Mais uma vez olho o espelho
Surge a natureza de quem sou,
Mas instantes após me mirar
Esqueço a imagem vista ali…
Percorre o luar nudez da pele,
Abastado brancor que cintila
Vejo a realidade de quem sou.
Se apagou imagem de outrora
Como poeira fixou nos dedos,
Retrato que não mais espelha,
Só a memória persiste lembrar.
Mas será que algum dia divergi
Daquilo revelado no parecer?
O que se mostra a meus olhos
É o que realmente tencionei?
Apesar de ânsias e incertezas
Isso é o que diz ser o espelho.
Todas as minhas sentenças,
Aspirações e escolhas feitas,
Também verdade e convicção,
Vêm por terra ante à imagem,
Nudez que o espelho revelou.
Olho pra frente, sigo a mirar,
Se revelam cicatrizes no corpo,
Marcas impressas pelo tempo,
Sinais de dor, represália, ilusão
Também causadas pelo amar,
Lado ferido pelo desejo maior.
No silêncio que só a noite traz
Envolve-me contínua presença,
Somente as trevas amenizam,
Cobrindo de maldade órbitas
A jugar sem compaixão alguma.
Como pode o brilho d’estrelas
Se manifestar na obscuridade
De gélidos pensamentos teus?
A pálida imagem, a brilhar ali,
Esquelética, não parece reagir,
Nem se digna dar a conhecer.
Pele de mármore, pedra, barro,
E água se misturam em húmus.
Corrente soprada pelo tempo
Levou folha a folha, despindo
Por completo os ramos meus,
Afastou pra distância infinda,
Me carregando longe de mim,
Essência que o barro absorveu.
De repente, um som toma o ar,
Sentenças sopradas, angústias,
Respiração a carregar pesares.
O invisível adquire forma, peso,
Me fazendo descer ao abismo,
Escuridade onde habita solidão,
Sofrimento é distanciamento
Da energia gerada pelo amor.
Por companhia me resta a dor
Única constante a permanecer
Sem forças, beiro o silêncio…
Nas profundezas do temor
Apenas trevas me vêm visitar.
Sem fôlego, como irei bradar?
Do espaço retorno à divagação,
No alvor da pele, escuros olhos,
Num brilho a cansaço carregar,
Questionam por saída não vista
Esvaem ante imagem refletida.
No esquecimento, aqui estou,
Sem precisar minha chegada,
Me encontro preso, sem rumo,
Com a fúria do mar a circundar
Dia a dia levantando contra mim,
No espelho parece não se findar,
Segue pela noite, cresce sofrer;
Vendaval a se opor no caminho,
Não dissipa ou ainda cicatriza.
Terá o sossego me silenciado?
A alma desfaz, vertendo gotas,
No sofrimento, sopro liquefaz.
O que antes era energia, vital,
Agora carrega a apatia da dor,
Esmaga o que da onda restou.
O abismo traz um, dois, outros,
Quando vi era escuro pra voltar,
A noite caiu e a visão enturvou.
Da ilusão, o intenso esplendor,
Impediu enxergar, do turbilhão,
Profundezas da escura vereda
Onde os passos foram apalpar.
Por que te abates, aqui dentro,
Ó, alma, cercada de amolação?
Tua distância não alcança o Sol,
Corpo celeste a conceber fulgor.
Distância é dor, fragmentação,
É paralisia, ausência e morte,
Da imagem se esquece sentido,
Desfigurando sua semelhança.
Clamo e não sou ouvido, grito
E o som não ecoa a minha voz,
Onda no escuro a se desfazer.
Na alvorada me lanço ao chão
Até os lábios beijarem a terra,
Da pedra abundante água saiu,
Se desmanchando em prantos
Traz pra fora dor calada no ser.
Pelo espelho consigo devassar
A semelhança do que nem sei;
No escuro, só sombras se vê,
Contorno do que foi ou será,
Estranhas e formas restantes.
A luz que pela janela adentra
Contorna a lividez do corpo,
No espelho só vejo em parte
Enigma a sombrear mistério.
No fim é que o começo está.
Divagando sobre o espelho
Percebo conhecer um pouco
Além do que posso entender;
Desconheço aquilo que sou.
Face a face com a imagem ali,
Semelhança diz nada de mim
Ou quem, um dia, poderei ser;
Imagem em enigma a observar,
Com olhar que invade cortante,
A cobrar muito, nem sei o quê;
Os olhos já nem posso sustentar,
Resistência pra isso não mais há,
Nem posso tornar as madeixas
Do branco em preto outra vez.
Almejo, de rosto descoberto,
Não necessitar mais me mirar,
Vendo tamanhas imperfeições,
Mas ser rio de pureza do cristal
A refletir luz que a terra invade,
Como onda inundando a praia;
É quando alçarei a completude
Não mais cota em decaimento.
Espelho, de veras, a dura face
Diz que a imagem ante a mim
É reflexo das ações cometidas,
Pelos pés e mãos que optaram
Por trilhar a esmo a escuridão.
Ouço abundância da água soar,
Rugindo, abala a terra e o céu
Ante a potência de seu bramir
Movimenta as fontes em mim.
Apenas a pureza e sinceridade
Dos sentimentos derramados
Me sustentam noites e manhãs;
Dos meus olhos correm rios,
Incessante torrente em penar,
Escorrendo, descem pelo rosto
Seguindo no rumo dos lábios,
Saciando, servem de alimento,
Ao passo que sofro prostrado.
De madrugada ouço murmúrio,
Em clamor, soam palavras ditas,
Da janela surge frescor do vento,
Ao entrar, traz consigo calmaria.
Em angústia continuo a clamar,
Tento mudar impulsos elétricos,
Propagando em alta velocidade,
Sem controle ou decodificação,
Percorrem sob pele esmaecida,
Energia transmuta em química
E física das dinâmicas: reações.
O que era sopro se materializa,
Descompassando o relógio vital,
Cadeias que prenderam ao circo.
A apenas setenta e cinco metros
Em cada segundo se entrecorta,
Sendo a alma percorrida por dor
Até se tornar insólito o palpável
E ela se render, cativa ao vento,
Lançado e pisoteado foi o sal.
Uma canção soa aos ouvidos
Sonora, vibrante, uma oração;
E os lábios que em profanação
Destilaram o desejo do prazer
São os mesmos a soar louvor,
Ação do favor que o alcançou.
Ínfimo ser que o espelho expôs,
Desfigurada matéria a se mirar
Vê a necessidade de preencher
A imensidão do abismo em si
Com algo maior que sensações;
Do brilho que a essência reluz.
#papolivre
Não dá pra saber como a gente será no futuro, de modo que podemos divergir e muito do que fomos um dia. As mudanças, intensificadas pelo tempo, são tamanhas que se fosse possível voltar ao passado a gente não ia reconhecer a nós mesmos – algo abordado de forma extrema em “Dark“, que possui um resultado ilógico onde o filho é responsável por originar o próprio pai, gerando o “paradoxo do avô“.
O destilar das estações em nossa matéria traz mudança estética e física, além de alterar o intelecto e o emocional. Quando essa modificação começa a ocorrer, pode ser assustador, mas isso é necessário pra maturidade – como destaca o artigo “A maturidade que os anos não trazem” – já que nos faz deixar pra trás as coisas da velha infância [1 Coríntios 13.11].
Nesse processo, alguns eventos nos empurram a refletir sobre quem somos e o que queremos, com pensamentos numa velocidade às vezes difícil de controlar – algo que o poema “Velocidade que a poesia alcançou” descreve. Inclusive, com nível de profundidade difícil de encarar e que nem todos estão dispostos a fazer, até porque podemos descobrir não estar melhor que antes, levando a depressão existencial – algo abordado no artigo “A falta de sentido e humor da vida“. Ainda assim, essas reflexões nos levam a saber mais sobre nós, porque na real se quer nos conhecemos direito, e o espelho, apesar de dar visão, não consegue mostrar a complexidade de quem somos – revelando um enigma em parte [1 Coríntios 13.12] – e o coração que devia ajudar nessa tarefa é nada confiável [Jeremias 17.9]; fazendo questionar a distância entre o bem e o mal.
Esse poema é resultado da profundidade que ainda hoje me rodeia, levando as entranhas do abismo – mas, até ali é possível ser ouvido [Salmos 130.1, Salmos 139.8]. Além de experiência pessoal, ele se baseia em diversos versículos bíblicos, mas principalmente em Salmos 42 – o mesmo usado na composição da trilha sonora desse poema. Também me inspirei na música “A alma Abatida“, composta pelo Paulo Leivas Macalão – cuja poesia tentei aqui expor, talvez isso o tenha feito parar na edição de abril, de 2023, da revista Valittera.
Ósculos e amplexos,
Autor de Interrompido – A curva no vale da sombra da morte, é um cara apaixonado total por música, se deixar não faz nada sem uma boa trilha sonora. Bota em suas histórias um pouco de seus amores e do que sua visão inversível o permite enxergar da vida.