Interrompido – Recordar é viver (Episódio 03)

Interrompido – Recordar é viver (Episódio 03)

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Trabalhando horas sem descanso, Socorro ganha uma semana de folga, tempo suficiente pro menino Luan voltar a ser assombrado por pesadelos com visões assustadoras e tudo o que conseguiu fazer foi chorar, mas a coisa era ainda pior do que ele imaginava.

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Ao perceber Socorro interessada, Luan ficou sem jeito e calculou as palavras em busca de abordar o assunto do jeito mais natural possível. Reparando no semblante iluminado dela elogiou o quanto parecia feliz e viu seu rosto se encher de sorriso – ele mandara bem.

— Renovei as energias! Mas tô contente por outra coisa. – Ela exibiu um ar de mistério.

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— O quê? – O garoto ficou todo curioso.

— Poder voltar! Amo meu marido, mas tava agoniada de ficar tanto tempo em casa.

— Tô ligado! Do jeito que a senhora se dedica, ficar afastada esse tempo todo deve fazer maior falta.

— Sim. Não consigo me ver fazendo outra coisa, cuidar das pessoas é meu propósito.

— Por isso a senhora tá sempre sorrindo?

— Exato! Quando a gente encontra a razão de nossa existência e vive por isso, a vida continua bela mesmo nos dias maus.

— Faz tempo que a senhora é enfermeira?

“Quando a gente encontra a razão de nossa existência e vive por isso, a vida continua bela mesmo nos dias maus.”

— Vixe, menino Luan! Tem muito tempo isso já.

— A senhora fez alguma especialização?

— Várias! Como amo tudo na enfermagem, emendei uma na outra.

— O que fez a senhora virar enfermeira?

— Isso é algo que nunca planejei, menino Luan, acabou acontecendo.

— E como a senhora se tornou essa enfermeira tão dedicada, mesmo não tando nos seus planos? – Sem esperar, os olhos dela marejaram, com lágrimas a escorrer todo rosto. Luan ficou desesperado, ele tomara cuidado pra não invadir a vida pessoal da enfermeira ou ser indelicado, pelo jeito não obtivera sucesso no segundo quesito. Tentando fazer algo, se aprumou no leite pra levantar, mas a enfermeira sinalizou que não precisava.

— Tô bem, menino Luan. – Ela sorriu com doçura.

— Mas a senhora tá chorando.

— Nem todo sorriso é de felicidade, assim como nem toda lágrima é de dor. Choro também pode significar liberdade ou felicidade intensa. – Luan concordou com um aceno, mal sabendo o que dizer.

— Por que a senhora ficou assim perguntei o motivo de virar enfermeira?

— Diversos fatores podem nos levar a fazer algo, alguns são tão fortes que a gente não apenas segue determinada direção: muda por completo. – Internalizada, a causa que a catapultou em amor por uma carreira a qual se quer imaginou ainda a lhe tocava fundo, mesmo passando tanto tempo, assim, ao lembrá-la verteu sentimentos em lágrimas, afinal, recordar é viver.

“Nem todo sorriso é de felicidade, assim como nem toda lágrima é de dor. Choro também pode significar liberdade ou felicidade intensa.”

Como de costume no interior, o dia se esticava preguiçoso; longe da correria da cidade grande o tempo aproveitava pra apreciar a paisagem, até desemborcar num crepúsculo a trazer uma noite estrelada. Carlos Eduardo não era de assistir TV, o tempo em casa costumava ser gasto com trabalhos da facu e outras coisas.

Dando um descanso pro iMac, Cadu resolveu passar o tempo na companhia dos pais. Ocupado, mal ficava com os progenitores, assim, mesmo próximos acabavam distantes, então pausou o que fazia pra curti-los um pouco e também espairecer. Pra tornar o momento agradável, fez uma seleção de filmes família e quando foi botar, um comercial que lhe chamou a atenção.

Nele, um cachorrinho passa os dias esperando pelo dono, até que um dia, começar a latir todo feliz, mas o caminhante nem lhe dá atenção, então ele entra e sobe na poltrona da casa, de onde é possível ver uma foto com seu dono. No fim, surge: “Quando você doa seus órgãos, uma parte de você continua viva. Seja doador.”

— Mãe, pai! Quando morrer quero doar meus órgãos!

— Tá bem! A gente vê. – Pra Maria de Lourdes o comentário não merecia crédito, já Cadu se sentiu mexido com o comercial, tanto que precisou se segurar pra não chorar. O garoto nunca pensara sobre o assunto ou que quando partisse podia deixar mais que ações.

“Diversos fatores podem nos levar a fazer algo, alguns são tão fortes que a gente não apenas segue determinada direção: muda por completo.”

A família passou o resto da tarde assistindo e na cabeça de Cadu a ideia continuou martelando. Perto das oito, Lourdes levantou pra preparar o jantar e filho disse pra deixar que ele assumiria a cozinha preparar seu lámen gourmet. Além do miojo, a receita levava brócolis, abobrinha, acelga, cenoura, linguiça calabresa, azeitona; pra dar gosto ele botava cebola, cebolinha, coentro, orégano, cominho, páprica defumada e azeite.

Terminado o preparo, fez os pratos, polvilhando cada um com queijo ralado. Ao virar pra chamar os pais, chega levou um susto, eles estavam atrás dele com um sorriso maroto.

— Cês quase me matam de susto, surgindo do nada! – Ele fingiu brigar.

— Ah! O cheiro estava tão bom que a gente não resistiu. – Lourdes já lambia os beiços.

De repente, Marcos sentiu-se observado, quanto olhou, o filho e a esposa o encaravam.

— Já pode comer? – Desconfiado, quis saber com a colher a centímetros da boca.

— Claro, paizão! – Os três sentaram na mesa, Lourdes lembrou de agradecerem pelo alimento [1 Tessalonicenses 5.18] e terminada a prece, foram fundo no lámen gourmet. Mesmo sendo seu prato favorito, Cadu não conseguiu comer sem fazer graça, indo na onda os pais riam. A refeição estava tão boa que não sobrou caldo pra contar história.

Enquanto Marcos lavava a louça, o filho foi tomar banho e se arrumar pro trampo. Ele entrava de noite saindo de manhã, como morava a poucos quilômetros enrolava um pouco, até porque podia pedir um carro – devido a curta distância, além de chegar rápido, o valor era baixo. Já na volta preferia vir a pé pra ver o dia tomar o horizonte, enquanto organizava os pensamentos. Após beijar os pais, ele se foi. Ao fechar a porta, passou novamente a Campanha de doação de órgãos da Santa Casa.

“Quê isso!? Meu menino é novo demais pra pensar essas coisas!” – Lourdes se corrigiu ao lembrar do pedido. Ele ainda tinha muito que viver. – “Ainda tem que terminar a faculdade, casar e me dar muitos netos!” – Ela devaneou com o futuro brilhante a aguardar Cadu, tão inteligente e esforçado, e a empolgação a fez sorrir.

“Uma hora dessas os pais devem tá no puxando o ronco.” – Cadu riu ao olhar o relógio. Se bem que eles costumavam dormir tarde, como Lourdes fazia doces por encomenda levantava a hora que quisesse, já Marcos trabalhava de terça a sábado, então segunda ficava de boas.

“Ter um filho é o mesmo que conquistar um troféu, que habilita os pais a seguir no próximo nível de paixão, cuidados e alegrias.”

— Que será que eles tão fazendo agora? – Ele tentou imaginar. Independente do que fosse, aproveitavam – algo merecido. Os pais haviam feito muito por ele, agora Cadu estava ali, se empenhando na construção do próprio futuro, graças ao exemplo e dedicação recebida.

Apesar de gostar do trampo, seu momento favorito era a refeição, não só pela pausa onde ficava de prosa com os colegas, mas, porque saboreava a comidinha deliciosa da mãe – que chegava a ser orgástica. Por mais que tentasse e seus preparos ficassem gostosos, não alcançavam o mesmo patamar. Fazendo alusão ao sentimento, não ao famoso realçador de sabor, a mãe dizia que o segredo era o amor – até porque preferiam o sabor e saúde proporcionada pelos temperos naturais.

— Cada um tem seu jeito. – A mãe achava graça quando ele insistia que nem assim conseguia deixar sua comida igual a dela, a fazendo se sentir elogiada.

Talvez fosse questão de dom ou de algo ainda sem explicação, de qualquer forma era inegável o fato dela ser uma excelente cozinheira. A língua salivando e a quentura gostosa que se espalhou do abdômen quanto degustou a comida – arroz integral com cenoura, vagem, ervilha fresca e curry, acompanhado de frango refogado, grão-de-bico e saladinha de alface, cebola e tomate temperada com azeite e limão – o fez ter certeza disso e retornar mais disposto ao trabalho.

Aos poucos o sol despontou numa luz fraca, mas acolhedora na janela da cozinha.

— COCORICOOOÓ! – Berrou o galo da vizinha, anunciando o nascer do dia.

— Háaa! Dessa vez você não me pegou! – Lourdes apontou a janela. – Levantei primeiro! – Ela riu, comemorando.

— Primeiro que quem, querida? – Marcos ficou curioso de saber com quem a esposa falava uma hora daquelas.

— Bom dia, neguinho!

— Bom dia, meu bem! – Eles se beijaram apaixonados. Os dois continuavam a se amar na mesma intensidade de quando namoravam, mesmo passados tanto tempo juntos. Quando casaram, Lourdes tinha apenas 16 anos, Marcos era dois anos mais velho.

— Estava falando com aquele galo chato.

— Você e esse galo! – Ele riu. – Hummm… tô sentindo um cheirinho bom! – Marcos fechou os olhos pra apreciar o aroma que enchia o ar de sabor.

— Como levantei antes das galinhas, aproveitei pra fazer o bolo preferido do Cadu…

— Eba! – Marcos interrompeu, empolgado feito criança. – Bolo de milho é meu preferido também.

— Sei disso, neguinho! – Lourdes piscou dando um sorriso.

— Mas não é só isso, tô sentindo mais outro cheirinho bom aí! – Marcos riu faceiro.

— Esse meu neguinho é tão esperto! – Ela piscou. – É que aproveitei o forno, daí fiz torta e pão de queijo.

Mesa farta

Após tudo pronto, Marcos ajudou a dispor as iguarias na mesa, forrada com uma tolha de estampa floral com croché nas bordas, trabalho executado por Lourdes. Fartamente servida, a mesa tinha bolo de milho, torta de carne, pão de queijo, suco de laranja, leite, café, queijo branco, presunto, pão caseiro do dia anterior, manteiga, requeijão, patê de azeitona e frutas – muitas frutas.

— Amor, você tava mesmo inspirada! – Marcos abraçou a esposa pelo ombro. Os olhos dele brilhavam com o café colonial, se fosse um pouco mais tarde dava até pra chamar brunch, tamanha a variedade – isso porque era pra três pessoas que nem comiam tanto.

— Ah! Não é nada de mais! – Humilde, ela desdenhou. – Só aproveitei que acordei cedo.

— Você é mesmo incrível, querida! – Ele a agarrou pela cintura e lhe beijou. – E a que devemos isso tudo?

— Pra comemorar que tamos juntos e com saúde. – Lourdes era pura gratidão.

— Melhor motivo esse! – Ele concordou. – Agora só esperar o Cadu pra aproveitar.

Os dois foram assistir o jornal matinal, enquanto aguardavam, o que só serviu pra mostrar como o mundo andava violento e perigoso. A cada notícia Lourdes exclamava “Meu, Deus!”, já Marcos ponderava e embora estivesse calado, começou a ficar inquieto, passara da hora de Cadu chegar e ver aquelas coisas o deixou preocupado.

Mesmo com os passos lerdos pra apreciar a vista, ele sabia o tempo necessário gasto pelo filho da firma até em casa e como de segunda ele não tinha aula, já devia ter chegado a meia hora atrás. Achando melhor saber se acontecera algo e onde ele estava, pegou celular e discou o número que sabia de cor.

— Cadu? – Ele tentou esconder a aflição querendo se manifestar.

— Fala, paizão, beleza? – Ao ouvir a risada espontânea, a alma de Marcos se inundou de alívio.

— Onde você tá, filho? O pai tava preocupado já!

— Ô, pai! Precisa preocupar não. Só demorei um pouquinho!

— Você sabe como o pai é. Por que demorou?

— Perdão não avisar é que tava trocando umas ideia com os parça do trampo e esqueci o tempo total. Adivinha só onde tô, pai! – Cadu brincou. A primeira tentativa o fez rir, dizendo que ele errara feio e pediu pra tentar de novo.

Pressentindo a chegada do filho, Lourdes levantou pra esquentar o café e o leite, além de fazer ovos mexidos com bacon. Cadu insistia que o dela ficava melhor que o dele, embora ela achasse que o filho cozinhasse bem e que isso não passava chantagem pra obrigá-la a fazer, apenas ria preparando os ovos de bom grado.

Ela estava orgulhosa do filho, Cadu era melhor que imaginou, sempre que podia ela contava de como seu maior feito era inteligente. Ter um filho é o mesmo que conquistar um troféu, que habilita os pais a seguir no próximo nível de paixão, cuidados e alegrias. Ao se aproximar do fogão, um mal-estar a deixou zonza, como passou rápido ela ignorou a sensação e deixou tudo pronto.

— SCREEECH! – Um barulho de pneu derrapando, seguido de um berro e um forte estrondo, vieram tão de surpresa que quase a fizeram perder o equilíbrio. Por pouco Lourdes não derruba o bule de porcelana predileto – presente de aniversário de casamento, dado pela mãe antes de partir pro descanso eterno.

— Tem misericórdia, Senhor! Pelo barulho deve ter sido aqui perto. – Ela ficou aflita só de imaginar o que podia ser aquilo.

Pegou de surpresa

— QUERIDA! – Na hora que Marcos chamou, um arrepio lhe atravessou a espinha levantando todos os pelos e de instantâneo o bule se converteu em cacos; quando deu por si, estava na porta da frente de casa. Vendo o marido correr pro portão, fez o mesmo. Lá fora, foi atraída pra direção de onde viera o barulho e viu um carro chocado contra o poste da esquina com tal violência que a coluna de concreto caíra por cima dele, o deixando completamente amassado.

A visão lhe roubou palavras e pensamentos, tudo o que conseguiu fazer foi colocar a mão na boca. Ao olhar pro quintal, Marcos andava apressado, mesmo de costas deu pra notá-lo ensanguentado a carregar alguém.

— Neguinho… – Uma fraqueza dificultou respirar, enquanto sua cabeça era atingida por pontadas. – Que aconteceu? – Ela berrou, mas foi ignorada. Com taquicardia e enxergando com dificuldade, Lourdes correu. Pálida e tremendo, tocou o ombro do marido, então tudo virou de ponta-cabeça e uma escuridão indomável lhe tomou os sentidos.


#proximoepisodio

Lourdes sabe que algo ruim aconteceu e o susto pelo que poderia ser a faz desmaiar e quando ela se recupera se vê num terrível pesadelo que a faz surtar. Mal sabia ela que aquele tormento seria pouco pro que estava prestes a enfrentar.

Conheça a história com acontecimentos inéditos e um episódio extra!

Ósculos e amplexos,

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