#episodioanterior
Quando a coisa está ruim, bom é ficar alerta porque dá, sim, pra piorar, ainda mais quando se recebe a visita inesperada dos parentes malas. Isso tornou o trabalho já difícil de Perê em escrever seu conto, e tentar fugir desse fado acabou por deixá-lo de cama.
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Diante do interrogatório de Clara e o espanto nas caras da geral, a reação de Perê foi uma só:
— QUE ACONTECEU? SEUS FILHOS SÃO UNS PESTES! SE VOCÊ SOUBESSE EDUCAR ESSES MONSTRINHOS, NADA DISSO TINHA ACONTECIDO! – A vontade foi berrar essas verdades, mas sugando todo ar que lhe foi possível, contou o que houve na real.
Após alcançar o pedaço de paraíso encontrado, Perê se ajeitou próximo ao lago e meteu os pés na água enquanto fazia a correção; deixando combinado com os pequenos que caso se comportassem, depois se juntaria a eles pra uma aventura e os deixou brincando na grama.
A leitura do conto o levou por lugares aos quais não imaginava possíveis até lhe preencherem a mente, se solidificando em palavras unidas pela poesia dos instantes, cheiros, sabores e sentimentos. O bem-estar pela conclusão do desafio imposto provou a fertilidade em si, fazendo uma correnteza de harmonia correr por ele.
Essa abundância de bem-estar só se tornou possível pela insistência na tarefa, não por um ato mágico que alcança por vezes quem merece seu toque. Inspiração resulta da interpretação do que chega a mente através dos sentidos, podendo surgir de forma aleatória ou quando é forçada a isso. O mito que supervaloriza a inspiração tem mais a ver com perfeccionismo e como forma dos antigos artistas tornarem seu trabalho valioso – como os coletores de mandrágora na Idade Média que contavam que a planta soltava um grito mortal pra justificar o preço absurdo cobrado.
A paz a reinar, evidenciou que os miúdos só precisavam de um espaço onde seus passos fossem recebidos com prazer pela maciez da grama. A molecagem ficou completa com frutinhas a lotar o tronco da jabuticabeira, com as quais se lambuzaram. Tão quietinhos ficaram que sua existência acabou esquecida.
— UÁAAAAA! – O berreiro chamou a atenção.
— Chorando por que, Silas? – A sobrancelha de Perê se ergueu após ver o que acontecia.
— Não… con… sigo… descer…! UÁAAAAA!
— Ué! Cê não acertou subir? Agora desce!
— Mas não sei como! – O pequeno fungou, tentando recuperar a calma.
— Eu também não! – Ele deu de ombros. – Era pra pegar as jabuticabas, não pra montar nessa árvore aí.
— Mas eu queria explorar.
— Falei que a gente ia fazer isso junto. Mas já que explorou pra cima, agora explora de volta pro chão.
— Não consigo!
— Eu espero! – Ele continuou, sem mover um músculo de sua emoção.
— Então nunca mais vou ver meus pais?
— Até vai, quando eles vierem aqui!
— UÁAAAAA! – A agonia por não conseguir realizar a tarefa mais a certeza da surra que ia levar caso os pais aparecessem aumentou seu desespero. Mesmo com todo aquele escândalo, Lila permaneceu parada embaixo da árvore, só observando o movimento.
Como o berreiro não parava, Perê resolveu ajudar o pentelho a descer. Assustado como estava, era uma surpresa o garoto ter chegado àquela altura, mais um pouco e eles teriam alcançado a faixa de tráfego das nuvens. A vertigem provocada ao olhar pra baixo fez Perê evitar observar a distância que estavam do chão – o medo do outro é insignificante até a gente olhar por sua perspectiva. Devagarinho eles foram descendo, não sem Perê se arranhar pelo tronco porque o garoto não parava de se mexer – mais fácil teria sido salvar um gato.
Resgatado Silas, Lila havia sumido e ter essa percepção fez Perê estremecer e as pernas bambear, olhando na direção do laptop também não o viu, então o pavor lhe sugou o sangue. Porém, encontrar tanto um quanto o outro – ainda mais juntinhos – foi aterrador.
A pequena estava dentro da água, segurando o dispositivo, que por ser leve era perfeito pras mãozinhas de um ser de quatro anos agarrar.
— Lila, devolve o laptop do primo! – Perê disparou tão de repente que a garota só não caiu na água porque era ligeira.
— Meu! – O nariz empinado e sua postura deixaram claro que o pedido não ia rolar.
— Tudo bem! Só deixa eu brincar com ele um pouquinho, vai? – Ele tentou mudar a estratégia enquanto se aproximava com o maior cuidado possível.
— Não! Meu! – Teimosia era sua maior qualidade.
— Lilinha, te arrumo um brinquedo mais legal! – Ele fez o simpático, embora a vontade fosse voar na pequena terrorista e lhe dar umas boas palmadas.
— NÃO, MEU! – Vendo que isso não foi suficiente pra espantar o primo, ela abriu o berreiro. – UÁAAAAA!
O soluçar vindo de dentro da água denunciava a arapuca a se formar com a intenção de o atrair pra uma surpresa nada agradável. Aquele derramar de lágrimas era só a preparação antes do bote, afinal, enquanto devoram as vítimas, crocodilos também choram – não por se condoer por despedaçá-las, como seus dentes com força de mais de uma tonelada não servem pra mastigar apenas prender, eles as destroçam, engolindo pedaços inteiros que pressionam o céu da boca e comprimem as glândulas lacrimais, fazendo o choro escorrer. É que as lágrimas que transmitem verdades, também podem ocultar enganos.
— NÃOOOOOO! – Por um instante o coração de Perê parou, bem como o tempo. Quando ele estava perto demais, a garota se viu contrariada e jogou o notebook pro alto. O esforço a fez escorregar e cair de bunda na água. Perê conseguiu pegar o ultrabook, então puxou Lila pelo vestido antes dela se afogar.
— É, Perê! Alegria de poste é estar num mato sem cachorro. – Tio Sensação soltou a pérola após a narrativa terminar.
— Primo, você é um herói, salvou nossos filhos! – Henrique comemorou com um abraço que o levantou do chão.
— Ah! Que isso, só fiz o que precisava. – Sem jeito, ele meteu o humilde.
— Perê, vem cá cuidar dessas feridas! – Tia Peruana chamou, segurando a caixa de primeiros socorros. – Você deu sorte que se arranhou numa braúna porque a casca dela tem analgésico e anti-inflamatório. – Ela o tranquilizou, enquanto aproveitava pra tirar uma casquinha daqueles brações e de seu shape.
Feridas limpas, ele se trancou no quarto, era agora ou nunca que o conto seria finalizado – nem que fosse à base de fatalities pra conseguir isso. Porém, instantes após entrar no quarto, Perê saiu mais branco que assombração banhada pelo luar em meio as trevas.
— O notebook deu ruim! – Suas palavras eram sopros de incredulidade.
— Que foi que aconteceu? – Henrique exibia preocupação no rosto. Será que dessa vez ele teria que pagar o reparo?
— Não faço ideia. Só iniciei ele, daí a tela apagou e não ligou mais. – Diante da apreensão impressa nos rostos, ele lembrou de respirar fundo e isso lhe permitiu diminuir o alarmismo e pensar numa alternativa. – Tem problema não, o que importa é o conto que escrevi. De resto a gente dá jeito. – Seu sorriso afirmava que as coisas iam ficar bem. – Só preciso acessar o arquivo na nuvem e tá tudo certo. – Porém, foi abrir o aplicativo no celular e gotas de suor congeladas começaram a escorrer pela testa. – Cadê o Wi-Fi dessa casa? – O temor em fazer essa pergunta foi tanto que as palavras saíram com um agudo característico da puberdade.
— Cê diz aquela coisa ligada na internet?
— Isso, seu Davi! – As pernas começaram a bambear.
— Acho que tá sem.
— Como assim? – O desespero envolveu Perê com um calafrio paralisante.
— Lembra que aquela caixinha cheia de antena deu ruim?
— NÃOOOOO! – Sem ser necessário abrir um abismo no chão, tudo a sua volta tomou dimensões enormes, enquanto ele ficava cada vez menor, então se viu no fundo de um poço manchado de escuridão. – Preciso dar jeito nisso! – A esperança o fez se negar a aceitar um destino daqueles.
— Onde você vai? – A testa de dona Maria se encheu de vincos.
— Na cidade, ver o que consigo.
— Espera! Cê não vai nem botar uma… – Mas ele já estava longe.
Enquanto Clara banhava as crianças, dona Maria explicou a saga do conto até ali e o quanto aquilo era importante pro garoto, deixando a geral em estado de preocupação.
— BAM! – O estrondo da porta denunciou a chegada de Perê. Ignorando a expectativa dos parentes a aguardar sua chegada, ele se trancou no quarto, deixando a ansiedade suspensa no ar e indefinida qualquer chance de resposta.
— Tudo bem, Perê? – A voz de seu Davi saiu condizente com o cuidado que teve ao abrir a porta; por não saber o que movimentos bruscos podiam causar, preferiu a cautela que lhe fez encontrá-lo desgostoso. Após a ação energética do garoto, se jogar na cama foi a única coisa a qual ele teve forças.
— Tá… tudo errado com o notebook. – Ele respirou fundo. – Deu ruim de vez aquela coisa.
— Se precisar é só falar que o pai manda arrumar.
— Pior que não tem jeito, seu Davi! Bom, o notebook até dá pra arrumar, não onde tava gravado o conto.
— Mas como isso aconteceu? – Ele colocou o dedo no queixo e franziu a testa.
— De algum jeito entrou água nele, aí deu curto e queimou o HD, como tava sem internet não deu pra fazer backup: perdi tudo que escrevi. Pior que deu tanto trabalho e não tem como recuperar.
De tudo que dá pra perder, por mais caros e custosos que bens físicos sejam, é possível reconquistá-los, não aquilo produzido por nós.
— Ô, Perê! – O mundo de seu garoto ruía na sua frente e seu Davi não pode fazer nada pra impedir o desmoronamento.
— Relaxa, sobrinho, águas passadas, já passaram! – Brotando do nada de trás do cunhado, Tio Sensação surgiu com sua sabedoria torta; como costumava fazer nos momentos menos propícios. – Você podia ter salvado em outro lugar, num pen drive ou celular.
— Nunca imaginei que isso fosse acontecer. – Acostumado à sincronização automática dos aplicativos com a nuvem, ele não fez cópia em outros dispositivos. Somando a confusão dos parentes à pressa em terminar o conto, acabou esquecendo de verificar se estava ou não com conexão; algo que a casa de seu Davi e dona Maria, nem a clareira possuíam. A conexão ruim ou a falta completa dela explicavam o motivo do lugar ser um sossego só.
— Tudo bem, é fazendo merda que se aduba a vida! – Com o tio se acabando de rir, a vontade de Perê foi dizer que quando só a pessoa acha engraçado no que diz é porque aquilo não contém um grama de graça, mas estava sem força até pra se irritar com o comentário. A ironia mesmo estava no fato daquele senhor que se negava a crescer ter conseguido casar, embora não se desse bem com a mulher e a filha mais velha, apenas a mais nova o suportava; o fato de viver longe dele ajudava nisso.
Seu Davi deu uma cotovelada pra calar o inconveniente, fazendo surgir um ponto de interrogação em meio as rugas de sua careta ignorada enquanto ele era empurrado pra fora, e a porta fechada. Destruído o último fio de esperança, a confiança de Perê estremeceu, causando tal abalo que provocou um maremoto. Coberto pela frustração, ele ficou imóvel enquanto desejava a morte – seus sentimentos também sabiam ser dramáticos e sem dose alguma de piedade diante de um erro daqueles.
Com as sombras a preencher o quarto, Perê se deixou envolver pela escuridão. Atormentado por saber que a perda do manuscrito quase acabado não era culpa de vírus, falha no sistema ou dispositivo, mas ocorrida por não ter cuidado suficiente, ele mergulhou na bad. Então a luz o abraçou com sua maciez, e o peso que lhe impedia a alma de alcançar a liberdade começou a dissipar em gotas carregadas, que eram puxadas pela gravidade logo que brotavam. Os braços de dona Maria em volta de si trouxeram a calma necessária que o expurgou da decepção.
— Coisas ruins também fazem parte dessa vida e nos pegam sem a menor explicação, a partir disso o que dá pra escolher é como vamos reagir. – Ela soprou após Perê se acalmar, então o cobriu e deixou ele dormir mergulhado na calmaria.
Pra dar um pouco mais de liberdade, tio Sensação ficou com o sofá. E naquela noite conturbada tudo mergulhou no silêncio.
— Perê, você tá melhor? – Seu Davi abriu a porta quando a manhã tocou o telhado da casa. – Filho? – Mas não havia nenhum vestígio dele no quarto. – Amor, o Perê sumiu outra vez. – Ao encontrar a esposa, ele comunicou o que lhe afligia.
— Calma, querido! Deve ser só um engano, vamos procurar direitinho. – Seu estado de calmaria a impedia de agir por impulso, mas após revirar a casa sem encontrar nem sombra de Perê, ela também ficou aflita.
Ainda que tivesse passado todos aqueles anos, a cena se repetia. Diante dos olhos de seu Davi, o dia em que Perê sumiu da primeira vez voltou a rodar, ele mal alcançara a adolescência e sumiu sem qualquer aviso. Mesmo após as buscas realizadas pela polícia com a ajuda dos vizinhos, o garoto permaneceu desaparecido por anos que se arrastaram carregados de culpa e pesar, ao ficar evidente que não seria possível obter notícia alguma dele. Até um dia, o casal vir a entrevista de um autor de terror que se destacava, apesar de possuir outro nome e ser encorpado – diferente da silhueta magrela de Perê – eles souberam na hora se tratar do filho desaparecido, a partir disso passaram a saber dele através da mídia, instalaram internet e até aprenderam a mexer no celular pra acompanhá-lo mesmo a distância.
Ainda que a nova versão do filho nunca se importou de entrar em contato pra dizer como estava, de que jeito se virou ou perguntar deles, o fato de estar vivo e realizado como ser humano era mais importante. Até que da mesma forma que sumiu, Perê reaparecer lhes enchendo o mundo de felicidade.
— Não adiantou a gente evitar tocar no assunto. – Os olhos de seu Davi brilhavam, carregados de dor e arrependimento. O sentimento que tomou conta dele era uma combinação perigosa: tristeza com a chateação pelo filho sumir igual da última vez. Nos olhos de dona Maria o sofrimento exibia uma intensidade cristalina, mas ela manteve o silêncio. – Se seus parentes ficaram chateados com o que houve, imagina quando descobrirem que o Perê sumiu de novo? – Ele refletiu, mas agora não havia o que ser feito.
#proximoepisodio
A fuga inesperada do filho, furta de seu Davi e dona Maria qualquer reação, os deixando sem saber como explicar aos parentes o que aconteceu dessa vez. Assim, um Natal que tinha tudo pra reunir a geral num sentimento de gratidão, será mais um dia escuro e nebuloso.
Ósculos e amplexos,
Autor de Interrompido – A curva no vale da sombra da morte, é um cara apaixonado total por música, se deixar não faz nada sem uma boa trilha sonora. Bota em suas histórias um pouco de seus amores e do que sua visão inversível o permite enxergar da vida.