Poesificando: Cansado, ele foi curtir a liberdade (In Memorian)
Ilya Ilford/ Unsplash

Cansado, ele foi curtir a liberdade (in memoriam)

Quem via a pele enrugada, com marcas,
Não podia imaginar a criança habitando ali,
A magreza acentuada das maçãs
Mostrava a fragilidade de um gasto corpo
Tanto açoitado pelo tempo voraz.

Pra ele não importava o tamanho da dificuldade,
Apenas a insistência de sua resistente teimosia,
O único empecilho mesmo era a precária saúde
Que esvaia aos poucos, mais e mais.

Sem saber que poucos eram os dias que restavam
Fazia mirabolantes planos, pra desfrutar a vida
Numa terra tão, tão longínqua dali.

Em seus olhos se via distância,
A procura de outros lugares, cheio de vontades.
Levado por fantasias, de tanto desfez
Deixando tudo e um pouco mais pra trás.

Perseguindo concretas convicções,
Buscou felicidade em diferentes caminhos,
Viajando de um lado pro outro.

Eterno viajante, da inércia um inconformado,
Por isso o cigano coração o fazia mover-se,
Sem poder encontrar destino certo,
Ia de um lado pro outro.

Sua alegria não tinha a ver com destino,
Um ponto fixo nunca foi, pra ele, o prazer,
Mas o caminho a ser percorrido,
O prazer da aventura seguinte,
Deslocando-se até a próxima parada.

Mesmo tendo às vezes encontrando tristeza
Nunca deixou de sonhar e perseguir algo melhor.

Vovô no casamento dos meus pais
Mishael Mendes/ Arquivo Pessoa

Com claras convicções, às vezes inflexíveis,
Erros cometeu, sendo até mesmo intolerante,
Porém, nunca deixou de se pautar no desejo
De que a felicidade fosse, na família, uma constante.

Sua maior alegria era ter a liberdade
Pegando carona na velha bike,
Enquanto pedalava pelas ruas quentes
Do interior onde a última vez habitou.

Já cansados os pés, poucas forças podiam conter,
Incapazes não mais concediam o que fazia feliz,
Ao se tornar dono da próprio sorte,
Decidindo que caminho seguir
Ou qual curva virar, pra saborear o vento.

Entre tosses, pigarros e falta de ar,
Conversas apaixonadas revelavam
A incrível energia daquela criança
Que o corpo já não podia conter.

Com o olhar distante, ia percorrendo
Tão conhecidas ruas, pedalando sobre a bike.
O respirar aos poucos se tornava mais custoso,
Mas isso não impedia continuar seus planos
Com projetos e sonhos cada dia mais coloridos.

E com um receptáculo cada vez mais incapaz
De conter uma vivaz criança,
Num momento o recipiente quebrou,
Libertando de vez aquela alma infante.

Vovô presente nos melhores momentos
Mishael Mendes/ Arquivo Pessoal

Assim despediu-se da passagem aqui
Indo pra onde, por certo, descanso haverá.
Sua partida não podia ter sido mais feliz,
Pois se foi no caminho do translado ao hospital,
Mostrando que da vida somos apenas passageiros.

Agora, sem mais nada que o possa prender,
Entre as nuvens pode contente pedalar,
Alcançando onde, apenas os sonhos podiam fazer.

Sua memória deixou saudades e lembranças
Espalhadas por cada canto que costumava ficar,
Mas também deixou conforto ao saber
Que, enfim, o almejado e merecido alcançou,
Algo que aqui tanto a vida lhe negou.

Que em paz descanses, pequena alma pueril,
E que a eternidade te seja pequena
Pra desfrutares de toda Paz e Amor
Que em vida tanto buscas tu.


#papolivre

Semana passada, após meses de sofrimento, o avô Sebastião, pai da minha mãe, partiu – cansado daqui, ele foi, entre as nuvens, curtir o vento da liberdade. O vô era a única raiz que restava da árvore genealógica de ambos os lados, mas chegou sua hora e assim ele partiu, com a serenidade no rosto, embora tanto tenha sofrido até ali, a partida se deu enquanto era transferido pro hospital.

Na timeline surgiram várias homenagens dos familiares, confesso que poucas curti, o resto preferi nem ver. Não que não me importe ou seja insensível, mas não gosto de pensar na morte de alguém querido, ainda mais porque as palavras nunca parecem bastar, mesmo que eu as saiba usar bem – sinônimos e adjetivos se tornam pobres e não conseguem expressar o real significado de alguém importante pra nós, principalmente na hora de consolar o outro.

Por vários empecilhos não pude ir ao enterro do vô, o que de certa forma foi bom, assim não terei a lembrança dele sem vida, mas pelo menos ainda pude vê-lo duas semanas da partida final. Apesar da demora, eis aqui minha homenagem a uma criança que tinha tamanho e teimosia, mas que sempre foi um sonhador e desejava apenas o melhor pra si e os seus.

Ósculos e amplexos,

Mishael Mendes Assinatura


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