Commedia“, escrita entre 1304-1321, originalmente Comedìa até ser renomeado por Giovanni Boccaccio), de Dante Alighieri, o Lete serve pra apagar os pecados cometidos, enquanto no Purgatório, até o espírito ser purificado e poder entrar no Céu.
Nesse conto o Lete é representado pelo quarto branco, cuja exposição vai deletando as memórias até que se possa retornar, porém, isso não é possível porque mesmo mortos, seres humanos tendem a falhar, seja por curiosidade ou outros vícios atrelados a nossa existência decaída. Espero que você tenha gostado da história, deixe suas impressões nos comentários e acompanhe universo #calafrio pra outros contos assustadores – e cuidado: nunca olhe no espelho, principalmente de madrugada!
Ósculos e amplexos,
Autor de Interrompido – A curva no vale da sombra da morte, é um cara apaixonado total por música, se deixar não faz nada sem uma boa trilha sonora. Bota em suas histórias um pouco de seus amores e do que sua visão inversível o permite enxergar da vida.