Minha mãe está passando por um processo que exige muita vontade de viver e persistência, mesmo sendo difícil manter o ânimo. E essa não é uma daquelas coisas que a gente corre pra contar – até mesmo o sucesso deve ser mantido em anonimato, quanto mais se tratando de algo ruim. É preciso saber com quem dividimos as coisas, seja pra evitar pessimismo, recontar detalhes desagradáveis ou mesmo da história se espalhar e ser distorcida; por isso selecionei a dedo com quem a compartilhei.
Entretanto, acredito ser o tempo de falar com mais clareza sobre o que andei sugerindo. Não por ser fácil, mas por necessidade, porque a escrita torna mais fácil lidar com o fardo. Mesmo parecendo que eu não sinta ou me importe, a real é que pra mim não é fácil falar sobre determinadas coisas, ainda mais quando é preciso engolir o impulso de chorar e seguir.
No meio desse ano, minha mãe foi diagnosticada com um tipo raro de câncer de mama, muito agressivo, que costuma atingir mulheres mais novas. A ironia nisso, é que logo no começo – em novembro do ano passado – quando ela detectou um caroço e buscou ajuda, a médica que a atendeu foi negligente e sem prestar atenção a mamografia, a liberou dizendo se tratar de um tumor benigno.
Aqui, faço um alerta pra que a desconfiança de vocês os façam ser persistentes, e se não der resultado, procurar uma segunda opinião médica. Quando minha mãe comentou do caroço, a sensibilidade me alertou se tratar de algo ruim, mas preferi me agarrar a incerteza do “tudo bem” de uma profissional inconsequente, ao invés de atentar pro que a alma me tocou; o que poderia ter acontecido se eu tivesse agido não é possível saber, o que resta é ajudar como puder e manter acesa a esperança.
Apenas quando minha mãe retornou, e foi atendida em outro lugar, por profissionais sérios que pediram uma bateria de exames, se constatou o tumor e seu estágio avançado. Com a ajuda de D-s, ela acabou encaminhada pro Hospital da Mulher, e tamanha foi a urgência em contê-lo que a químio foi iniciada antes da cirurgia.
No início do processo o organismo da minha mãe respondeu bem, até algumas semanas atrás ela acordar febril – justo o único sintoma que não poderia surgir, dentre todos os efeitos colaterais esperados como resultado da químio. Febre é a resposta do organismo a uma ameaça mais séria que afeta todo corpo, também podendo surgir quando a imunidade está baixa; o aumento da temperatura serve pra tornar o ambiente menos propício pra reprodução de agentes infecciosos e empoderar as células do sistema defensivo – porém, quando é muito elevada pode causar mau funcionamento e até insuficiência dos órgãos.
No caso da minha mãe, bastou uma investida da sinusite, a qual ela estava acostumada a ponto de nem perceber que tinha isso, pro corpo entrar em alerta devido à imunidade quase zerada, resultando numa internação às pressas, por cautela. Receber essa notícia, quando as coisas pareciam bem, foi o mesmo que ter o chão trocado pelo céu, enquanto um terremoto que fez tudo tremer, assaltou nossa reação, apesar de ser preciso nos agarrar pra não cair no abismo que restou sob os pés. Foi preciso tempo pra digerir e nos reestabilizar, enquanto a gente se dividia ao longo de mais de uma semana, esperando com paciência minha mãe receber alta, a medida que ela sofria a ânsia de voltar pra casa – por mais bem assistida que estivesse no hospital.
Como seu corpo respondeu bem à medicação, ela acabou liberada após a gente se frustrar com às vezes que isso não aconteceu, e o prazo foi sendo adiado. De lá pra cá, minha mãe passou por altos e baixos, mas quando até seu rosto começou a exibir um aspecto melhor, o exame de sangue pré-químio constatou que a imunidade dela estava quase zerada outra vez, fazendo a última dose da vermelha ser adiada; o que nos deixou preocupados mais uma vez, sem entender o que causou isso de novo.
Esses últimos acontecimentos gritaram na nossa cara, deixando um zumbido nos ouvidos pra lembrar que a gente nunca está preparado pras surpresas reservadas pelo amanhã [Mateus 6.34] – que nem mesmo nos pertence [Tiago 4.14]. Mas se o nosso empenho e esperança não são suficientes pra nos munir contra o inesperado que insiste em golpear, o que mais temos ouvido durante esse processo é: confia em D-s, ele está com vocês e tudo vai dar certo – algo importante de recordar, porque durante o processo importa trazer a mente o que fortalece a esperança [Lamentações 3.21-26]. Porém, saber que D-s está com a gente a cada etapa [Mateus 28.20], principalmente nas dificuldades é parte fundamental, ainda assim não é a equação completa.
Como mostra o poema “Das profundezas do abismo“, o sofrimento altera nossa percepção, e o processo pode quebrar nossas expectativas de maneiras que não dá pra imaginar, nem mesmo remendar – ainda que se utilize a técnica kintsugi que abraça a imperfeição. Apenas quando é preciso enfrentar a tempestade, no meio do oceano, a gente vê que nunca está pronto o suficiente, por mais que se saiba que seu surgimento é uma realidade. Todo processo traz dor e confusão, mesmo quando a gente acredita estar pronto, porque é durante o tempo que nele se desdobra onde descobrimos nunca estar preparados o bastante; que as surpresas podem ser desagradáveis, e os cortes ter profundidade suficiente pra dilacerar a alma – no artigo “Fazendo cortes em busca da alma“, falo com mais profundidade sobre esse tipo de lesão.
Qualquer chance de aproximação da sombra da morte, não importa o tamanho, causa pavor e calafrios. Mas ainda que tudo seja sacudido por terremotos, deixando restar apenas uma pilha de bagunça que não dá pra compreender, e um vendaval varra pra distância toda ilusão de controle, pra D-s tudo continua sob sua vontade, sem que um único fio de cabelo se perca [Lucas 21.18] ou o crescimento desordenado das células escape de seu conhecimento. Já dizia o Alcorão, 6ª Surata (Al An’ám – O gado), versículo 59: “Ele tem as chaves do desconhecido, coisa que ninguém, além dele, possui; Ele sabe o que há na terra e no mar; e não cai uma folha (da árvore) sem que Ele disso tenha ciência; não há um só grão, no seio da terra, ou nada verde, ou seco, que não esteja registrado no livro esclarecedor”.
O processo serve pra revelar nosso nível de fraqueza e falibilidade, por isso custa tanto fazer a travessia por esse oceano, mas é na fraqueza onde a gente encontra forças [2 Coríntios 12.10], pois a alegria de D-s é o que nos fortalece [Neemias 8.10]. É ali, nesse lugar mais apartado, onde a esperança renova e se torna asas – não pelo uso de energético – mas pelo fato de esperar em D-s [Isaías 40.29-31].
É preciso se lançar no oceano e dar braçadas mesmo ele tentando nos afogar, porque na imensidão azul é onde se dá o encontro inevitável com a segurança [Isaías 43.2-3] – algo revelado no conto “Abisso – Quando o pavor agita as águas“, cuja leitura levou minha mãe às lágrimas. Esse encontro é que muda a realidade e nos faz aderir à loucura da cruz [1 Coríntios 1.18,25] e, em esperança, crer contra a esperança [Romanos 4.18]. Perceber que as coisas fogem do controle causa angústia, e isso agrava a dor, mas quando a gente lança toda ansiedade em D-s [1 Pedro 5.7] – embora ainda seja preciso carregar o fardo [Lucas 9.23] – o peso se torna leve [Mateus 11.28-30], a ponto de não atrapalhar a caminhada até todo sofrimento ser estancado.
Assim como é possível dormir na tempestade [Marcos 4.37-38], dá pra sorrir na dificuldade [2 Coríntios 12.10] e alcançar a paz [João 14.27] no processo. Quando sabemos quem está no controle da existência, a força das ondas se torna balanço que tranquiliza, porque sua revolta não reduz em nada o poder de D-s pra trazer alívio e solução. Esse teste de paciência serve pra dar conhecimento que trará a esperança que não confunde [Romanos 5.3-5].
Isso não quer dizer que o mar não vai tentar se precipitar de nossos olhos, com força que é difícil impedir sua queda pelo rosto. Ainda mais quando se enxerga a dor e o cansaço nos olhos onde antes havia força – pra mim essa foi uma das partes mais difíceis de encarar: mesmo sem minha mãe sentir nada, ver seu rosto tomado pela tristeza e a exaustão. Mesmo assim, confiando em D-s é possível ter alegria e paz pra transbordar esperança [Romanos 15.13], pois nada escapa de seu controle, até mesmo a tempestade é ele – como recorda a trilha sonora dessa crônica, onde D-s falou direto comigo – dando a chance de receber um poder sobre-humano – algo destacado no artigo “Forças disfarçadas de tragédias” – pra ultrapassar a ferocidade e a altura das ondas que tentam nos devorar e esconder das vistas a terra, onde vamos aportar em segurança no momento que pode até ser desconhecido no presente, mas que é certo de chegar.
Ósculos e amplexos,
Autor de Interrompido – A curva no vale da sombra da morte, é um cara apaixonado total por música, se deixar não faz nada sem uma boa trilha sonora. Bota em suas histórias um pouco de seus amores e do que sua visão inversível o permite enxergar da vida.