Contificando: Retravo – Quando o escuro deu à luz
Mishael Mendes/ Inversível

Retravo – Quando o escuro deu à luz

Como manto frio, o breu ocultou a luz sob as sombras. Não se via nada além da escuridade. Com a mente misturada as trevas, o que lhe restava era confusão. A certeza de estar vivo se tornara vaga, ele também não lembrava o que aconteceu ou quem era; sua cabeça estava o caos primordial.

Pensando que a falta de luz fosse causada pelos olhos fechados, os forçou a abrir. Sem enxergar um palmo se quer, o receio que a visão se fora provocou arrepios e fez a cabeça girar. Conforme os olhos buscavam algum traço de luz, notou a textura do negrume impregnando tudo. Deixando o que envolvia sem forma e vazio. Sua situação era pior que a perda da visão: ele se encontrava nas entranhas da obscuridade.

Há quanto tempo estava ali? Sua orientação de espaço e tempo foi furtada, ele não sabia se se encontrava no cativeiro das trevas a segundos, horas ou meses. Nada mais fazia sentido algum.

Tampouco conseguia se situar onde estava ou qual sua localização no espaço; menos ainda se se achava à direita ou esquerda; à frente ou na retaguarda, perto ou distante; embaixo ou acima. Nem mesmo podia dizer se caía ou permanecia sobre uma superfície, ou abaixo dela.

O corpo não parecia consciente do meio onde se encontrava. As trevas lhe tomaram qualquer referência, ele perdeu até a noção da própria estrutura física, esquecendo se era baixo, mediano ou alto. Fundido à escuridão, não podia precisar tamanho, apenas que se tornava um com a deformidade da faminta extensão.

Perdido nas trevas

Talvez fosse esse seu fim! Obrigado a penar a ausência de luz, calor e sensações. Onde sofreria a perda do que não dava pra rememorar; numa inexistência a se alargar pelo tempo do qual desconhecia o término ou mesmo se haveria um fim.

Porém, quando achou que se tornara uma consciência vagante pela escuridade, uma dor aguda surgida por tentar se mover lhe causou arrependimento. Todo o corpo latejava, numa aflição que era difícil dizer onde o sofrimento se originava, ele parecia partido em inúmeros pedaços, todos conectados através da dor.

Seria esse o sofrimento eterno? O resultado de suas escolhas feitas, desfeitas e malfeitas; resultando numa terrível punição?

Se recordasse ao menos o que fizera pra merecer tal tortura a lhe fatiar o corpo. Apertando os dedos da mão, uma dor afiada lhe atravessou a pele feito espinhos; da cintura pra baixo nada se movia, o nível de dor havia interrompido a conexão do sistema nervoso com os membros inferiores.

Mesmo com o completo silêncio, ele se esforçou por ouvir algo: a mudez dominava qualquer intenção de emissão sonora. Misturando a quietude – que impedia o menor ruído de se manifestar – a dor rasgada a dilacerar seu corpo fez a sensação da perda da capacidade auditiva se agravar e a angústia pesou sobre si.

Antes da situação opressora o esmagar por completo, o lampejo de um pensamento reluziu; lhe trazendo a mente os versos de uma cantiga.

— Brilha, brilha estrelinha. Lá no céu, pequenininha. Solitária, se conduz. Pelo céu com sua luz. – Os ouvidos captaram suas palavras a quilômetros dali, a voz estava baixa e fraca, impedindo se localizar através do som. Será que se fosse um morcego ou algum ser acostumado à tenebrosidade do abismo conseguiria se encontrar ali?

A canção até não trouxe a luz que ele precisava, mas os versos serviram pra reduzir o desespero e a agonia prestes a devorá-lo. Assim, continuou a repeti-la, enquanto tentava se agarrar ao tênue fio de esperança. Insensível, o escuro continuou a avançar, fechando sobre ele; fazendo-o prisioneiro num caixão abismal.

Numa espécie de mantra, ele prosseguiu cantarolando, a implorar ajuda naquela interpretação de desespero, enquanto as trevas só faziam ficar mais densas. Em meio ao peso que a escuridão exercia, ele pensou ouvir latidos; tentou cantar mais alto, mas a garganta ardia.

Fragmentados, os versos escaparam em palavras indistinguíveis que arranharam a goela, fazendo as cordas vocais estranharem o que tentava emitir. A voz fraquejava, se negando a sair, até mexer a boca ficou complicado. Mas ele insistiu na cantiga ou no que quer que estivesse escapando dos lábios.

Insatisfeitas, as trevas consumiram o ar restante, provocando tosse ao tentar esganá-lo. Em busca do oxigênio a rarear, ele ergueu a cabeça, conseguindo com isso intensificar a dor. Se agarrando, como carrapicho, o escuro grudou em sua pele, tentando soterrá-lo debaixo de sua sombra fatal.

Conforme respirar se tornava custoso, a sensação de morte cresceu, espalhando em cada célula a certeza que se ainda não havia falecido, agora morreria de vez. A claridade da travessia pro outro lado começou a surgir, fazendo a luz se derramar na escuridão. Nascendo de novo, ele foi retirado de entre os escombros.

Arrastado pela memória pra velha infância, voltou ao instante em que a mãe lhe ensinou a cantiga; quando ainda não sabia controlar o fluxo interminável de pensamentos. Assim que foi colocado na maca, o paramédico falou algo, como não foi compreendido apontou sua mão, dizendo mais alto pra abri-la. Ao olhar na direção indicada, ele se deu conta que todo tempo que estivera no escuro manteve uma rosa segura, mesmo sem lembrar de tê-la consigo.

A cor da flor o fez recordar que, como no dia seguinte estaria ocupado, antecipou a comemoração do Dia dos Namorados, combinando de passar a tarde toda com sua pessoa favorita. O encontro seria no Osasco Plaza Shopping, que estava lotado; comprada a flor preferida dela, seguiu pra praça de alimentação, onde iniciariam o encontro com comida japonesa.

Passava do meio-dia e ele continuava esperando, uma das qualidades de sua companhia não era a pontualidade, e lembrar disso o fez rir. Foi quando a realidade se tornou um pesadelo inacreditável: o chão da praça descolou, voando até o teto. Tudo desabou, sugado pelo abismo infestado de trevas.

Quando a equipe de salvamento, composta de bombeiros, soldados, paramédicos e voluntários, viu que alguém foi encontrado vivo, comemorou. A comoção foi geral, não por menos, a probabilidade de encontrar alguém vivo àquela hora era mínima; mesmo tendo retirado 50 caminhões de entulhos, ainda restava mais 30 toneladas, escombro suficiente pra manter presas as almas dos corpos que jaziam sem vida abaixo daquilo.

Tendo passado o resto do dia removendo entulhos, a busca agora se concentrava apenas em achar e identificar os mortos em meio a destruição, então, os cachorros começaram a latir. Ao segui-los, os bombeiros ouviram uma cantoria baixa e se concentraram na retirada de uma laje, onde encontraram o último sobrevivente. Não fosse por ele cantar tão alto, seria impossível ser encontrado sob as toneladas de concreto e ferro solidificados que o mantinham sepultado.

Conforme o helicóptero seguia pro hospital, uma gratidão profunda o tomou, fazendo-lhe sentir uma conexão inexplicável com a vida; seus poros brilhavam, exalando luz. Ele se deu conta de que não precisava do brilho de uma estrela distante – feito de pó de estrelas – pois continha o que precisava pra enfrentar as trevas.

Todo luz que existe precisamos dentro de nós

Visando protegê-lo da claustrofobia, o cérebro bloqueou o acesso à memória pro medo irracional não o fazer sucumbir na vala onde foi soterrado; mais importante que a consciência era o instinto de sobrevivência. A experiência ensinou não precisar temer lugares fechados, sua luz era mais forte, e a oportunidade de continuar vivendo, marcou um novo começo.

Causada pelo vazamento de gás dos tubos sob a praça de alimentação, a explosão ocorreu por imprudência da administradora do shopping, que se recusou a acreditar haver falha na estrutura do prédio. Como o centro fora inaugurado um ano antes, quando avisada do cheiro forte nas dependências, não deu crédito. Deixando quase quinhentos feridos, além de causar a extinção de quarenta e duas vidas.

A justiça condenou cinco pessoas pela explosão, dois executivos e três engenheiros, que tiveram a absolvição ordenada seis anos após a tragédia ter ocorrido devido à falta de provas. Quanto a indenização, foi paga apenas após a administradora recorrer ao Superior Tribunal de Justiça e perder a apelação. Mas a compensação não pôde restituir as vidas perdidas, nem arrancar os traumas ou desfazer as deficiências causadas aos sobreviventes.

Se na tarde de 11 de junho, de 1996, ele tivesse perdido a hora ou optado por outro programa – como alugar algum blockbuster e fazer uma pipoquinha pra um cine caseiro – tudo seria diferente. Devido à queda sofrida, o garoto perdeu o movimento das pernas, passando a se locomover através de uma cadeira de rodas. Fora os pesadelos que assombravam com um nível aterrador de realismo. Ainda assim, ele não podia estar mais grato pelo mal que lhe resultou em bem: a chance de recomeçar o permitiu viver sem medos e traumas, com a alma e o coração mais leve e um desejo intenso de desfrutar a beleza de cada manhã presenteada.


#papolivre

Era noite de sábado, o tempo estava agradável, e no escuro da sala a gente assistia “A Caminho do Céu” – um dorama que mostra um jovem autista e seu tio trabalhando como limpadores de eventos traumáticos; cuja tarefa implica em organizar os pertences de pessoas falecidas e descobrir suas histórias deixadas pra trás. É uma daquelas séries que nos faz avaliar nossas vidas, então vale o play.

A história narrada no oitavo episódio mexeu comigo, pelo fato de abordar a tragédia do Shopping Center Sampoong em Seul, Coreia do Sul. Que desabou em 1995, matando mais de 500 pessoas e ferindo gravemente outras 900, porque o edifício foi construído com concreto de má qualidade e poucos vergalhões sobre um terreno instável que fora um aterro sanitário. Enquanto as cenas rolavam, fiquei imaginando a angústia das pessoas sob os escombros e o desespero em permanecer vivo enquanto o ar era sugado pela escuridão.

Alguns dias antes, havia recebido um desafio de escrita criativa pra criar um conto com o tema “começo”, na hora a história começou a se formar. Decidido a baseá-la em fatos pra eu poder fazer uma crítica social, comecei a pesquisar grandes tragédias por aqui e fui conduzido a esse acidente que aconteceu um ano depois do de Seul – como eu era pequeno, não lembrava dele. Após ler algumas reportagens e, assistir outras, consegui o material necessário pra descrever o ambiente, seu impacto e como aconteceu o resgate do suposto sobrevivente.

O conto nasceu pra mostrar o recomeço da vida após uma experiência traumatizante, por isso o nome “Retravo”, que entre outras definições possui o significado de “principiar de novo, recomeçar”. Ele acabou não sendo publicado no blog do grupo – seu rascunho ficou pendente até o excluir por esses dias. Por um lado, foi bom porque precisei cortar algumas partes pra ficar no limite de 1.000 palavras 😅. Após passado mais de um ano e várias alterações esse é o resultado. Espero que você tenha gostado – deixe seu comentário pra eu saber o que achou dele, assim você faz esse escritor muito feliz.

Ósculos e amplexos,

Mishael Mendes Assinatura
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