Articulário: A cilada na grama do vizinho
nrd/ Unsplash

Amores descartáveis não se reciclam

“Pessoas podem ser descartáveis, seus sentimentos não.”

Mishael Mendes [Salmos 8.4]

Desapega, desapega

Estamos acostumados ao desapego e ao contrário do que o slogan da OLX faz parecer, isso não é nada bom. Na mesma velocidade que gostamos de alguém, esse interesse desaparece. Relacionamentos estão cada vez menos duradouros e sólidos, se transformando em algo líquido, como pontuou Zygmunt Bauman em “Amor Líquido – Sobre a fragilidade dos laços humanos” (“Liquid Love – On the Frailty of Human Bonds“, de 2003).

Segundo Bauman, a abundância e disponibilidade de experiências amorosas tem crescido, alimentando “a convicção que amar (apaixonar-se, instigar o amor) é uma habilidade que se pode adquirir, e que o domínio dela aumenta com a prática e a assiduidade do exercício”. Assim acreditamos ser possível amar melhor conforme acumulamos experiências sexuais, nisso, estamos sempre em busca do próximo amor ser mais estimulante que o atual, mas não tão emocionante ou excitante quanto o que virá depois.

Sai da minha aba (sai pra lá)

“É incrível como hoje em dia a gente é substituível”, a composição “Insubstituível”, de Rapha Lucas e Davi Jonas, soa certeira na voz de Marcos e Belutti. Num mundo globalizado e hiperconectado, onde o relógio não consegue conter o tempo, a escapar numa corrida insana; e as constantes mudanças obrigando a tomada de decisões ágeis e a nos readaptar porque a regra do jogo é alterada com frequência: relacionamentos se tornaram frágeis e as pessoas descartáveis – algo feito sem nenhuma responsabilidade afetiva.

Não temos tempo, nem saco pra nos conectar de verdade, assim, buscamos a praticidade de relacionamentos fast food que não possuem forma e firmeza e se desfazem com facilidade. Em “Namoro Fast-Food“, de 2020, Leandro e Kelly Machado destacam que a gente age com imprudência ao escolher alguém pra nos relacionar. É preciso decidir com cuidado a pessoa com quem devemos sonhar e conquistar o futuro, não como se estivéssemos numa lanchonete atrás da opção mais apetitosa.

Dois hambúrgueres, alface…

Divididos entre tantas tarefas e responsabilidades, onde tentamos encaixar atividades físicas e descanso, ou lazer, falta paciência pros dramas e cobranças de um relacionamento e fazer o amor durar. Lidar com pessoas é complicado, então fazemos a fila andar. A busca pelo outro acaba acontecendo apenas pra suprir a necessidade de afeto, assim conseguimos o toque, a carícia, o prazer, não a conexão ou a profundidade de um sentimento que nos transforma. Por falta de envolvimento suficiente pra criar proximidade e pertencimento. Como encontrar alguém legal pode dar trabalho, a gente se rende a praticidade dos aplicativos de relacionamento pra agilizar o processo. Onde conhecemos diversas pessoas, num curto espaço de tempo, e uma curtida ou um deslizar de dedo basta pra criar o match perfeito; confiando em algoritmos que utilizam vieses preconceituosos, e agrupam pessoas conforme sua estética atraente ou não, podendo levar a erros grotescos, como aborda o episódio “O escolhido” (“The One”), de Weird City (em livre pt-BR: “Cidade Estranha”, de 2019).

Mas o fascínio proporcionado pelas possibilidades do excesso de opções, acaba nos tomando o resto de tempo e a oportunidade de conhecer alguém que valha o frango inteiro, não só a pena; também todo espaço do amor. Assim vivemos numa busca constante pelo hedonismo, que transborda a gente de prazer sem nunca nos preencher com algo permanente e durável. Nisso entramos numa bolha – seria a lei da atração ou do retorno? – que faz nos relacionarmos com alguém nas mesmas expectativas desleais e distorcidas que nós. Resultado: ficamos na pista pra negócios de forma indeterminada. Comprometidos em buscar uma versão e experiência superior as que tivemos e até melhor que nós mesmos. Esquecendo que a sua maneira, cada ser humano é único em qualidades e defeitos; achar que a gente escapa a regra é cegueira da hipocrisia.

Só não vai se apaixonar

Quando rola envolvimento, isso é feito tendo em mente a fragilidade de um relacionamento frouxo, sem amarras, que se não for grandioso, exagerado, jogado aos seus pés – tipo os de comédia romântica – nem a pessoa interessante suficiente ou mesmo problemática demais, pulamos fora. Dessa forma entramos num relacionamento com obsolescência programada, fadado a não dar certo.

O “felizes pra sempre” não é eterno. Dura até uma discussão provar não compensar persistir. Sem fazer alardes, o abraço deixa de prender, as coisas ficam estranhas – Marília Mendonça que manjava dos paranauê – e a distância dá o recado do vencimento do prazo de validade da relação. A pessoa não era a certa ou o momento não era o ideal; vida que segue, e a gente parte pra outra, afinal, existem “várias danadinhas no contatinho do pai”.

Não é você, nem eu, a culpa é das estrelas

O problema em aderir à cultura do desapego, que faz parecer legal não se abrir com ninguém – enquanto a gente passa o rodo – é que a praticidade e a duração dos instantes de prazer não são suficientes pra convencer a gente de querer ficar – mesmo se tiver bolo de prestígio, com muito recheio de coco e chocolate de cobertura, como aconteceu com Alexey na minissérie “Prestígio“. Bastam alguns minutos pra batatinha deliciosa esfriar ficando intragável.

A adaptabilidade exigida pela modernidade faz a gente ficar tão maleável que acabamos por mudar hábitos, crenças e vontades – aquilo que a gente sonhava se torna papo de contos de fadas, uma ilusão a ser esquecida. Por consequência, a visão de mundo se altera, mudando nossas relações com as pessoas, inclusive com a família, amigos e até com nós mesmos – se não é fácil manter um relacionamento durável com o outro, quanto mais com a gente mesmo. Deixamos de buscar o duradouro e permanente, o objetivo se torna encontrar algo que faça a gente se sentir melhor o mais rápido possível – dá pra ser?

Tudo vira chama, inconstância, algo de curta duração. Como poetizou 

Melk Villar em “Olha para mim”, “enquanto tudo se esvai, como tudo que é fraco cai”. A percepção de nada ser permanente e que tudo se dilui, internaliza em nós a fragilidade de todas as coisas serem substituíveis – inclusive nós – retirando o valor e o desejo de se esforçar, porque a totalidade se torna passageira e dispensável; fazendo não compensar investimentos a longo prazo porque a chance de desvalorização é alta e a de ficar no prejuízo é certa.

Vê se toma jeito, coração

E o coração, como fica nisso tudo? Esburacado, com os sentimentos revirados e uma bagunça – nem um pouco bonita – que nos torna vazios com um espaço que não pode ser preenchido. Enquanto o subconsciente grita “eu quero um amor, alguém pra me cuidar”, como apontou Bruno Araújo em “Eu quero um amor”, matamos nossa carência com relacionamentos fast food, que exigem um número maior de encontros sem nunca saciar a alma. Assim, continuamos a consumi-lo pra enganar o vazio que retornará, já que nossa necessidade de afeto nunca é suprida.

Conforme nos envolvemos mais nesse tipo de relação, nosso amor fica líquido total, dificultando encontrar alguém pra transformá-lo em algo sólido e permanente. Mesmo isso sendo suave pra quem não deseja envolvimento, nem as neuras e cobranças tragas por se comprometer com alguém, a real é: precisamos disso. Inclusive, numa pesquisa realizada com mais de 5 mil usuários, mostrou que 60% buscam relacionamento sério e que 27% não suportam mais encontros casuais.

Quem com ferro fere…

Como seres sociais, somos impulsionados por um desejo inconsciente de conexão que dê sentido ao que fazemos, ofereça ajuda, aqueça, enfrente as dificuldades conosco [Eclesiastes 4.9-12] e nos aceite como somos; permitindo dividir os fardos e o compartilhamento da felicidade, não só da senha do Wi-Fi e a internet móvel. Numa sociedade onde há mais interações virtuais que físicas, a conexão humana se tornou mais necessária que nunca. Conexões nutrem e a falta delas afetam nossa saúde emocional e física, razão pela qual o número de casos de doenças psicológicas e psicossomáticas têm aumentado de forma assustadora – tornando a depressão o mal do século.

Entramos em relações quentes que não possuem calor humano, cheias de tesão e nenhuma paixão; temos a agenda e os perfis lotados de contatinhos, porém não há mais conexão. O vazio gerado por isso causa depressão, insônia e declínio cognitivo, além de provocar obesidade, doenças cardíacas e levar ao vício de tabagismo, como apontou um estudo de 2018, liderado por pesquisadores da Sociedade Americana de Câncer (ACS), que examinou mais de 580 mil pessoas. Mais prejudicial que a obesidade e o fumo, o vazio eleva as chances de morte em pelo menos 50%. Bem como aumenta em 30% as chances de derrame e doenças cardíacas. Além de reduzir o sistema imunológico, tornando-o mais vulnerável a vírus e doenças, conforme outro estudo de 2015, da Sociedade Real de Londres.

É preciso amar direito

Rogério Flausino já compôs e cantou “quero um amor maior, um amor maior que eu”, mas não basta querer. É preciso entender que tudo que possui valor e perdura exige tempo, entrega, resiliência. O que torna algo inestimável é o quanto o apreciamos e nos dedicamos àquilo. Se comprometer não é arrumar dor de cabeça, ficar preso; tão pouco é perda de tempo. É dar espaço pro afeto criar raízes, pra conexões acontecerem e vivermos com mais significado.

O amor exige esforço e persistência, também elasticidade e paciência. Não se ama pela metade ou de qualquer maneira, é preciso desacelerar e fixar a bandeira da permanência – amar de verdade exige mais, como vimos aqui. Relacionamentos não possuem garantias de termos de volta nosso tempo e sentimentos investidos, mas cada momento aplicado na conexão, faz crescer e fortalece os sentimentos e a empatia, pra gente estar pronto pra quando o amor chegar ser acolhido com o carinho e o valor que merece.

Artigo publicado originalmente no LinkedIn, também está disponível no Medium.


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Ósculos e amplexos,

Mishael Mendes Assinatura
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